Plinio Corrêa de Oliveira
Como o clero, a nobreza e o povo participavam do governo
Catolicismo, N° 545, Maio de 1996 (*) |
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A Praça do Mercado de Siena, Itália, com a esguia torre do Palácio Público, casas aristocráticas e populares, constitui um exemplo do que era a harmonia entre as classes sociais outrora O bem comum da nação era alcançado pelo esforço conjunto das três classes sociais, atuando cada uma delas em sua esfera própria, mas em harmonia com as demais A Revolução Francesa, procurando desprestigiar os regimes que a precederam, espalhou uma idéia errônea a respeito dos governos existentes na Idade Média e no Antigo Regime, como se neles só o Rei mandasse e ninguém mais participasse do governo, em qualquer sentido. Nada mais falso. O que houve nos países da Europa antes daquela Revolução, na maior parte dos casos, foram formas participadas de governo, mesmo no chamado absolutismo real. Santo Tomás de Aquino recomendava a monarquia participada, isto é, na qual o clero, a nobreza e povo tenham parte no governo. Seria cabível perguntar em que sentido poderia o clero participar do governo na ordem temporal. No regime de separação entre a Igreja e o Estado, em que vivemos, causa surpresa ver o clero mencionado como força política. Entretanto, o clero constitui uma classe social nitidamente definida e distinta das demais. Um sacerdote, enquanto cidadão de um país, tem o direito de externar sua opinião a respeito dos problemas desse país. Naqueles tempos, o clero era a primeira classe social. Não só pelo seu caráter sagrado, mas também porque fornecia ao país o próprio fundamento da civilização. Realmente, um país sem moral nada vale; e quem tem os recursos naturais e sobrenaturais para inocular a verdadeira moral num país é precisamente o clero. Esta é a sua missão específica; e como é a mais importante, a mais fundamental, é natural que a classe encarregada dessa missão seja considerada a primeira classe da sociedade. Nas reuniões, nos encontros sociais, nas cerimônias oficiais do Estado, era lógico que o clero ocupasse o primeiro lugar, com primazia sobre a nobreza e o povo. Era natural que não se tomasse em consideração a condição social em que o clérigo tinha nascido, mas sim sua situação nas fileiras do clero. A primazia era para aquele que detinha o mais alto cargo ou função. Uma atribuição importante do clero era a organização e manutenção dos serviços de educação e saúde pública, sem qualquer ônus para o Estado. A caridade pública era fonte contínua de dinheiro para tais despesas. O afeto filial e a confiança que ligavam os fiéis ao clero faziam com que aqueles dessem dinheiro a este com muito mais boa vontade e abundância do que se fosse para órgãos estatais. Pois quando um bom clérigo batia à porta, era quase como se Deus estivesse batendo, tal o orvalho de bênçãos que trazia em torno de si. A nobreza, apesar de freqüentemente pintada como uma classe cheia de vaidade e ébria de sua grandeza, que nada permitia acima de si, era considerada a segunda classe social e se reconhecia como tal. Tinha muito peso e prestígio no Estado e na sociedade, pois o poder militar estava em suas mãos e a oficialidade era constituída quase exclusivamente de nobres. Era freqüente, porém, um plebeu, por heroísmo na luta, ser promovido a nobre e passar à condição de oficial. O poder da nobreza enquanto classe militar, embora não muito sensível nos tempos de tranqüilidade pública, tornava-se decisivo nos tempos de guerra e convulsões sociais. O clero e a nobreza participavam do governo do país de várias maneiras. Tanto uma classe como a outra possuíam numerosos feudos, nos quais exerciam muita influência e autoridade. Tinham também direitos de governo sobre algumas áreas. O povo participava do governo através de suas corporações, que tinham autonomia, leis e tribunais próprios, livres da intervenção de funcionários do rei ou de qualquer órgão de poder central ou municipal. Tais corporações constituíam, dentro da realeza, como que pequenas repúblicas burguesas com governo próprio. A harmonia dessas autonomias constituía a harmonia da nação, dentro do governo participado. Tal regime é muitas vezes acusado de ser injusto pelo fato de que o clero e a nobreza não pagavam impostos, os quais recaíam sobre a classe aparentemente mais pobre, que era o povo. Mas a ela pertencia a burguesia, uma classe em geral rica. Porém, como vimos, tanto o clero como a nobreza arcavam com despesas vultosas em beneficio do bem comum. O clero como sustento da educação e da saúde, e a nobreza com a manutenção de tropas. Ou seja, ambas as classes se dedicavam principalmente ao bem comum, enquanto o povo trabalhava antes de tudo para si, e só secundariamente para o bem da nação. Vemos assim como, em linhas gerais, era razoável a isenção de impostos de que gozavam o clero e a nobreza. O dever da nobreza nos dias atuais Atualmente, mesmo vivendo em países de regime democrático e republicano, em que a nobreza foi abolida como classe social, ela tem um papel a cumprir na direção da sociedade. Os nobres, dentro da vida civil, embora não exercendo mais a militância feudal, devem entretanto continuar combativos. Eles têm obrigação de fazer ouvir sua voz, pois sua palavra e seus atos repercutem intensamente. Por exemplo, um rapaz nobre, aluno de um colégio, tem muito mais a obrigação de lutar contra o respeito humano, de enfrentar a perseguição tantas vezes cruel que se move contra os que são puros, do que um rapaz que não é nobre. O nobre traz consigo a História, e seus atos impressionam mais do que os de uma outra pessoa. As novas condições não suprimem as obrigações da nobreza, mas lhe dão novos encargos, que são a adaptação dos deveres antigos para os dias atuais. A nobreza deve lutar para permanecer de pé e continuar como um dos elementos dirigentes da nova ordem de coisas. As transformações sociais, sendo legítimas, podem entrar em harmonia com as tradições da nobreza. Esta deve atuar em favor do país, embora sem ocupar cargos oficiais, colaborando com as outras categorias na direção dos acontecimentos. Ainda hoje restam deveres e uma grande influência reservados à nobreza, que ela deve assumir. Mas antes de tudo a nobreza deveria primar por sua fidelidade à Igreja Católica, aos seus princípios e às suas normas, atestando-a pelo exemplo de uma vida ilibada e pela palavra. (*) Excertos de conferência pronunciada pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira para sócios e cooperadores da TFP, em 11-11-92, comentando, a pedido destes, a obra de sua autoria Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio X11 ao Patriciado e à Nobreza romana (Editora Civilização. Porto, 1992). Sem revisão do conferencista.
São Francisco de Sales, Bispo-Príncipe de Genebra (1567-1622) Governo feudal exercido por eclesiásticos Um aspecto da legítima participação do clero na vida pública nacional foi, ao tempo do feudalismo, a existência de dioceses e abadias cujos titulares eram, ipso facto e ao mesmo tempo, os titulares das respectivas circunscrições feudais. Assim, por exemplo, os Bispos-Príncipes de Colônia ou de Genebra, pelo próprio fato de serem bispos, independentemente de sua origem nobre ou plebéia, eram Príncipes de Colônia ou de Genebra. Um destes últimos foi o dulcíssimo São Francisco de Sales, insigne Doutor da Igreja. A par de Bispos-Príncipes havia dignitários eclesiásticos de graduação menos eminente na nobreza. Em Portugal, por exemplo, os Arcebispos de Braga, que eram ao mesmo tempo senhores daquela cidade, e os Bispos de Coimbra que, ipso facto, eram Condes de Arganil (desde o 36° Bispo de Coimbra, D. João Galvão, agraciado com esse título pelo rei Dom Afonso V, em 1472), de onde usarem correntemente o título de Bispos-Condes de Coimbra. |