Plinio Corrêa de Oliveira
Poligamia, Divórcio e a Misericórdia de Deus "Santo do Dia", 25 julho de 1970 |
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A D V E R T Ê N C I A O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor. Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito: “Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”. As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.
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Hoje é festa das Bem-aventuradas Teresa de Santo Agostinho e Companheiras, Virgens e Mártires. Essas 16 carmelitas de Compiègne, foram martirizadas pela Revolução Francesa, por ódio à sua fidelidade ao Instituto e à sua devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Ao Instituto quer dizer, à Ordem das Carmelitas e por causa da devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Nós estamos aqui mais uma vez diante de uma biografia de um conjunto de pessoas muito comentada já no Grupo em outros tempos e que os senhores conhecem bastante. Parece-me que é mais razoável eu atender, portanto, ao pedido de pessoas que mais recentemente têm feito perguntas sobre pontos que importam [N.R.: Sobre as Carmelitas de Compiègne sugerimos a leitura das matérias: Comentários ao filme "Diálogo das Carmelitas" e O martírio de sacerdotes nos massacres de setembro da Revolução Francesa, do Prof. Plinio, onde ele analisa vários aspectos de seu sublime martírio]. * * * Há uma pessoa que me pede para explicar o seguinte: ela diz que teve uma formação, por professor de moral, relativista, e que sabendo que o rei Davi praticava a poligamia e que esta fora permitida por Deus por causa da dureza de coração dos judeus no Antigo Testamento, ele ficava com a idéia de que a moral pode variar com os tempos. Foi-lhe explicado, então, que o direito natural tem os princípios primários e os princípios secundários. Pela própria ordem das coisas, os princípios primários da moral nem Deus pode dispensar. Por exemplo, o princípio de que é proibido blasfemar. Nem Deus pode conceder para alguém licença para blasfemar. Mas há outros princípios secundários de moral em relação aos quais Deus pode dispensar e um desses seria a poligamia. Pelo que entendi do bilhete, ele dá por bem explicado esse ponto, mas pergunta uma coisa: se Deus no Antigo Testamento dobrou-se à maldade dos homens e tolerou a poligamia, por que Deus não permitiu também no Novo Testamento o divórcio, que é uma forma mais atenuada de poligamia, é uma poligamia a prestações? A poligamia simultânea é pior do que a poligamia sucessiva. Então, não se compreende porque Deus no Novo Testamento, que é o Testamento da misericórdia, não tem mais pena dos homens do que no Antigo Testamento em que preponderava a severidade; e não se compreende porque, então, a Igreja não permite o divórcio em função da mesma razão pela qual Deus no Antigo Testamento permitiu a poligamia. Eu passo, então, a essa segunda resposta. É verdade que no Novo Testamento, estamos no Testamento da misericórdia. Mas, o auge da misericórdia de Deus não consiste em permitir que o homem viole a lei natural secundária, mas consiste em lhe dar tanta força que ele possa não violar a lei moral secundária. Isso é - evidentemente - o auge da misericórdia. Porque o praticar a poligamia é de todas as formas uma desgraça, um estigma de inferioridade, de infelicidade. É uma ação que, embora permitida por Deus, não se conforma inteiramente com a lei natural. Pelo contrário, praticar a monogamia é uma felicidade muito maior, é muito mais nobre, muito mais digno do que viver chafurdado na poligamia.
E Deus levou tão longe a misericórdia para com os homens no Novo Testamento, que lhes concedeu muito mais graças que no Antigo Testamento, muito mais força que no Antigo Testamento, razão pela qual a virtude é mais abundante, é mais frequente, mais numerosa na Igreja Católica que na Sinagoga. Nesta última houve verdadeiros santos, os Patriarcas da Antiga Lei, os Profetas são santos. Nós acabamos de invocar um grande santo cuja existência terrena primeira transcorreu no Antigo Testamento, que foi o profeta Elias. Mas a santidade era excepcional e os homens não tinham a força que têm hoje, o mesmo grau de graça, o mesmo grau de força sobrenatural para praticar a lei de Deus. Foi porque não apenas a graça necessária, mas a abundância dessa graça seria dada aos homens até o fim do mundo, que Deus dispôs de uma vez - e está revelado isto no Novo Testamento - que o casamento no Novo Testamento seria indissolúvel. E Ele estabeleceu na Sua Sabedoria e no Seu Poder, que esta concessão, que tinha razão de ser no Antigo Testamento, não tem mais razão de ser no regime da graça, da plenitude que é o Novo Testamento, e por causa disso, então, Ele hoje não cede como antigamente. É um pouco — para fazer uma comparação — um pai que tem dois filhos que são fracos das pernas. Há um que é fraco da perna, o pai apoia muito misericordiosamente, anda com ele, sustenta, etc. etc. A outro, o pai cura. A quem o pai deu força maior? Àquele que curou, ou a quem ele tolera de andar apoiado nele? É claro que àquele que ele curou. Porque é mais misericordioso curar a doença do que ajudar aguentá-la, ou a tolerar as fraquezas que dela decorrem. É óbvio, entra pelos olhos. Também Deus manifestou-se menos misericordioso com os do Antigo Testamento, a quem Ele amparava na situação de poligamia em que caíram, do que os do Novo Testamento a quem deu a graça para não cair na poligamia. De maneira que a gente compreende bem a Sabedoria de Nosso Senhor quando Ele estatuiu: no Novo Testamento o casamento é indissolúvel e a poligamia fica proibida. Não sei se isto ficou bem claro para o meu consulente. Se quiser, pode depois me escrever um bilhete, que eu tentarei explicar melhor a pergunta. Se algum dos senhores quiser fazer alguma pergunta agora, poderei responder. (Pergunta: A pessoa poderia dizer o seguinte: se Deus se dobra aos homens, por que Ele é todo-poderoso? E um progressista poderia dizer o seguinte: como é que Deus se dobrou aos homens daquele tempo? Hoje Ele não poderia se dobrar também? Quer dizer, um superior às vezes necessita se dobrar diante de um inferior?) Eu explicaria a questão de um modo um pouco diverso: diante de um homem que quer fazer uma coisa má, em última análise quer violar um preceito, digamos assim, mas quer violar um preceito que em última análise é dispensável, Deus tem três atitudes possíveis: a) uma é exterminar o homem; b) outra é dispensá-lo do dispensável; c) outra é dar-lhe tanta graça, que já não tenha vontade de violar esse mandamento, embora esse mandamento seja dispensável. O que Deus faz? Deus não extermina o homem, mas dispensa-o do mandamento, do preceito dispensável. Pode-se dizer que Deus se dobra ao homem, que Deus se manifesta em algum sentido inferior ao homem? Não, o dispensar do dispensável não é uma humilhação para Deus, não é uma vergonha para Deus, uma derrota; é uma misericórdia de Deus para com o indivíduo, sem ser uma inferioridade de Deus em relação ao indivíduo. É mais ou menos como um rei muito poderoso que tem um súdito que lhe faz uma impertinência, mas não uma impertinência de morte. O rei pode, na sua bondade, dizer: "não vou puni-lo, mas eu vou alterar o protocolo da corte de modo que isso deixe de ser impertinência, para não ter que castigar aquele indivíduo". A gente pode dizer que o rei se dobrou àquele indivíduo? Ele tem um ato de misericórdia, mas não foi um ato de inferioridade que contrasta com seu poder, foi um mero ato de bondade. Quer dizer, a dificuldade por detrás estava em compreender como é que Deus foi bom em vez de castigá-lo. Mas isso não cabe no problema do poder, porque o poder para castigar Deus tem. Então, cabe no problema de explicar a misericórdia. Como é que Deus sendo tão poderoso é misericordioso? Não sei se a impostação da questão está clara? A justificação da misericórdia faz-se facilmente da seguinte maneira: o senhor imagine um artista, um artista eminente que com toda a facilidade pinta quadros excelentes. Ele tem um quadro e alguém rasga esse quadro. Mas é um quadro que ele pintou, que gostou de pintar, em que pôs uma parte de sua alma. Ele tem duas soluções: ou jogar aquele quadro no lixo e pintar um novo, ou consertar o quadro que pintou. Ele dirá: "nesse quadro eu pus algo de minha própria alma, eu amo esse quadro porque me lembra tal episódio assim de minha vida. Embora eu pudesse tão facilmente consertá-lo ou pintar um novo, porque eu amo aquilo que fiz vou consertar esse quadro". Nós diríamos que esse artista agiu bem ou não? Nós diríamos que ele agiu bem. Ele poupou algo que fez que foi a obra de suas próprias mãos. Ele se amou naquilo que fez e, então, ele quis conservar aquilo que realizou. Assim faz Deus conosco. Nós pecamos, mas Deus prefere nos poupar e tentar a nossa emenda do que nos aniquilar, porque somos obra de Sua mão e Ele Se ama em nós. Embora Ele com igual facilidade pudesse nos consertar ou criar outro, Ele, entretanto, prefere nos consertar. E procede como aquele hipotético artista. A bondade de Deus é conservadora. É, aliás, o por onde nós defendemos o espírito conservador. A bondade de Deus é conservadora, sendo conservadora, Deus prefere salvar a perder, não por uma falta de força, mas porque Ele Se ama naquilo que fez. Não sei se está claro?
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