Plinio Corrêa de Oliveira

 

Meditação segundo Santo Inácio de Loyola

sobre a malícia do pecado

 

 

 

"Santo do Dia", 29 de setembro de 1973

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A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.

 

Santo Inácio de Loyola

Retrato pintado por Jacopino del Conte no próprio dia da morte de Santo Inácio

Há uma meditação de Santo Inácio sobre os males que o pecado contém e os que ele causa. Vamos examinar essa matéria:

"Considera o mal que o pecado contém em si mesmo. Há um Sumo Bem pelo qual se deve amar todas as coisas, e que deve amar-se por si mesmo. Este Sumo Bem é Deus. E há um mal supremo pelo qual se deve aborrecer todos os males: é o pecado, que deve ser aborrecido por si mesmo. Não é possível achar-se maior oposição do que aquela que há entre Deus e o pecado, e por isso não pode deixar de ser péssimo aquele mal que tanto se opõe ao ótimo. Assim, sendo Deus um mar imenso de perfeições, o pecado é um abismo de malignidade. Sendo Deus um Bem infinitamente superior a todos os males, sendo Deus um tal Ser, que comparadas com Ele todas as coisas nada são, o pecado é uma tal abominação que, comparados com ele, todos os outros males não podem ser chamados males".

 

Este pensamento de Santo Inácio é muito profundo, mas pede uma certa explicação.

Vamos tomar alguns exemplos concretos: o pecado contra a pureza, por exemplo, ou o pecado contra a verdade, ou ainda o pecado pelo qual se falta com o respeito aos superiores, e que está contido no quarto mandamento - honrar pai e mãe. Esses pecados todos, o que é que têm de grave? Vou procurar ilustrar o pensamento de Santo Inácio, para depois aplicar completamente a reflexão dele.

O pecado nos torna semelhantes ao demônio

Tomem o pecado contra a pureza. Sobre esse pecado há uma primeira consideração a fazer, que é a seguinte: o demônio é puro espírito, no sentido de que ele não tem outra coisa senão espírito. Nele não há, como em nós, uma junção de corpo e de alma.

Portanto o demônio não é capaz de cometer o pecado contra a pureza, e nem tem meios de cometê-lo. É um espírito, e está fora da sua alçada a vontade de cometer o pecado contra a pureza, mais ou menos como um quadrúpede não tem vontade de cantar à maneira de um canário, pois está fora da natureza dele. Não há a menor inclinação ou apetência para isso. Entretanto, sabemos que o demônio ama enormemente a impureza e faz todo o possível para arrastar os homens a ela. Ele fica satisfeito com isso, porque, quando os homens caem no pecado de impureza, ficam parecidos com ele. O demônio não é impuro no sentido em que um homem é impuro; entretanto, ele o é enquanto tendo o espírito do homem impuro.

Vemos então que a mentalidade do homem impuro é uma mentalidade parecida com a do demônio. Em que, propriamente, elas são parecidas?

Poderíamos dizer algo semelhante sobre a mentira. O demônio é chamado o "pai da mentira", e se rejubila com ela. A sua revolta contra Deus foi uma revolta baseada na mentira, isto é, ele quis ser como Deus, quando não tinha nenhuma qualidade, nenhum requisito para sê-lo. Por que o demônio gosta tanto da mentira, e sente no mentiroso uma tal ou qual semelhança consigo? É porque ele sabe que, quando alguém mente, dele se aproxima, toma a sua mentalidade; em última análise, ele fica dono do mentiroso.

O demônio, vendo alguém revoltar-se contra um superior ao qual deve respeito, fica satisfeitíssimo, procura incutir aquilo de todos os modos, favorece os homens que se revoltam e persegue os que obedecem. Ele sente que o indivíduo que se revolta assemelha-se com o que nele há de revoltoso. Neste ele firma o seu domínio, podendo levá-lo para o Inferno.

Então, através dessas considerações, que na primeira linha são simples, percebemos que o demônio quer que todas as pessoas se pareçam com ele, tenham os seus defeitos, a sua maldade, e que vão para o destino eterno a que ele foi condenado. Ele quer ser dono de toda a humanidade, para tê-la consoante consigo. Por esse meio, ele quer impor o seu reino ao mundo; ele quer ser rei.

Atrair os congêneres, regra própria do ser vivo

Todo homem que tem um pouco de personalidade gosta de marcar o ambiente em que vive, com a nota do seu próprio feitio. Ele se alegra quando aqueles com quem ele convive lhe são harmônicos, lhe são afins; e quando, pelo contrário, essas pessoas não lhe são afins, ele tende a abandonar aquele convívio.

Por exemplo: um rapaz freqüenta determinado grupo em uma faculdade ou colégio. Analisando-se o porquê da freqüência àquele grupo, vê-se que é devido à afinidade das mentalidades. Se o grupo muda de mentalidade e ele não, o grupo não tem mais interesse para ele; se, pelo contrário, aparece mais um com aquela mentalidade, aproxima-se do grupo. Não se trata propriamente de questões doutrinárias, mas é porque uns gostam de jogar futebol, outros gostam de dizer palavrão, outros gostam de música, ou qualquer outra razão. Um gosto indica uma mentalidade, e as pessoas de mesma mentalidade procuram juntar-se.

A pessoa tem a sensação de que aquele que tem a mesma mentalidade que a sua é, de algum modo, um prolongamento ou um complemento seu. Faz parte da vida de todos os dias, nos seus episódios mais miúdos, as pessoas procurarem essa complementação através do convívio. Há uma expressão francesa que define isso muito bem: "Aqueles que se juntam, se parecem; e aqueles que se parecem, se juntam".

Isso é assim, inclusive em Deus Nosso Senhor. Deus procura exercer o Seu domínio sobre o mundo, para fazer com que todos os homens sejam parecidos com Ele, tenham a santidade dEle, participem da Sua virtude, participem da Sua Sabedoria. Ele quis, na sua infinita misericórdia - Ele, que não precisa de ninguém para ser completa e absolutamente feliz - quis ter uma porção de seres que fossem afins com Ele, que pudessem gozar da Sua presença e da alegria celeste de serem como Ele. A procura de um semelhante é a regra de todo ser que tem inteligência; é a regra até de muitos animais gregários, que só andam em bando, pois a sua natureza pede que andem juntos e eles se sentiriam mal se não o fizessem.

Isso é notório, inclusive na matéria inanimada. A matéria atrai a matéria (nos ímãs isso é muito sensível), mas, mesmo nas matérias que não têm um poder propriamente de imantação, isto é assim. Os Srs. conhecem a lei de Newton: "A matéria atrai a matéria na razão direta, etc."

Vemos então que atrair os congêneres é uma regra própria do ser vivo (homem, anjo condenado, anjo luminoso no Céu, Deus Nosso Senhor), e que esta regra existe mesmo entre os animais e entre os seres inanimados.

A especial razão de ser dessa regra é que todos os seres criados precisam de uma complementação. Deus, que não precisa, Se alegra com essa complementação; e por isso Nosso Senhor Jesus Cristo, o Homem-Deus, disse: "As minhas delícias consistem em estar com os filhos dos homens". Quer dizer, Deus tem alegria de estar conosco, tem satisfação de receber nosso culto e nosso louvor. Esta é a regra de toda a existência.

Santo Tomás desenvolve o pensamento de que toda ação pecaminosa marca uma mentalidade, que, pela sua própria natureza, é oposta à mentalidade de Deus. Por exemplo, o pecado contra a pureza. O que é que o pecado contra a pureza tem de intrinsecamente mau? Por que um pecado contra a pureza é censurável?

Há uma hierarquia dos cinco sentidos

Santo Tomás de Aquino explica que os cinco sentidos físicos do homem são tanto mais nobres e mais altos quanto mais se aproximam da alma, quanto maior analogia eles têm com a alma. Portanto, o mais nobre de todos os sentidos é a vista, porque é o que mais facilita a inteligência. Por meio da vista o homem conhece a maior parte dos dados necessários para pensar. A tal ponto que há pessoas (nisso andam mal, cometem pecado nefando) que, quando ficam cegas, se suicidam. Às vezes uma pessoa fica cega de repente, e a família procura evitar que fique ao seu alcance algum objeto com que possa matar-se, de tal maneira a cegueira é terrível, priva o homem do conhecimento do mundo externo. Nunca ouvi dizer que alguém se tenha suicidado por ter ficado surdo ou mudo; mas, quando se perde a vista, é um sentido tão alto, tão cognoscitivo, e serve tanto à alma, que a pessoa fica como que trincada, e pode ser tentada a suicidar-se.

Os Srs. vêem com isso que a vista tem uma nobreza muito alta, porque é através dela que o homem mais conhece. Depois vêm os outros sentidos: a audição, o olfato, o paladar, o tato.

O ouvido serve possantemente para conhecer. Por meio dele o homem ouve a palavra de outro homem, e entra em contato de alma com ele. O paladar e o olfato são sentidos mais materiais, que estão menos próximos da cognição. Algo se conhece pelo paladar, algo se conhece pelo olfato.

O sentido menos nobre é o tato

O sentido menos cognoscitivo é o tato. Por meio dele o homem conhece algo. Passando a mão sobre uma mesa, e sentindo como é lisa, algo eu conheço da natureza da mesa; mas muito menos do que pela vista.

Há portanto uma hierarquia dos sentidos, e o mais baixo dentre eles é o do tato. Não é sentido mau, pois todos eles são bons, mas é o menos alto, o menos nobre.

Devido ao pecado original, os vários sentidos não obedecem à vontade do homem, têm impulsos que são opostos à vontade e à razão; e quanto mais baixo o sentido, mais ele arrasta. Assim, pode haver uma pessoa viciada, por exemplo, em beber, é o vício do paladar; pode haver outras viciadas no olfato, as que cheiram entorpecentes; pode haver também pessoas viciadas em música - há melomaníacos que passam o tempo todo ouvindo música - mas isso já é mais difícil de se encontrar, pois o ouvido é mais nobre do que o olfato e o paladar.

Quanto mais baixo o sentido, portanto, mais facilmente dá em vício. Assim, não há o vício de olhar. Pode-se ter maus olhares, isso é diferente, mas o vício de ver, ninguém o tem. Abrem-se os olhos e vê-se; fecham-se os olhos e não se vê. É um sentido tão nobre, que não está sujeito a vício. O mais baixo de todos os sentidos, o tato, é aquele pelo qual o homem é mais arrastado e pode tornar-se mais facilmente viciado.

Reafirmando então o princípio: quanto mais baixo o sentido, mais terrível é o vício.

O vício próprio ao tato é a impureza

Qual é o vício do tato? É a impureza. O prazer do ato impuro é o prazer do tato, que, sendo quase todo ele animal, pouco tem de cognoscitivo. Não é inteiramente animal, porque o homem nunca pratica um ato inteiramente animal. Mas nada o pode aproximar tanto da animalidade quanto a impureza. O homem é tentado a se deixar arrastar pelo desejo de pecar, de praticar o ato impuro, e, uma vez que ele o pratica, é difícil abandoná-lo. O ato impuro torna-se pouco depois um vício.

Por que motivo se torna um vício? Porque é exatamente o ato mais animal de todos. A modalidade de vício em que o homem mais facilmente cai é a impureza. Viciar-se é adquirir um hábito muito difícil de se deixar. Para deixá-lo, há necessidade de uma graça, que se há de pedir sempre.

Na impureza, a parte animal do homem prepondera sobre a espiritual

O que acontece com a pessoa que se torna viciada é que a parte animal prepondera sobre a parte espiritual. Por exemplo, um homem embriagado causa uma sensação de animalidade. Vê-lo expelir o que bebeu, estar trocando as pernas pela rua, com hálito de álcool, língua pastosa, dizendo asneiras, cantando, deitando-se no chão de modo escarrapachado, tudo isto causa nojo.

Qual é a razão desse nojo? É que, devendo preponderar no homem a parte espiritual, no bêbado transparece uma tal preponderância da parte animal, que é algo estarrecedor. Naquele homem, sob um certo ponto de vista, a carne passou a preponderar sobre a alma, e ele se aproximou do bicho.

Se essa degradação do bêbado é uma desordem que a nós nos causa horror, muito maior horror nos causa a degradação de um impuro. Não dizemos que é contra a ordem natural satisfazer as apetências próprias da natureza humana, espirituais e materiais. Beber, por exemplo, é um ato normal. O mal está no excesso. É pelo excesso que o homem submete seu espírito à matéria, em vez de controlar esta por aquele.

Aplicando ao caso da pureza. De si, o ato sexual é natural ao homem. Porém, deve estar sujeito aos limites marcados pela finalidade do mesmo. Assim como a bebida deve satisfazer a sede, porque esta é a finalidade do alimento líquido, assim o ato sexual tende à procriação, e só se legitima quando ordenado a este fim, o que restringe seu uso apenas dentro do matrimônio. Depois do pecado original, no entanto, a apetência sexual se tornou por demais veemente, o que para o homem é humilhante, pois mais o aproxima do animal. Por isso, mesmo entre os pagãos, o ato sexual se recatava aos olhares do público. O século XX está pronto a abrir exceção.

Portanto, o que há dentro da impureza é uma preponderância da carne sobre o espírito. Uma preponderância avassaladora, arrasadora, que faz com que o homem se deixe arrastar e se animalizar. Por isso o homem impuro, a mulher lasciva ou um tarado nos causam desprezo, nos causam horror. Esse horror tem uma explicação racional. Não é uma pura impressão, uma pura sensação, não é um hábito que nos venha de nossa formação, mas é algo que obedece aos ditames da razão: é a animalidade.

Essa degradação é própria a causar horror

Sempre que se vê algo mais alto degradar-se voluntariamente para o que é mais baixo, isso causa horror. Por exemplo: é horrível ver um professor que se faz de criançola, e que assim expõe a sua própria autoridade, deixando-se abusar pelos alunos. É belo ver o professor que sabe se impor, fazer-se respeitar. Ele é a luz da sua sala de aula, e há alegria pela sua superioridade. O professor que se mete a frajola, a mocinho, e que se põe a namorar meninotas, é uma coisa ridícula, indecente, e que causa nojo. Toda degradação causa nojo. A degradação é a maior das desordens, pois, em vez de o ser procurar a sua própria perfeição, procura a sua própria imperfeição. É algo à maneira de um suicídio, e isso faz o homem quando se animaliza.

O homem que se rebaixa a uma categoria inferior procede como um suicida. Dá-se nele algo como uma depravação. Por isso dizemos que o indivíduo impuro é um indivíduo depravado.

Essa degradação desencadeia a ira de Deus

Deus, cujo olhar perscruta até os rins do homem, como diz a Escritura; Deus, que tudo vê do que se passa no homem, de mais íntimo, de mais interno, tem horror à alma que consente em degradar-se, à alma que não tem dúvida em animalizar-se, e, sobretudo, que não tem dúvida em praticar desregradamente o ato da maior animalidade, que é precisamente o ato impuro.

Deus, que deu ao homem a condição de homem, fez-se também Ele Homem. E cada vez que alguém peca contra a pureza, peca contra a sua dignidade humana. Pecando contra a dignidade humana, peca contra a dignidade de todo o gênero humano, porque o gênero humano é uma família, e, portanto, esse pecado é cometido contra a sua própria família. Mas nesta família está Nossa Senhora, está Nosso Senhor Jesus Cristo, pois "o Verbo de Deus Se fez Carne e habitou entre nós". Nosso Senhor Jesus Cristo, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, é Homem-Deus, e quando alguém peca contra a pureza ofende especialmente o Homem-Deus, porque ofende todos os homens que existiram, existem e existirão. Um só pecado contra a pureza insulta toda a natureza humana.

Acresce ainda que, a um título sobrenatural, o homem batizado é membro do Corpo Místico de Cristo. Há uma expressão de São Paulo tão enérgica que, se não fosse dele, eu não ousaria pronunciar. Ele diz textualmente o seguinte: "Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo? Tomarei eu, pois, os membros de Cristo, e os farei membros duma prostituta? De modo nenhum. Não sabeis que o que se junta com uma prostituta torna-se um mesmo corpo com ela? Porque serão - disse a Escritura - dois numa só carne".

A expressão é terrível. Mas, como somos ligados a Jesus Cristo pelo batismo e pela vida da graça, o pecado que cometemos atinge de algum modo também a Ele. O pecado que um homem comete com uma prostituta é igualmente horrível em ambos, pois são cúmplices, praticam o mesmo pecado juntos, não há diferença nenhuma. E quando se pratica o pecado da carne - que é da mesma natureza que a Carne de Cristo, batizada, e portanto remida pelo Seu Sangue - pratica-se um pecado contra a Carne de Cristo, prostitui-se a Carne infinitamente preciosa de Nosso Senhor Jesus Cristo. Esta é a realidade que temos a considerar.

Esta realidade, porém, ainda vai mais alto, sob certo ponto de vista. Deus é puro espírito e tem horror a que o homem degrade a sua própria alma, feita à Sua imagem e semelhança. Por isso, pelo pecado contra a pureza, o homem faz algo de terrível: ele insulta a sua própria alma e insulta a Deus, puro espírito, a cuja imagem e semelhança fomos feitos.

A luta entre Deus e o demônio, a propósito da impureza dos homens

Temos portanto dois pólos:

1) De um lado o demônio, que é o contrário de Deus, rejubilando-se com que as pessoas sejam impuras. Ele quer as almas diferentes de Deus, quer o contrário da ordem posta por Deus, quer a animalidade, a torpeza, a imundície e a desordem, e por isso quer a impureza;

2) Deus, pelo contrário, quer as coisas dispostas de acordo com a ordem, reflexo da sua personalidade divina; quer o homem puro. A pureza está no centro da ordem posta por Ele no universo.

Por um pecado mortal, Deus pode antecipar a morte do homem

Compreende-se dessa forma que, se um pecado mortal, um pecado contra a pureza, é uma tal negação de Deus, São Tomás de Aquino tire as conclusões implacavelmente: uma ofensa mortal a Deus dá à Sua justiça o direito de antecipar a morte daquele homem. Quem comete um pecado mortal, pela justiça de Deus é réu de morte, por isso ele se chama mortal. É um pecado tão grave, que o indivíduo deixa de ter algo de comum com Deus, perde a vida da graça.

Se a pessoa não teve dúvida em perder a vida da graça, em ficar inimiga de Deus pelo prazer de um instante, não é justo que Deus a mate? É claro que é justo. Muitos santos tiveram revelações, nas quais viram no inferno pessoas que cometeram um só pecado mortal, e logo depois morreram. Isso é próprio da justiça de Deus, que, para ser perfeita, tem que se exercer em todos os graus, e portanto, às vezes, em toda a sua severidade: nasceu, pecou, morreu. Pecou livremente, foi para o inferno. É natural, é inteiramente razoável, não pode haver margem para nenhuma dúvida.

O que se diz do pecado da impureza, diz-se de outros pecados, como por exemplo o homicídio voluntário. Alguém mata a outrem por puro ódio. Está de acordo com a ordem das coisas que o direito à vida é igual para todos os homens. Nós, que somos tão anti-igualitários, sabemos que não há nenhuma superioridade possível, de um homem sobre outro, que dê a um o direito de matar o outro. Se está na natureza das coisas que um homem não tem o direito de matar outro, aquele que comete o homicídio voluntário deixou-se arrastar por seu ódio animal; e, levado por essa animalidade, fez o que fazem os bichos uns com os outros. Os bichos vivem de se entre devorarem, senão os da mesma espécie, ao menos os de espécies diferentes.

O pecado é uma usurpação dos direitos de Deus

Deus odeia essa desordem, essa inversão, por onde o direito que Ele tem de dispor da vida de alguém foi usurpado por um outro que não tinha esse direito, levado pelo ódio. Esse ódio torna o indivíduo diferente de Deus, torna-o contrário a Deus. Resultado: Deus o abomina e o lança no inferno para todo o sempre.

Compreende-se a existência do inferno

Com isso os Srs. podem compreender melhor os horrores todos do inferno: um fogo tão terrível, que se o Pão de Açúcar nele fosse colocado, se consumiria num instante, reduzindo-se a um punhadinho de cinzas. Nesse fogo serão lançados os precitos por toda a eternidade. Eles se fizeram diferentes de Deus, se rebaixaram, se animalizaram; Deus os odiou, porque eles antes odiaram a Deus. Quem se rebaixou assim odiou a Deus. Este os chamou para serem puros, e eles disseram: "Não, é mais gostoso ser impuro". Nesta hora odiaram a Deus, porque preferiram a impureza. Essa é a lógica da questão, e nada pode ser mais lógico do que isto.

Tomemos ainda outro exemplo. Um homem mente, caluniando a outro. Se a calúnia é grave, ele cometeu pecado mortal, praticou uma ação abominável. Deus, diz a Escritura, tem horror à boca mentirosa; e é natural, pois a boca foi dada por Deus ao homem para dizer a verdade, e não a mentira. A palavra é um símbolo da verdade, e pela calúnia é transformada em símbolo da mentira. Deus odeia isto. Se o indivíduo caluniou gravemente, é natural que vá para o inferno.

O abuso da misericórdia provoca a cólera divina

O que dizer de um indivíduo que várias vezes cometeu pecado mortal, várias vezes se arrependeu, várias vezes foi perdoado? Todas as vezes que ele se arrependeu, foi por compaixão de Nossa Senhora. Sendo Ela Mãe de todas as misericórdias, pediu por ele, e ele foi tirado daquele pecado, recebeu a graça e correspondeu. Depois de ter sido várias vezes tirado do pecado, ele faz o seguinte raciocínio: "Eu já pequei tantas vezes, e não morri. Vejo que posso pecar mais cinqüenta vezes, porque Deus é um moleirão e não mata mesmo". Qual é o resultado disso? Deus diz: "Ah! Eu sou um moleirão? A você eu escolho, você vai morrer". Este provoca a cólera divina, por abuso da misericórdia.

Imaginem um mendigo muito pobre, cheio de feridas pelo corpo, nojento, que passa todos os dias perto dos Srs. e pede uma esmola. Os Srs. lhe dão a esmola, sabendo que, apenas recebida, este sujeito vai falar mal dos Srs. e caluniá-los. Apesar disso os Srs. têm pena dele, e continuam dando a esmola. Um dia os Srs. ficam sabendo que ele dá risadas e comenta com outros: "Está vendo aquele moleirão? Ele todo dia me dá esmolas, sabendo que falo mal dele. Mas é um tal moleirão, que no entanto não recusa. Querem ver? Vou pedir mais uma vez a esmola, e ele vai dar. Parece que ele gosta de ser ridicularizado". O que é que os Srs. diriam? "Não, a você não dou mais. Eu não posso permitir ser transformado por você em matéria de caçoada".

Com isso os Srs. compreendem que há uma proporção entre a pena do inferno e o pecado; compreendem o que há de intrinsecamente mau no pecado mortal, pelo que merece o inferno; compreendem o horror que devemos ter ao pecado, e como este é intrinsecamente péssimo.

Alguém poderia dizer: "Quanto ao pecado de impureza, não tendo eu nenhuma sensibilidade para ele, não vejo mal nenhum nesse pecado. Portanto, estarei cometendo pecado?" A resposta é: "Você cometeu um pecado pior do que a impureza, perdendo o sentido da diferença que vai entre a animalidade e a dignidade humana".

Resumindo os conceitos

Para resumir as idéias: O que o pecado tem de intrinsecamente mau?

Ele é sempre uma violação da ordem natural posta por Deus. Está na ordem natural que o homem não minta, não mate, etc. Esta violação da ordem natural, o homem sempre a faz arrastado por uma solicitação da carne; e todo pecado, a um ou outro título, é algo da carne que arrasta o homem a fazer o que o seu espírito nega. A um outro título, portanto, é uma degradação e uma animalização. Isto é particularmente sensível e digno de nota no pecado contra a pureza. A pessoa nesse estado fica diferente de Deus, não pode amar a Deus, de quem ela quis ser diferente. Nós só amamos os que nos são semelhantes; ninguém pode amar o dessemelhante.

Se, por um pouco de prazer, o indivíduo quis ser diferente de Deus, é porque ele amou o prazer mais do que a Deus; ele tem um ídolo, que é o próprio prazer. Como essa pessoa evidentemente detesta a Deus, o resultado é que, se não se arrepender, irá para o inferno; e cada vez que peca, corre o risco de não se arrepender e de ir para o inferno.

A vida é precária, e de um momento para outro alguém pode morrer

Na TFP nós temos perdido alguns membros, todos eles tendo morrido de modo muito edificante. Chama-nos a atenção ver que a maior parte dos que morreram eram jovens. É um recurso que a Providência utiliza, para que tenhamos bem em mente que podemos morrer de um momento para outro. A vida é precária, e de um momento para outro alguém pode ir-se.

Alguém dirá: "Ah, poderá arrepender-se na última hora!" Eu digo que pode, mas pode também não se arrepender. São Luís Grignion de Montfort diz uma coisa muito verdadeira: "É certo que, por prodígios da misericórdia de Deus, uma pessoa pode arrepender-se à última hora; mas o normal é que o grosso dos homens tenha o destino que corresponde ao seu modo de viver". "Talis vita, finis ita" - Assim como é a vida de um homem, assim é o seu fim. De maneira que, tendo vida péssima, o normal é que morra e vá para o inferno.

Daí essa quantidade enorme de almas que em épocas de paganismo se perdem. A pessoa vai passeando pela rua, é atropelada e foi colhida pela morte... Antes de ter-se dado conta do que aconteceu, está diante de Deus, e nem sabia que estava para morrer.

Eu já contei aos Srs. o acidente de automóvel que Dr. "X" sofreu há pouco tempo. Dr. "Y", que também sofreu um acidente de automóvel, disse-me que quando ele se deu acordo de si, já estava medicado na cama do hospital. Se ele tivesse morrido, teria sido julgado ato contínuo. Dr. "X", também; e dar-se-iam conta de que morreram por se verem, de repente, diante de Deus.

Isso pode acontecer a mim, mas pode acontecer a qualquer um dos Srs., a qualquer hora. Daí a necessidade de meditar, de pensar, de refletir.

O ato conjugal é ordenado à procriação

Há uma objeção que fica, e que quero resolver: Se o ato impuro é mau, por que no casamento não o é? Nós não deveríamos, por lógica, condenar o casamento?

No casamento católico o homem tem uma só esposa, e a mulher um só esposo. O casamento é monogâmico, indissolúvel, só se dissolvendo pela morte. O casamento, nestas circunstâncias, tem as condições para que o ato que perpetua a espécie humana seja praticado em consonância com os ditames da razão. Já não há, de nenhum modo, aquelas explosões e ardências do pecado impuro, não há a animalidade do pecado impuro. No casamento o ato conjugal é exercido conforme os ditames da razão, com o intuito primordial de dar filhos a Deus Nosso Senhor. Além disso, este ato está sujeito a uma porção de limitações, de tal modo que, se o homem não for muito senhor de si, cai em pecado. A fidelidade conjugal é muito difícil de ser mantida. Um homem casado, que tenha consentido num olhar impuro, peca por adultério por um simples olhar, e é um pecado mais grave do que o pecado correspondente praticado por um solteiro.

Ele é obrigado, portanto, a manter uma tal disciplina para não pecar, que para os casos comuns e normais é mais fácil ser inteiramente casto do que manter a fidelidade dentro do casamento. É preciso muito domínio de si, muita energia. Acresce ainda que, em certas fases, o ato conjugal não deve ser realizado. Há toda uma série de circunstâncias que tornam muito difícil à pessoa dominar-se dentro do casamento. Por tudo isso o ato conjugal nada tem de animalesco. Ele é lícito, porque é conforme à natureza, é praticado para a sua finalidade normal, e não por um mero prazer.

Apesar disso a Igreja, sempre cautelosa, deseja que os clérigos não se casem, para que a alma deles seja mais livre, mais elevada para as coisas superiores. Em certos ritos católicos orientais em que o padre se casa, ele não deve celebrar Missa na manhã correspondente à noite em que ele praticou o ato conjugal. Não porque haja nisso qualquer pecado, mas porque a alma do homem entra mais em ordem quando, na noite anterior, não teve nenhuma relação.

Vemos então como é delicada a moral católica a respeito do assunto, como ela é complexa, e quanta nobreza de alma ela envolve. E compreende-se assim o horror que devemos ter ao pecado.

O leito do homem puro é como um altar

Compreende-se também a beleza da vida de um homem puro. Eu costumo dizer que o leito de um homem puro é como um altar. E o é, porque o leito onde um homem dorme puro é como um altar em que se oferece o tempo inteiro. Mantendo a sua castidade em um sono casto, ele está deitado ali, vigiado por Deus, sob o olhar de Deus.

Que belo pensamento para antes de se deitarem: "Agora eu vou dormir, e ficarei entregue à Providência de Deus mais especialmente do que em qualquer outra hora. Eu não poderei velar por mim, porque estarei dormindo. Pode ser que eu morra durante o sono, pode ser que alguém me ataque enquanto eu estiver dormindo, pode ser que eu adoeça. O sono é uma espécie de prefigura da morte; é um buraco agradável, mas obscuro, cheio de surpresas. Eu aqui me deito na presença de Deus que vela por mim, e que saberá levar-me ou conservar-me, segundo superiores desígnios dEle. Em qualquer caso, Ele olhará para mim e dirá: `Ali repousa aquele Meu filho puro, aquele Meu filho casto. O repouso dele sobe a Mim como um aroma de agradável incenso; como é belo o sono de Meu filho!'"

Que beleza, nesse sentido, um lugar habitado por varões puros. Enquanto eles dormem, a cidade está imersa no pecado. Deus olha para aqueles varões puros, que Lhe parecem uma coleção de pedras preciosas reluzindo aos Seus olhos, e cobre o seu sono com Sua bênção. Cada um tem o seu Anjo da Guarda à cabeceira, e para cada um sorri Nossa Senhora enquanto ele dorme. Que maravilha a vida do homem puro!

O mau odor do pecado e o perfume da virtude

Houve santos particularmente dotados do discernimento dos espíritos, que sentiam o mau cheiro dos pecados dos penitentes. São Filipe Neri, se não me engano, era um deles. Diziam que o cheiro do confessionário era simplesmente nauseabundo e insuportável, por causa dos pecados. Mas então as virtudes também têm aromas.

Os Srs. imaginem, subindo constantemente de uma cidade, o cheiro do pecado. As almas obscuras, andando de um lado para o outro, rompidas com Deus. Mas, de vez em quando, vêem-se alguns pontos luminosos no meio dessa escuridão; e esses pontos luminosos deixam um perfume correlato com essa luz. É uma verdadeira harmonia, que corta as trevas como um anjo corta os demônios, espadagando e lançando-os de um lado para o outro, seguindo o seu caminho.

Graças a Deus, não são apenas os membros da TFP puros em São Paulo, mas podemos esperar que todos eles o sejam. Que beleza imaginar nessa cidade a Providência, Nossa Senhora, os Anjos, os Santos do Céu, acompanhando os passos do homem puro e as suas vitórias. Ele é tentado pela mulher indecente que passa, e desvia os olhos; ou pela mulher indecente que ele nem sequer viu, porque resguarda tão bem os seus olhares. Ele passa pela vitrine indecente, por cenas indecentes, e às vezes é tão puro, que aquilo nem lhe constitui um assalto. Quando ele chega em casa, é como um guerreiro que percorreu um campo de batalha e venceu todos os adversários. Pode existir uma coisa mais bonita? Esta é a vida do homem puro. É claro que para ele o Céu está aberto, e que os sorrisos de Nossa Senhora o esperam. Quando vir no Céu a pureza dEla, ele se encantará; e Ela lhe dirá: "Meu filho, também a tua pureza Me encantou; vem gozar da presença de Deus junto a Mim, por toda a eternidade".

 

O Juízo Universal - Beato Angélico (Museu de São Marcos - Florença)

A recompensa e o castigo demasiadamente grandes

Se o prêmio é fabuloso, o castigo é terrível. A vida é esta grande realidade: a oscilação entre esse prêmio e esse castigo. O homem que escolhe sempre o prêmio será super-premiado; o homem que escolhe sempre o castigo será super-castigado.

Há uma frase de Nosso Senhor no Evangelho, com a qual eu concluo: "Serei Eu mesmo a vossa recompensa demasiadamente grande". Esta frase sempre me impressionou enormemente. Mas Ele poderia também dizer: "Serei Eu mesmo o vosso tormento demasiadamente grande".

Com isso, meus caros, está explicado por que um simples pecado mortal acarreta tais castigos, e por que um simples ato de fidelidade proporciona tais prêmios. São as perspectivas sublimes da Religião Católica, nas quais a alma do católico deve viver.


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