Plinio Corrêa de Oliveira
A instituição da Família e as Estirpes nas origens da Idade Média
"Circular aos Sócios e Militantes da TFP" - Ano I - Nº 4 - 01 de junho de 1966 |
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A D V E R T Ê N C I A O presente texto foi publicado na "Circular aos Sócios e Militantes da TFP", com matéria extraída de anotações tomadas em conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, sem data, não tendo sido revista pelo conferencista. Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:
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A obra de Funck-Brentano "L’Ancien Régime" (Arthème, Fayard e Cie., Paris, 1937) dá-nos ocasião para tecer considerações acerca das origens da Idade Média. Historiador de grande renome, o autor é contudo naturalista. Mas bem examinada, com espírito crítico, suas obras nos são de grande valia. No final destas considerações, apresentaremos uma rápida crítica de seu livro, para aqueles de nossos colaboradores que queiram estudá-lo. A família no "Ancien Régime" No primeiro conjunto de capítulos Funck-Brentano trata da família. Ele parte da posição muito boa de que, no Estado, a matéria-prima fundamental é a família.
O Cardeal Billot, em seu livro "De Ecclesia", discorrendo acerca do Estado orgânico, diz, magistralmente, que quem definisse o corpo humano como um conjunto de células diria um disparate, mas se dissesse ser um conjunto de órgãos diria uma grande verdade. Com efeito, o corpo humano não é constituído simplesmente de células, mas de células que por sua vez compõem órgãos. As unidades do corpo humano mais próximas são os órgãos. Se alguém, olhando para uma bacia d’água, dissesse que ali há hidrogênio e oxigênio, não diria bem a realidade. Ali existe água. Há, de fato, hidrogênio e oxigênio, mas em estado especial, o estado de água. Assim, quem definisse a sociedade humana como sendo constituída de indivíduos diria igual absurdo. Ela compõe-se primacial e essencialmente de famílias. Estas é que, por sua vez, são constituídas de pessoas humanas. Na sociedade humana encontramos, antes de tudo, o homem vivendo em família e constituindo família. Apenas secundariamente encontramos o indivíduo. A matéria prima do tecido social é portanto a família. Funck-Brentano desenvolve a tese de que o Estado francês – e ele subentende o mesmo para todos os Estados do Ancien Régime – nasceu de uma ampliação da família, e que, de fato, os Estados não são senão famílias em ponto grande. E ele passa a dar a origem do Estado francês, historiando o nascimento das famílias. Ele nos dá uma das muitas teorias para a explicação do feudalismo. É curioso que um historiador do porte de Funck-Brentano tome somente esta explicação e a imponha. Mas esta é muito plausível, como veremos. Teoria de Funck-Brentano sobre a origem do Estado francês Os séculos mais aflitivos da História foram, certamente, quando ruiu o Império Romano do Ocidente e a Europa viu-se invadida pelas primeiras hordas bárbaras. Os francos eram de um barbarismo o mais rude que se possa conceber. Mas com o passar do tempo foram sendo civilizados, embora precariamente. Nos séculos VII e VIII as hordas representavam apenas pouco menos que a barbárie. Fora este, tão somente, e após tremenda luta, o modestíssimo fruto conseguido pela Igreja Católica. Alguns ela arrancara ao arianismo, convertera outros, e ia conseguindo um lento processo de mitigação e dulcificação dos costumes.
Sobre esta imensa obra, ainda em começo, sopraram então, de modo verdadeiramente trágico, os tufões da adversidade. As torneiras do mundo não cristão se abrem, e catadupas de pagãos invadem a Europa. Da Rússia e da Prússia, regiões ainda desconhecidas, desceram bárbaros, ainda mais primitivos que os da primeira invasão, assolando, saqueando, reproduzindo os horrores antes perpetrados no Império Romano do Ocidente. Do norte, pelo mar, vieram os normandos, de igual rudeza. Em determinado momento, tomados de um furor navegatório, famílias, tribos, nações, o reino inteiro meteu-se em barcos e pôs-se a viajar. Iam em cascas de nozes, beliscando o litoral, saqueando, comendo, arrasando. Alguns de seus chefes intitulavam-se "reis do mar". Nesta sanha chegaram até Constantinopla e invadiram Bizâncio, sempre assolando tudo, fazendo por vezes incursões profundas e deixando alguns pelas terras onde passavam, que continuavam a obra de destruição. De outro lado, vindos da Espanha e invadindo até o coração da França, surgiram os sarracenos. Atravessaram o Mediterrâneo, atacando alguns o sul da França e outros a Itália. Todas as forças infernais desencadeadas abateram-se sobre a Cristandade ocidental. O desastre foi imenso. Uma civilização que mal começa a se construir, nascida de um milagre – a conversão dos arianos e dos francos fora simplesmente milagrosa – e no momento em que inicia sua consolidação, sopram ventos tais que a tudo desconjuntam. O fato é histórico, e Funck-Brentano a ele se reporta, sem contudo poder ver, naturalista que é, o que se passou além da ordem da natureza. É um dos mais belos episódios da história da Igreja. Uma civilização que não tivesse os seus recursos sobrenaturais teria sucumbido. Teríamos visto o seu desabamento e o fim da obra. É fora de dúvida, contudo, que foi este desastre, em grande parte, a causa do nascimento do mais extraordinário regime político e social havido na história do mundo, o feudalismo. A família na origem do feudalismo Com efeito, os homens mais civilizados, horrorizados com o que sucedia, começaram a galgar os montes e montanhas, fixando-se nos pontos menos acessíveis. De tal modo que os normandos, passando, não tivessem vontade de atingi-los. Começaram, por outro lado, a fixar culturas e a construir casas por detrás dos pântanos, nos lugares chamados marécage, zonas pantanosas atrás das quais há regiões férteis. Os bárbaros, que percorriam os caminhos das grandes cidades, não os encontravam, por estarem escondidos por detrás dos pântanos, nas montanhas, nas regiões as mais inóspitas.
Eram fugas desordenadas, levadas a efeito pelo pavor. Por isso fugiam, não cidades inteiras, mas grupos de famílias. E cada qual para onde podia. Em presença da rudeza da natureza e dos adversários que os atacavam de todos os lados, não tendo mais um Estado que os governasse – pois que os reis, fracos e sem nenhum poder, não podiam fazer chegar suas ordens a esses lugares absolutamente recônditos – ficaram reduzidos à célula inicial da sociedade, a família. Esta foi a organização natural primeira que lhes permitiu sobreviver. Apareceu então o paterfamilias desta célula que era ao mesmo tempo um pequeno exército, uma pequena unidade religiosa, um pequeno núcleo de produção, constituindo em cada ponto do território um pequeno país. Em cada um destes grupos sociais, um homem, em geral de envergadura maior, tomava a direção. Ele era o suporte natural daquela coletividade em debandada. Era um homem de personalidade muito ampla, dotado do poder de chefiar, da perspectiva dos perigos, da capacidade de organizar, e no qual todos encontravam ponto de apoio. Ele organizava a vida. Sua prole herdava suas qualidades e herdava suas funções. Em torno deste homem e desta família princeps começaram então a se aglutinar as famílias dos fugitivos, constituindo pequenas unidades sociais, que eram naturalmente monárquicas e familiares. Monárquicas pela presença de uma autoridade única inquestionável; familiares porque, em essência, o que havia era o chefe com sua grei, e depois os agregados que ali entravam como pessoas admitidas, toleradas, semi-assimiladas, mas que não constituíam propriamente a essência daquela unidade, que se consubstanciava no chefe e na sua família. Funck-Brentano dá-nos uma descrição em extremo pitoresca – no que ele é exímio – de uma dessas pequenas aldeias de tipo fundamentalmente familiar, que vai se formando. Ele descreve o pitoresco dos primeiros trabalhos, a derrubada das árvores centenárias, a construção das primeiras choupanas, o primeiro aproveitamento do solo, as primeiras colheitas, as primeiras batalhas, o pequeno exército familiar que sai à luta, em defesa de uma família vizinha ou contra uma horda bárbara que se aproxima, a pequena indústria que vai nascendo das mãos da família. Começa a produção das armas, as mulheres tecem, aparecem certas criações, como a das abelhas. Tudo isto faz de cada família um pequeno mundo, e no centro está o chefe. Onde está o Estado? Quase não existe. Todas as funções que lhe são próprias, exerce-as o chefe da família. Objeção à teoria de Funck-Brentano A teoria de Funck-Brentano sobre a origem do Estado francês não é muito clara. Pois a Inglaterra, ao tempo em que o feudalismo nascia por esta forma, era invadida pelos normandos, e já antes destes pelos anglo-saxões. Lá encontraram uma população de celtas, que tinham o nome de bretões, donde provém a Bretanha de nossos dias. Os celtas, que eram cristãos, foram derrotados e sumariamente expulsos pelos invasores, os quais converteram-se e deram origem à Irlanda e ao País de Gales, onde até hoje fala-se um resquício da língua céltica.
As tribos celtas, esmagadas, recuaram diante dos agressores e fixaram-se durante algum tempo na Escócia. Tendo um destino tão parecido com o das tribos francas, diante da mesma desgraça, obrigadas a fugir da mesma forma, não reagiram contudo do mesmo modo. Eles não se fixaram de maneira a dar origem ao sistema feudal, mas deixaram-se abater, romperam com a Igreja Católica, caíram no cisma, e nada produziram que prestasse, senão seus remotos descendentes, o País de Gales, a Irlanda e a Bretanha. Nada de grande como o feudalismo nasceu daí. As nossas tribos índias, vivendo perdidas no meio da natureza bravia e indiscutivelmente hostil do Brasil, também não produziram feudalismo algum. Dizer que a desgraça provocou o feudalismo seria o mesmo que afirmar que o florescimento da Igreja nascente deveu-se às perseguições: perseguidos, os católicos reagiram; reagindo, tiveram zelo; e com isto dominaram o mundo pagão antigo. É uma explicação por demais mecânica, automática. Há uma sociedade, sopra um tufão, destrói tudo; todos se reúnem nos lugares ermos, e ali nasce o feudalismo... Quem afirmaria que a única atitude possível desses povos era realmente reagir e constituir uma célula viva em cada lugar? Quem afirmaria que eles tinham certamente de produzir em cada refúgio um homem de valor, que fundasse uma estirpe capaz ela mesma de continuar a sua obra? Quem afirmaria que eles teriam pujança de engenho suficiente para reconstituir uma fecundidade sobre terras em extremo pobres, e daí provocar outro impulso social? Quem afirmaria que eles teriam tato bastante para, desaparecidas as circunstâncias, manterem a autonomia familiar, em lugar de se deixarem devorar pelo Estado? As estirpes, eis o que Funck-Brentano não acentua Estamos diante de um dos fatos primordiais da história da humanidade. Quando estas tribos semi-civilizadas foram empurradas para o alto dos montes e para detrás dos pântanos, começou a nascer uma série de estirpes. E este é o fato que Funck-Brentano não acentua suficientemente. Uma estirpe é algo muito diverso de uma família. O que é uma família? É a conjunção de pai, mãe e filhos. Basta haver pais legitimamente casados para que haja família. Estirpe, contudo, é bem diverso. A língua francesa, que é muito precisa, fala em source, ou seja, fonte, origem. Eles tanto dizem source de uma família quanto source de um rio. O que vem então a ser a source de uma família? O que é um homem-estirpe? Aquele que funda uma estirpe é um homem com personalidade bastante vigorosa para criar uma família que mantém a hereditariedade de seus principais traços morais e físicos; é um homem que dá aos seus uma formação suficientemente forte para que o impulso inicial que ele comunica a uma determinada ordem de coisas continue depois dele; é um homem que funda uma escola de modo de sentir, de agir, de ser, de vencer dificuldades, que funda um pequeno sistema de vida. Eu afirmo que é preciso ter muito mais personalidade para fundar uma estirpe do que para governar um Estado. Isto, qualquer político o faz. Mas para fundar uma estirpe é preciso ter uma personalidade pujantíssima; e para que ela seja lançada em sentido sadio, é preciso que seja pujantemente sadia. O admirável neste momento da história européia é que essas famílias, escorraçadas, banidas, lançadas ao sumo infortúnio, reagem; e formam-se estirpes por toda parte, as estirpes nobres da Europa. Essas estirpes que nascem, e que vão marcar mil anos de História, nascem no infortúnio o mais atroz. Pelo seu vigor natural, e sobretudo pela correspondência que seus membros deram à graça de Deus, a família abandonada, isolada, deu origem à família nobre, e o conjunto das famílias nobres deu origem à Europa. Eis a verdadeira história do feudalismo. Convergência de circunstâncias na origem do feudalismo Funck-Brentano tem razão ao demonstrar que o feudalismo nasceu destes fatos. Mas há uma série de outros que ele não cita, e que o prepararam. Não é o momento de estudarmos este problema, que nos levaria a outro rumo. Vejamos contudo, sumariamente, alguns destes fatos. Entre os sucessores de Carlos Magno, ficou assentado que os cargos seriam vitalícios e hereditários; isto era já um princípio de feudalismo. Mesmo no tempo de Carlos Magno ele já nomeava condes, que eram os grandes proprietários de determinada região. Vê-se que ele já tinha o intuito de apoiar a administração central sobre os valores locais autênticos. Por outro lado, podemos afirmar que um conjunto de fatores que nasciam das entranhas cristãs da sociedade do tempo preparava esta distribuição justa de cargos. Não há dúvida, pois, que tudo isto concorreu muito para a criação do feudalismo. É uma convergência de circunstâncias. Ele nasceu de tantos fatores, que seria mais certo apontá-lo como resultante da convergência deles. Nosso Senhor Jesus Cristo constituiu feudalmente, de direito divino, a Sua Igreja. O bispo é o senhor feudal de que o Papa dispõe. Seria normal, portanto, que das entranhas da sociedade cristã nascesse naturalmente o feudalismo, não como a única forma possível de organização da sociedade, mas a mais adequada, a mais compatível com a ordem divina. As estirpes e o homem Tendo as estirpes tido tal importância na formação do feudalismo, detenhamo-nos mais acuradamente no seu estudo. Se conceituarmos bem a família, saberemos o que é que nasceu, quando dizemos que surgiram as estirpes. Mas para isso será preciso entrar a fundo na análise dessa realidade que se chama homem. O homem é dotado de alma e corpo. De acordo com a tese que nos é tão cara, as realidades espirituais e invisíveis podem ser manifestadas aos olhos dos homens por meio de realidades materiais visíveis. Há uma forma de nexo misterioso entre a alma e o corpo, de tal maneira que aquela tem uma espécie de símbolo neste. O corpo humano, por sua cor, traços fisionômicos, timbre de voz, dinamismo, modo de se mover, é um reflexo da alma. Ele deixa transparecer as suas qualidades, e é esse todo harmônico de alma e corpo que constitui a pessoa humana.
Assim caracterizado, o homem é suscetível de um maior ou menor desenvolvimento físico ou moral. No terreno físico o fenômeno é por demais conhecido. Se um recém-nascido é colocado em um ambiente em que suas energias físicas são estimuladas, a criança pode vir a tomar grande corpulência, ao menos a que lhe permita a sua natureza; mas, colocada em circunstâncias desfavoráveis, ela definhará. O mesmo podemos dizer da alma. Nela existe uma série de potencialidades, que se desenvolverão se as condições em que a colocarmos forem propícias. Caso contrário, dificilmente estas qualidades se afirmarão e triunfarão. Podemos pois considerar um desabrochar mais ou menos completo da alma humana, de acordo com as condições em que estiver. Assim como o corpo se realiza plenamente em determinadas circunstâncias, assim também a alma. E é a plena realização da alma e do corpo, conjuntamente, que constitui a plena realização da pessoa humana, que é alma e corpo. Tomando isto em consideração, melhor compreenderemos o que seja uma estirpe. A família é a instituição de ordem natural, fundada num sacramento, incumbida da perpetuação da espécie humana e da educação da prole. É uma instituição, portanto, que tem como obrigação desenvolver e educar ao máximo a personalidade humana. Ela cumprirá perfeitamente sua missão se fizer com que todas as qualidades do corpo e da alma, daqueles que dela nascerem, se expandam e se afirmem completamente. Ora, para isso ela é dotada de qualidades que são extraordinárias. As forças misteriosas da hereditariedade Num discurso à nobreza romana, Pio XII fala das forças misteriosas da hereditariedade. São misteriosas, de fato, pois que até hoje os biologistas não conseguiram definir satisfatoriamente as regras que presidem a hereditariedade. Mas ela é um fato, e muito importante, constatado sob mil aspectos diversos. Cada homem traz dentro de si várias hereditariedades. Somos a resultante biológica de um sem número de correntes de vida, que vieram ter em nós o seu ponto de encontro. Assim como numa lagoa existem águas de diversos rios que nela desembocam, assim existem em nós essas hereditariedades. Somos recipientes em que várias correntes do passado se fundem. A hereditariedade física, em primeiro lugar, que se atesta pela semelhança dos traços, pela transmissão da saúde e dos defeitos, da beleza e da feiúra, da graça ou do emburramento, da elegância ou do desengonçamento. Tudo são hereditariedades. Conhecemos certas famílias que timbram pelo bom gosto no trajar-se; outras, pelo mau gosto. Um exemplo bem descrito é a família Guermantes-Courvoisier, de Marcel Proust, que estava sempre na penúltima moda. Tudo isto, embora muito relacionado com a hereditariedade física, o está ainda mais com a mental. Deus cria as almas para os corpos, e cada uma é criada com adequação para um determinado corpo. Assim, havendo hereditariedade física, Deus a respeita, criando almas hereditariamente semelhantes aos corpos que irão nascer. Se bem que a alma não seja transmitida dos pais para os filhos, mas infundida por Deus, há uma continuidade na sua obra. Pode-se atestar numa família uma série de disposições de alma, puramente espirituais, mas também ligadas a este fenômeno da hereditariedade. Temos então uma realidade que na família atravessa gerações: a transmissão de um conjunto de predicados físicos e morais. Essa transmissão é o primeiro núcleo daquilo que se chama tradição. Tradere significa entregar; é o que se transmite, o que se entrega. O primeiro dado da tradição é a transmissão de caracteres físicos e morais. A hereditariedade e o ambiente Esta transmissão de caracteres físicos e morais é acentuada pelo ambiente. Suponhamos que eu, que tenho uma inclinação natural para a advocacia, tendo nascido numa família de advogados, fosse transplantado artificialmente para uma de financeiros, que entende de preço de sapatos, qualidade de graxas, alta dos couros, etc. Eu teria me tornado um ser meio engarrafado, porque as aptidões naturais que em mim jazem em estado germinativo teriam ficado sem a possibilidade de se expandir. No momento em que eu quisesse fazer um rodeio de frases bem feito, uma argumentação sutil, não encontraria nas graxas e nos sapatos matéria para tal. Eu precisaria conversar e interessar-me pelas graxas, ficando meio contaminado pela sua sujeira. O resultado é que eu poderia talvez até dar um bom comerciante de graxas, mas haveria algo de irremediavelmente trincado em minha pessoa. As forças profundas de minha hereditariedade pediam que eu fosse advogado, intelectual, mas as circunstâncias da vida teriam esmagado este apelo do meu ser, e me imposto uma personalidade artificial. Como, pelo contrário, fui educado numa família de advogados, os meus pendores naturais tiveram expansão, e pude realizar-me. Tudo o que em mim havia em estado germinativo desabrochou, floresceu, e realizou o pouco que podia realizar. Num ambiente de família onde existe hereditariedade de alma, de corpo e de atmosfera moral, encontramos todo um ambiente espiritual que acentua o efeito da hereditariedade, obrigando a pessoa a dar absolutamente tudo quanto tem. Mas a hereditariedade é uma força cheia de mistérios. Tem exceções, é próprio dela ter exceções, às vezes até gloriosas. Há homens que brilhantemente rompem a crosta das disposições familiares, para virem a ser algo muito mais alto. Mas a regra geral permanece intacta. A tradição e as estirpes Estes três elementos – a hereditariedade de corpo, de alma e o ambiente moral – completados com outros, como a expressão da mentalidade da família no modo de ser cortês, no modo de conversar, de decorar a casa, de cozinhar, de tratar os negócios, no modo até de conceber as relações afetivas, o casamento, o noivado, etc, todo este conjunto constitui a tradição que uma família transmite. Se estas forças podem ser extraídas, desenvolvidas e firmadas pela família, a família deve produzir esta tradição. Chamamos estirpe uma família que assim produz uma tradição: um tipo físico muito continuado, um tipo de constituição psíquica e nervosa muito definida, um tipo de virtudes, e às vezes também de defeitos muito definidos, um sistema de vida, um estilo de existência, tudo muito definido. Estirpe é uma família que carreia consigo uma grande densidade de tradição, sob todos estes aspectos, e que constitui um todo homogêneo e igual a si mesmo, através de vários séculos. Os homens passam, a estirpe é sempre a mesma; como um rio, em que a água passa, mas ele é sempre o mesmo. Esta noção de estirpe precisa ser completada. Não há estirpes somente na classe nobre, mas em todas as classes sociais. Se ela é o produto natural do desenvolvimento da família, e se esta é chamada pelos desígnios da Providência a desenvolver-se, devemos ter séries e séries de estirpes em todos os graus da hierarquia social. Estirpes de padeiros, de príncipes, de lixeiros, de joalheiros, de cantores. É o conjunto destas estirpes que constitui a nação. E a nação não apenas no presente, mas como uma continuidade histórica, no passado, no presente e no futuro. O Brasil de hoje é o mesmo Brasil de outrora porque descende das mesmas e antigas estirpes, conservando uma identidade de tradição. Porém, à medida que estas estirpes vão se desbotando e sendo substituídas por novas, sem verdadeira tradição, ele já não é mais o mesmo. Este é um processo multissecular. O Egito de hoje já não é o Egito de outrora, pois as estirpes não são as mesmas. O que Funck-Brentano não viu O que nasceu no feudalismo, tanto nas cidades como nos campos, foi um conjunto enorme de homens que formaram estirpes. Este conjunto de estirpes, e de organizações com base em estirpes, é que propriamente constituiu a Idade Média. O que ela teve de mais intrínseco e arraigado foi esta estrutura de estirpes, vivificada pelo espírito de família. Isto foi o que Funck-Brentano não viu. Por que razão a Revolução detesta esta ordem de coisas? Porque é a menos igualitária delas. A afirmação de que os homens não só são desiguais depois de nascidos, mas o são antes mesmo de nascerem, é abominável aos revolucionários. Nesta concepção, via de regra o futuro do indivíduo está pré-estabelecido pelo aproveitamento que o seu livre arbítrio dará, conforme corresponda ou não à graça de Deus, às riquezas que a hereditariedade nele depositou. Ainda que aproveite muito, não será mais do que aquelas riquezas o permitirem. E elas são muito desiguais. Chegamos assim a uma desigualdade hereditária, que é o contrário do que a Revolução Francesa afirmara. Ela quis fazer crer a igualdade de todos os homens. Tolerou, por não ter outra solução, a desigualdade baseada no mérito. Mas esta tradição, resultado de um conjunto de méritos passados, que dá ao homem uma formidável vantagem sobre os demais, este elemento de desigualdade, jamais ela toleraria. A desigualdade fundamental que afirmamos está necessariamente ligada às estirpes e à organização da família. A estirpe é contra-revolucionária ainda por outro aspecto. Tomemos como exemplo algum clube: o Harmonia, em São Paulo, um clube grã-fino. É puramente artificial, meramente convencional. Poderia chamar-se Lírio Azul, ter sua sede num bairro proletário e constar de outros sócios. A estirpe, não: é como deve ser, e não pode deixar de ser daquele modo. Ela constitui uma espécie de personalidade coletiva de cada um. Cada qual será ele mesmo na medida em que estiver integrado em sua estirpe, e desenvolver as qualidades próprias a ela; não poderá ser outra coisa, não poderá querer para si algo que era próprio dos Condés. Cada qual só conseguirá ser o que é, da melhor forma que puder. Se esta personalidade coletiva se romper ou truncar, é sua própria personalidade que ficará ferida. Cada homem não pode deixar de fazer parte da sua estirpe. Se esta sofrer algum detrimento, é ele que sofrerá. A sua mentalidade é um fragmento dela. O natural da pessoa é estar integrada num todo com o qual tenha conaturalidade. As estirpes e o Estado Se houver uma família com caracteres bem definidos, espraiando-se numa parentela muito remota, mas muito unida, em que todos tenham a sensação viva de serem membros da mesma família, cada membro será amparado por um grupo social independente do Estado. A família é uma potência, um todo, move-se independentemente do Estado, constitui uma célula com a qual o Estado tem que contar. Seus membros não dependem de Institutos de Previdência; se empobrecerem, a família os ajudará. Os parentes constituem o meio de suas relações, que lhes asseguram uma posição social, independente da maneira de se trajarem, etc. Com instituições desta natureza o Estado pouco pode. Se alguém nasceu em determinada estirpe, o Estado não a pode promover muito além disso. Uma estirpe definida é o fator da própria independência do indivíduo, cria uma barreira contra arbitrariedades do Estado. Numa sociedade repleta de estirpes há grupos sociais muito importantes, que o Estado deve a todo momento tomar em consideração. Uma sociedade sem estirpes, onde só há parentescos vagos e as famílias se desbotam, é a sociedade de hoje. Na organização feudal e medieval a matéria-prima são as estirpes. São um, dois, dez séculos de continuidade histórica realizada por essas estirpes. É preciso notar que os historiadores são concordes em afirmar a existência de obras que precisam ser levadas a cabo por várias gerações: a fundação de certos países, o desenvolvimento de certa política, a criação de certas fontes de prosperidade. A instituição que, de direito natural, assegura a realização da obra histórica através das gerações, é a família. A estirpe faz com que, ao longo das gerações, uma dinastia realize uma obra: uma família de sineiros aperfeiçoe certo tipo de sinos, uma de viticultores chegue a produzir um vinho excelente, ou uma de professores apure um sistema didático incomparável. São obras de gerações, e são as obras mais profundas da História. De direito natural, devem ser desenvolvidas por estirpes. As famílias na justiça de Deus Os homens, sendo eternos, serão julgados na vida eterna; mas as nações, não o sendo, receberão prêmio ou castigo nesta Terra. O mesmo se dá com as famílias: como tais, não se salvam nem se perdem; têm a recompensa de suas qualidades ou a punição de seus defeitos nesta Terra mesmo. Certas famílias terão até seu anjo da guarda próprio. Este o mistério de que nos fala muitas vezes a Escritura: famílias que são chamadas a uma certa missão, recusam, e saem do cenário histórico; outras, que correspondem à graça, começam a florescer, e Deus faz nascer delas homens inteligentes, capazes, ilustres. Não quer isto dizer que cada família que empobreça o seja por punição; mas, de um modo geral, pode-se dizer que a ascensão ou decadência das famílias está relacionada com o uso que tenham feito das graças divinas. Um homem, pois, assegura a continuidade e ascensão de sua estirpe praticando atos de virtude que se somam, como que numa balança, cá na terra. O bem de um avô recairá sobre o neto. E muitas vezes a punição de um acaba caindo sobre o descendente. Tal é a continuidade da família, que a sua balança na justiça divina é uma só. Uma das razões do tédio da vida de família hodierna está em que são famílias frustradas. As personalidades e a conversa também o são, e uma das frustrações – quanta maldição daí provém! – é que nem todos os filhos nasceram. Numa família do Ancien Régime – nobre ou plebéia, porque todas são miniaturas umas das outras, do rei ao mais pobre – todos pensam e sentem do mesmo modo, todos se querem, a prole é fecunda, a família existe. Se vão passear juntos, é porque lhes é conatural estarem uns com os outros. Com a atual decadência das famílias, isto tudo já não mais se dá. Se elas fossem estirpes, todos sentiriam esta conaturalidade; cada comentário feito por um repercutiria em todos de modo agradável; seria uma espécie de sinfonia. Hoje é uma cacofonia pobre, com poucos instrumentos, e além do mais dissonantes, porque quase não são mais sonantes. Estirpes fora do âmbito familiar Pode, por fim, haver estirpes fora do âmbito propriamente familiar. Em geral, as grandes instituições são estirpes que não estão muito rigorosamente baseadas sobre as famílias. Constituem famílias de almas: Ordens religiosas, universidades, o exército alemão. São estirpes espirituais, um tanto relacionadas, em certos casos, com estirpes naturais – no exército alemão era tradicional certas famílias ocuparem certos postos – ou não relacionadas, como no caso das Ordens religiosas. Estas estirpes constituíram também o corpo social da Idade Média. CRÍTICA DO "ANCIEN RÉGIME", DE FUNCK-BRENTANO Terminadas estas considerações sobre as origens do Estado francês na Idade Média, passemos a uma crítica, embora rápida, do livro de Funck-Brentano. Conceituação do "Ancien Régime" Temos de fazer uma primeira restrição quanto à conceituação do Ancien Régime, do qual ele faz um magnífico elogio; merecido, aliás. No nosso modo de entender, não é absolutamente um regime ideal. Segundo nossa concepção, ele não se situa como uma época apenas cronologicamente intermediária entre a Idade Média e os tempos modernos, mas também religiosa e moralmente. É um período em que a sociedade vai lentamente resvalando para o abismo da Revolução Francesa. Tendo a sociedade medieval abandonado seu ideal primitivo, entrou numa rampa histórica. E quando se acompanha detidamente este movimento descendente, vê-se até que seu resvalar não foi tão lento. O Ancien Régime é uma era na qual se apontam muitas coisas boas, mas que não lhe são próprias, pois são aspectos medievais que ainda lhe restam. Por outro lado, tem inúmeros pontos maus, aspectos já do Estado moderno que vai surgindo. Sob este ângulo, não podemos subscrever os elogios feitos por Funck-Brentano. Aplicando-se a teoria dos intermediários, de São Tomás de Aquino, dá-se que, quem do fundo do século XX lança um olhar para o Ancien Régime e mede o abismo que dele nos separa, tem a impressão de divisar a Idade Média. Mas quem do alto desta olhasse para o Ancien Régime, veria o longo trajeto revolucionário já percorrido, e teria a impressão de nele estar vendo já o século XX. O elogio de Funck-Brentano ao Ancien Régime não contém senões, enquanto o nosso comporta inúmeras restrições, as quais, em boa parte, foram apontadas por Tocqueville. Em livro antigo, mas muito atual, Tocqueville mostra como a política dos reis da França consistiu incessantemente em preparar o Estado moderno, procurando acabar com a Idade Média e abafar tudo que de melhor havia na França. Foram propriamente os reis da França – mostra-nos Tocqueville – os grandes artífices da Revolução Francesa. Concepção relativista a respeito de Civilização Cristã Uma segunda restrição cabe fazer a Funck-Brentano. Segundo sua concepção, os Tempos Modernos são diferentes do Ancien Régime, mas não maus. Ele estuda aquela era como se poderia estudar a civilização hindu, encontrando ali muitos aspectos curiosos, mas que serviriam apenas para a Índia, num dado estágio da vida daquele povo. Funck-Brentano não vê no Ancien Régime nenhum ideal para o qual devamos voltar, e nem sequer que tenhamos feito mal em dele nos destacar. Cada povo tem, segundo seu modo de ver, a forma de governo que compete a cada momento de sua história. O Ancien Régime foi por isso bom, e erraríamos se o julgássemos mau. Mas concluir daí que o modo de vida do século XX é errôneo, é uma posição que ele não toma. Ao contrário, ele o considera bom para a época presente. Nada há, pois, de ideológico ou de filosófico em sua atitude, no que divergimos profundamente. O que então podemos aproveitar de Funck-Brentano? Os traços medievais do Ancien Régime, ele os descreve com maestria. Através de tal descrição, podemos fazer uma representação concreta e histórica dos nossos ideais. É o que procuramos desenvolver, neste apanhado sobre as origens da Idade Média. |