Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

São Bruno, a despretensão e a santa solidão

 

 

Santo do Dia, 5 de outubro de 1968

 

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A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.

No dia 6 de outubro a Igreja festeja São Bruno, confessor. D. Guéranger, no “L’Année Liturgique”, diz a respeito dele o seguinte:

São Bruno nasceu em Colônia, por volta de 1035”.

Portanto, em plena Idade Média.

Muito jovem ainda ele foi a Reims, cujas escolas eram célebres. Muito cedo sua inteligência se firmou e seus progressos foram tais, que desde logo o arcebispo de Reims lhe confiou o cargo de escolástico da catedral, o que lhe dava a direção dos estudos e a inspeção de todas as escolas da diocese”.

O novo mestre teve alunos numerosos e fervorosos, entre os quais Eudes de Chatillon, o futuro Papa Urbano II (pregador das Cruzadas). Sábio e letrado, São Bruno conhecia o grego e o hebraico. Isso tudo aliado a seus gostos poéticos e à sua amabilidade natural, explicam o entusiasmo que era despertado pelos comentários que ele fazia sobre a Sagrada Escritura.

Sua autoridade cada vez crescente e o prestígio de sua santidade, não tardaram em lhe suscitar numerosos inimigos. Porque defendeu a ortodoxia e a justiça contra um prelado indigno, Bruno perdeu seu cargo, seus títulos e seus bens. Foi depois obrigado a se exilar. Quando voltou, em 1082, depois da deposição de seu perseguidor, pensou-se em nomeá-lo sucessor do prelado indigno, mas Bruno tinha compreendido a vaidade das coisas criadas e tinha feito voto de entregar sua vida a Deus”.

Com dois amigos, ele se retirou em Molesmes, onde São Roberto, Santo Alberico e Santo Estevão Harding preparavam esta forma de vida monástica que acabaria sendo a Ordem Cisterciense. Mas Bruno deseja o silêncio e a solidão absoluta e no mesmo ano de 1084 ele partiu com alguns companheiros para o Delfinado, que era uma província da França.

O Bispo de Grenoble, São Hugo de Chateauneuf, seu antigo aluno em Reims, recebeu com alegria o pequeno grupo e o conduziu ele mesmo a um lugar ainda selvagem, ainda não desbravado e quase inacessível, no deserto de Chartreuse. Ele empreendeu imediatamente a construção de um mosteiro e no ano seguinte, em março de 1085, a igreja do mosteiro foi consagrada. Foi essa pequena ermita, de uma concepção absolutamente nova, que devia servir de modelo às Cartuxas de todos os países”.

A tranquilidade de São Bruno não durou muito tempo. Desde a primavera de 1090, uma carta do Papa Urbano II o chamava a Roma, para o serviço da Santa Sé Apostólica. Depois de alguns meses passados na corte pontifícia, no fim desse mesmo ano de 1090, Bruno partiu para a solidão de Squillace, onde o conde da Calábria, Roberto Guiscardo, lhe tinha cedido vastos terrenos. Foi lá que, a 6 de outubro de 1101, ele adormeceu tranquilamente no Senhor”.

Um Cartuxo rezando em sua cela

A vida desse santo nos desperta várias considerações importantes: a primeira delas é percebermos bem qual é a origem espiritual profunda das Cruzadas.

As Cruzadas, esse movimento magnífico que constitui uma glória da história da Igreja; as Cruzadas tão detestadas por toda espécie de modernistas que tem aparecido ultimamente e tem infestado a Cristandade; as Cruzadas, das quais o Papa João XXIII, por exemplo, dizia que nem podia ouvir o nome, mas que foram convocadas por Papas extraordinários, nas quais santos verteram o seu sangue.

A primeira dessas Cruzadas foi pregada por Urbano II, cuja formação espiritual tinha sido dada por um santo e grande santo, que é exatamente São Bruno, cujo biografia estamos estudando no momento presente.

São Bruno foi perseguido por um bispo indigno e nos deu o exemplo do que se deve fazer quando se está sob a autoridade de um bispo dessa condição: deve-se defender a ortodoxia como ele fez. O bispo, segundo D. Guéranger deixa entender, era herege, era o homem que tinha maus princípios. São Bruno entestou com o bispo e sustentou a verdade. Não lhe desobedeceu no que tinha de autoridade legítima. E assim foi o mais obediente dos súditos.

Mas em matéria de ortodoxia deve-se obediência à Igreja. E se alguém, em nome da Igreja, ensina princípios falsos, que não são princípios da doutrina tradicional dos Papas, deve-se dizer que aquilo está errado.

Foi o que São Bruno fez, sendo, por causa disso, perseguido. Perseguido, foi para longe, deixando um cargo eclesiástico opulento que ele tinha e na solidão nasceu no espírito dele a ideia de abandonar todas as coisas da terra, mesmo as coisas santas do clero secular, para viver exclusivamente para Deus.

 

Catedral de Reims

Daí ele voltar e ser convidado para ser bispo de Reims. Tinha grande prestígio de santidade, talento, era um homem muito atraente. O cargo de arcebispo de Reims era um dos cargos mais importantes da Europa naquele tempo. Não há nem uma sombra de analogia entre o que era um arcebispo de Reims naquela época com o que é hoje. Atualmente, é um arcebispo como outro qualquer. Mas outrora os reis da França se coroavam em Reims. O arcebispo de Reims tinha o título de Duque e Par do Reino; a catedral da cidade era uma das mais frequentadas por toda a Cristandade, e era um monumento para o qual se voltavam com atenção, com insistência, não só as considerações artísticas, mas também piedosas de todo mundo de então.

Em outros termos, o arcebispo de Reims era uma personalidade internacional. Convidado para esse cargo, ele o recusou e desistiu dessa alta colocação para realizar o seu desejo que era levar uma vida completamente no isolamento, completamente na solidão, meditando apenas a respeito de Deus Nosso Senhor. Esta vida concebida assim, devemos a ver como o auge da despretensão: um homem que abandona todo o resto, que afasta de si o cargo de ser arcebispo de Reims!...

Os senhores podem imaginar, de outro lado, que consolação teve! Ele, perseguido por um mau arcebispo e vem a ser, ele, convidado a ocupar o cargo do seu perseguidor que acabava de ser deposto! Que vitória brilhante! Que irradiação de seu talento para toda a Cristandade! Como ele poderia se iludir com a ideia de que poderia ser mais útil como arcebispo de Reims, do que afundando-se num deserto, ele, um santo que deveria conhecer seu próprio valor.

Mas apesar disso, Deus o chamava para a solidão. Na solidão, a ignorância, o abandono de todos. Ele, entretanto, procurando exclusivamente a Deus, encontrou uma verdadeira colônia de santos. Vem aqui enunciada a lista dos santos com os quais fez uma ermida, a qual foi construída logo, tornando-se famosa em toda a Cristandade pela virtude dos homens que lá estavam.

Isto é uma dessas coisas que os modernistas não compreendem. Eles concebem o apostolado exclusivamente como uma ação pela qual o apóstolo vai correndo atrás de outros. Essa é uma forma de apostolado, muito legítima e muito santa. Mas há uma outra forma de apostolado, pela qual o apóstolo foge dos outros e atrai os outros a si mesmo.

Esta forma de apostolado precisamente São Bruno a praticou e em pouco tempo a sua ermida estava famosa. E ele, que contava viver exclusivamente para Deus no isolamento, recebe de repente uma convocação honrosíssima: é chamado à corte pontifícia por seu antigo aluno, Urbano II. Mas logo que pode, ele se desvencilha disso, e vai para outra ermida na Itália. Funda outra ermida, encontra aliás um lugar solitário para onde acorre e aí tranquilamente morre.

Qual foi o resultado dessa vida? Ele fundou uma Ordem Religiosa, a dos Cartuxos, que é um modelo de solidão. Os cartuxos vivem mais solitários do que os próprios trapistas, porque estes últimos vivem em comunidade num convento e aqueles vivem sozinhos, em pequenas casas, encontram-se apenas para as refeições e para o Ofício Divino, mais nada. O resto do tempo, cada um está sozinho na sua cela.

Às vezes os cartuxos saem juntos para fazer um passeio. E até há algum tempo, quando foi relaxada a regra, eles iam em fila indiana e quietos. Esse era o passeio dentro de suas imensas propriedades... contrárias aos desejos dos agro-reformistas, onde podiam passear sem ser vistos por ninguém. Esta solidão impressionou, enlevou e atraiu o mundo, passando a ser uma das glórias da Igreja Católica. A Ordem dos Cartuxos se espalhou por toda a terra.

Por toda a terra? Como eu digo isto com tristeza! No Brasil, a Ordem dos Cartuxos não existe. No Brasil, nenhuma ordem contemplativa de homens existe. Ao Brasil veio o próprio e famoso Dom Chautard fundar uma Trapa, que existiu na região de São José dos Campos, no meio daqueles lindíssimos e imenso arrozais, mas que fechou por falta de vocações...

Mas em outros países onde há mais recolhimento, onde não há o vício da extroversão, de ficar prestando atenção no que fazem os outros, em vez de prestar atenção em si mesmo, onde há mais compreensão da contemplação, nesses países a Cartuxa floresceu e embalsamava - pelo menos até há pouco - com seu odor toda a Cristandade. 

Esta Ordem tão admiravelmente contemplativa, tornou-se conhecida por outra circunstância: o famoso licor “Chartreuse” é de sua fabricação. E temos aqui estas coisas que aturdem dentro da Igreja, porque parecem contradições e, no fundo, são supremas coerências. Homens que se votam à penitência, inventam um licor que os maiores gozadores da vida consideram excelentes. Eles fabricam esse licor, vendem esse licor, detêm o segredo do licor, dão o seu nome ao licor – “chartreuse” é cartuxa em francês, quer dizer, o lugar onde o cartuxo vive - e esse licor circula pelo mundo inteiro...!

Como é que as duas coisas se compaginam, como entram em coerência uma com a outra? É que exatamente o licor pode ser bebido de um modo qualquer, mas pode ser bebido a la conhecedor, e é uma coisa espiritual, de bom gosto, que eleva a alma que sabe apreciar. São Paulo já disse numa de suas Epístolas que o vinho módico alegra os corações dos justos; os corações bons se alegram tomando vinho módico.

O que é esse vinho módico? Eu me lembro que já comentei uma vez aqui. Alguns traduzem assim: é o vinho em quantidade moderada. Outros entendem que não, que São Paulo nem sequer falou em quantidade moderada; que havia uns Montes Módicos que produziam um vinho chamado Módico, e que esse vinho seria muito fino, muito bom, e que São Paulo tinha querido dizer que o vinho produzido pelos Montes Módicos, ou da marca chamada Módico, alegrava o coração dos justos.

Pela interpretação do texto, a questão não é tão ociosa, ela tem seu interesse; eu chegaria a dizer que ela tem seu sal. Eu nunca entrei no fundo da análise disso. Foi um monge beneditino muito sutil e apreciador de vinho - coitado! mais do que a moderação mandava... - que me pôs ao par dessa delicadeza da exegese cristã.

Mas de qualquer maneira, o princípio está posto pelo Espírito Santo: o vinho, tomado como deve ser tomado, causa alegria para os corações dos justos. Não mudou a “chartreuse”, mas mudaram os homens: são poucos os capazes de beber um licor “Chartreuse” como um santo deve bebê-lo. Mas não é contrário à virtude que se tome um licor delicado, se deguste e daí se remonte a Deus. É o contrário: a virtude muitas vezes consiste em subir das coisas elevadas até Deus.

Crucifixo ao qual abaixo se refere o Prof. Plinio

É por raciocínio análogo que nossa sede, sendo uma sede muito bela em vários de seus aspectos, não é uma sede que afasta de Deus, mas é uma sede que conduz para Ele. Os senhores vejam esse Crucifixo pertencente ao Dr. Paulo, que aqui está. Essas pontas de prata, por exemplo, não estavam na cruz de Cristo. O que significam essas pontas de prata nesse Crucifixo? São adornos com que o fiel exprime a glória com a qual ele quer ver cercado o Cristo crucificado.

Esse resplendor também: ele faz obra de arte, de luxo e a Igreja abençoa que essas obras de luxo sejam justapostas à imagem da máxima dor, do máximo sofrimento, da máxima abnegação e da máxima recusa e renúncia à toda espécie de luxo. Como se explica isto? Exatamente a verdadeira obra de arte canta a glória do coração desapegado, da alma enlevada, que transcendeu às exigências do corpo e que voa nas paragens do espírito e que está pronta para os voos do sobrenatural. É por isto que a Igreja justapõe essas coisas. E essa é uma lição que os cartuxos dão na menor e na mais conhecida das manifestações de sua existência, que é a fabricação do licor “Chartreuse”.

Nós devemos pedir alguma coisa a São Bruno amanhã, que é o seu dia, embora a festa do santo não prevaleça em dia de Domingo. O que devemos lhe pedir? O amor à despretensão. Nós não pretendermos ter nada, não pretendermos parecer nada, nós amarmos viver desconhecidos, ignorados pelos outros, voltados exclusivamente para Deus Nosso Senhor e para Nossa Senhora, ainda que vivendo no meio dos outros, não nos preocupando com o que os outros estão pensando a nosso respeito.

E seja lá por quem for: nossos círculos sociais ou as pessoas pelas quais tenhamos essa forma de sujeição meio hipnótica que a geração nova tem em relação a alguns mais próximos, sermos indiferentes. Julguem-nos como quiserem! não nos julguem! olhem-nos com uma insistência exagerada! vaiem-nos! persigam-nos! aplaudam-nos!... para nós é completamente indiferente. O que nos importa a nós é a nossa solidão.

Não apenas a solidão material, não estarmos fisicamente no meio dos outros: é uma solidão espiritual, pela qual nada nos importa em última análise, a não ser a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, a ortodoxia, a fidelidade ao estado de graça e à verdadeira doutrina católica, a salvação de nossa alma e nós irmos para o céu. A própria salvação dos outros só nos importar porque dá glória a Deus, caso contrário não nos importaria também. Isso é o que devemos acima de tudo desejar.

Exatamente essa solidão que tem como ricochete que quando se alcança essa graça, não se tem a mania de viver no meio dos outros, não se tem a mania de viver conversando com os outros, não precisa estar continuamente falando ou ouvindo falar. Mas a gente tem a alegria da santa solidão.

São Bernardo - outro grande solitário - tinha essa expressão magnífica: “O sola beatitudo, o beata solitudo. - Ó tu que és a única bem-aventurança, ó bem-aventurada solidão”! A alma pode medir em que medida é de Deus, na medida em que aprecia a solidão. Ou melhor, ela aprecia a solidão, na medida em que ela, estando só, se sente unida a Deus, se sente em contato com Nossa Senhora, se sente mais autenticamente uma célula viva e sagrada da Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana.

Assim, portanto, devemos pedir esse espírito de despretensão e, portanto, de recolhimento a São Bruno, esperando que dessa forma ele ponha em nós algo do espírito admirável de seus filhos, que são os cartuxos. O verdadeiro católico deve admirar todas as Ordens Religiosas e a tal ponto que tenha em si algo de todas elas, tenha uma síntese de todas as Ordens Religiosas dentro de si. Não como elas são, infelizmente, hoje em dia, mas como deveriam ser.

Então, amanhã nosso pensamento deve enlevar-se com São Bruno e com a Cartuxa e deve desolar-se pensando que, infelizmente, é provável que também as Cartuxas estejam numa situação tristíssima. Então pedir a São Bruno que olhe para a pobre situação da pobre Igreja Católica, Apostólica, Romana...

Como essas palavras cortam os lábios e cortam o coração! A Igreja que é a Rainha do mundo, a obra prima de Deus, dEla se poder dizer: a pobre Igreja Católica, Apostólica, Romana!...

Pobres de nós que não passamos pela tristeza de não compreender o que é a pobreza da Igreja Católica, Apostólica, Romana. Vamos pedir a São Bruno que nos faça compreender isto e que no Reino de Maria a Cartuxa refloresça bem como todas as joias da Igreja, para a glória de Nossa Senhora e de Nosso Senhor Jesus Cristo.


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