Plinio Corrêa de Oliveira

 

São Pio V atribuía toda a tristeza da Igreja

aos pecados cometidos dentro dEla própria

Diferenças entre lutador e briguento

 

 

 

Santo do Dia, 4 de maio de 1966

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A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.

 

 

Hoje é festa de São Pio V (1551-1572), Papa e Confessor. Dele afirma o Martirológio que se aplicou com zelo e entusiasmo a restaurar a disciplina eclesiástica, extirpar as heresias e esmagar os inimigos do nome cristão. Ele foi inquisidor supremo, promotor da batalha de Lepanto.

Dados narrados por D. Guéranger, em L’Année Liturgique e de Rohrbacher, na sua Histoire Universelle de l’Eglise Catholique:

“Miguel Ghislieri, futuro São Pio V, foi nomeado superior de numerosos conventos, e [deplorou] logo o relaxamento, corrigindo abusos, mantendo a disciplina. Com ele pareceram ressuscitados os Pacômios... Onde se encontrasse fazia reviver o espírito de São Domingos em toda sua pureza e fervor. Era notável sua assiduidade nos exercícios do claustro. No exercício divino, destacava-se por sua humildade sincera, por seu amor à solidão, ao silêncio, à pobreza, à mortificação e seu zelo contra as heresias de seu tempo. Por isso foi feito inquisidor da fé em Como. Cumpriu seu ofício com prudência, mas foi objeto de perseguição, correndo risco de vida. Em 1557, Paulo IV o fez Cardeal. Todo o Sacro Colégio agradeceu ao Pontífice por lhe ter dado um tão digno colega. Malgrado suas numerosas ocupações, o agora cardeal Ghislieri era imensamente afável, quer com aqueles que vinham tratar de negócios sérios, quer com os que vinham importuná-lo...”

 “A ninguém jamais fez recusas, nunca foi recusada uma audiência e o todo de sua conduta, como suas menores atitudes, faziam compreender que Deus o elevava dia a dia, a fim de que dessa altura ele pudesse servir, instruir, edificar o maior número de pessoas.

“Eleito Papa, Pio V reuniu todos os dignatários e domésticos de sua casa, prescreveu-lhes regras de conduta, declarou o que esperava deles, segundo seu estado, e advertiu que não aceitava nenhuma infração aos princípios de uma piedade exemplar. E ele dava exemplo. Austeríssimo consigo mesmo, não abandonava suas vestes de monge sob os trajes pontifícios, nem mesmo sobre a dura enxerga que lhe servia de leito. Todas as noites fazia uma longa visita aos sete altares da Igreja de São Pedro”.

 

Que cena bonita! A Igreja de São Pedro já fechada, e o papa santo, indo de altar em altar para rezar na solidão da igreja, seguido provavelmente por uma ou duas pessoas que conduziam velas, alguma coisa assim, e rezando longamente. Que cena maravilhosa!

 

“Em conjunturas importantes, passava noites inteiras de joelhos, consultando a Deus sobre suas decisões. Seu sêlo, no lugar do escudo, trazia esse versículo de um salmo: “Possam meus caminhos estar dirigidos a guardar a Vossa justiça”. E para não se afastar nunca do sofrimento de Cristo, tinha sempre diante de si, sobre uma mesa, uma imagem de Nosso Salvador na Cruz, ao redor da qual estavam escritas essas palavras de São Paulo: “Longe de mim gloriar-me senão na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Dirigindo-se a cardeais, notou-lhes que o meio mais seguro de apaziguar a cólera de Deus, de deter os hereges que atacavam a Igreja, os muçulmanos que estendiam seu império de barbárie, era em primeiro lugar regular suas vidas e suas casas. 'É a vós, dizia, que Cristo dirige as palavras: Vós sois a luz do mundo, vós sois o sal da terra'.

“Roma era publicamente devorada pelas cortesãs (...). Pio V publicou um edito muito rigoroso contra (...), banindo-as de Roma e dos Estados pontifícios, chamando-as as ‘pestes da república’ (res publica). (...)

“Depois de seis anos de um pontificado cheio de lutas, entre os quais destaca-se o esforço do papa contra os turcos e a obtenção da vitória de Lepanto (1571) por sua oração a Nossa Senhora do Rosário, Pio V passou a ser objeto do ódio por parte dos inimigos da Igreja. Tentaram matá-lo, empregando para isso os meios mais pérfidos. Uma vez, por um estratagema tão covarde quanto sacrílego, secundados por uma odiosa traição, passaram veneno nos pés do crucifixo que o santo tinha no seu oratório”...

 

Isso é uma infâmia! Matar um papa, um papa santo, matar na hora em que ele vai oscular o crucifixo, e pôr o veneno no próprio crucifixo, são requintes de infâmia...!

 

“...que osculava com freqüência. Como se preparasse para sua homenagem diária à sagrada imagem, eis que os pés do Crucificado destacam-se da cruz e como que se afastam do respeitoso ancião. Pio V compreendeu, então, que a malícia de seus inimigos se transformara para ele em instrumento de morte. No leito de morte, lançando um último olhar à Igreja da terra que ia deixar pela do Céu, e querendo implorar uma última vez a divina bondade em favor do rebanho que deixava exposto a tantos perigos, recitou com uma voz quase apagada essa estrofe dos hinos do tempo pascal: ‘Criador do homem, dignai-vos preservar Vosso povo dos assaltos da morte’. Tendo acabado essas palavras, dormiu suavemente no Senhor”.

*    *    *

São tão bonitos esses dados que a gente tem dificuldade em os comentar. Nós podemos em alguma coisa tomar nota da fisionomia moral dele.

Em primeiro lugar, esse aspecto que temos comentado tanto aqui: a distinção entre o briguento e o lutador.

O indivíduo lutador é aquele que luta por princípios, nunca faz uma briga por razões de caráter individual. No campo dos interesses individuais, ele tolera, ele suporta, ele perdoa, ele é magnânimo, não se incomoda com nada, mas no campo da doutrina e dos interesses da Igreja Católica é um leão e aí é verdadeiramente indomável, podendo ser considerado uma fera, porque o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo foi chamado pela Escritura “Leão de Judá”.

Sempre que alguém é muito briguento, é pouco lutador. Luta quem o faz pela Igreja; briga quem é movido meramente por seus interesses pessoais.

Os senhores estão vendo aqui São Pio V afabilíssimo, modelo de afabilidade. Aquele tempo era uma época de Renascentismo, com uma vida de corte muito desenvolvida; todos os Prelados eram importunados por um mundo de cacetes: iam fazer pedidos, faziam visitas supérfluas, atrapalhavam a vida do prelado de várias maneiras... Ele tinha uma paciência completa, recebendo todo mundo de modo edificante, maravilhoso. Mas isso é porque atrapalhava a vida dele e atrapalhando a vida dele estava em jogo ele. E estando em jogo sua pessoa, estavam em jogo interesses dele e os interesses dele não eram nada, porque nenhum de nós diante de Deus é nada. E por causa disso a nossa preocupação deve ser de sacrificar nossos interesses individuais, nossas conveniências, nossa vontade à Causa Católica.

Observem que quando se trata de moral, de doutrina, como a severidade a mais extrema, a mais infatigável, a mais contínua é o traço distintivo desse homem. De começo ao fim, numa época de relaxamento moral, de abandono de todos os princípios, de esboroamento da Cristandade, época da Renascença, como ele representa a moralidade firme! Os senhores vêem que começa por aí: ele entra no convento. Qual era sua nota característica? Destacava-se pela humildade sincera, pelo amor à solidão, ao silêncio, à pobreza e à mortificação. O lutador gosta da solidão, gosta do silêncio, gosta da pobreza e da mortificação.

Pelo contrário, o briguento não. Prestem atenção: gente briguenta nunca gosta de estar sozinha. Gosta sempre de estar perto dos outros atazanando. Diz a Escritura que é melhor a gente morar numa casa com goteiras do que com uma mulher litigiosa, porque a goteira é parada e a mulher sai atrás do homem pela casa. A pessoa briguenta tem muito disso.

O lutador se isola, o lutador se concentra, o lutador tem princípios, ele pensa. E quando chega a hora de falar, fala mesmo!

Ele já era notado por seu zelo contra as heresias, mas heresias de seu tempo. Eu conheci professores de seminário que eram exímios para refutar a heresia dos montanistas, dos donatistas. Dizia-se: “Esse aí é um monstro. Fazia aulas com uma energia contra Ario, mas uma coisa extraordinária!...” Mas era incapaz de protestar contra o vereador do bairro que propusesse uma lei imoral qualquer... Ou seja, eram corajosos retrospectivos...

Feito Cardeal, qual é sua preocupação? É da luta - foi nomeado ao mesmo tempo inquisidor –, é a luta a favor da inquisição contra os hereges.

Feito Papa, recomeça a luta contra a falta de austeridade. Primeiro chama todos os dignatários domésticos de sua casa, prescreve regras de conduta. Naquele tempo de Renascentismo era exatamente para acabar com aquelas frivolidades, porque tem que ser sério, tem que ser austero, não pode andar com carinha assim sorrindo, pimpona... Naquele tempo usava-se batina de seda preta rendada, quase como saia balão, como se fosse uma senhora... jeitos femininos, adamados, cabelinhos arranjados, dois, três anéis nos dedos, etc. Acaba com isso. Porte-se como um Ministro de Nosso Senhor Jesus Cristo que conduz consigo o porte de Cristo crucificado.

Ele mesmo usava sua batina de dominicano, sob os trajes pontificais, e dormia vestido de dominicano. O costume é observado em várias Ordens religiosas de se dormir com o hábito religioso.

Dom Duarte Leopoldo e Silva, que foi um antigo arcebispo de São Paulo, foi acometido de um ataque cardíaco durante a noite. Ele dormia de pijama. Tocou a campainha para chamar o secretário. Antes deste chegar, ele já tinha se vestido e estava deitado de batina na cama. Quer dizer, isso  é o senso eclesiástico! Nunca se apresentar, nem sequer à intimidade de seu próprio secretário, sem o traje talar. Como isso é muito diferente do espírito de hoje...

Ele atribuía toda a tristeza da Igreja no tempo dele - a devastação que o protestantismo continuava a fazer, o espírito da Renascença, o neo-paganismo, a imoralidade, os avanços dos turcos que ameaçavam a Igreja - aos pecados que eram cometidos dentro da própria Igreja. E atribuía isso particularmente aos cardeais. De onde então ele dizer aos cardeais que a reforma de vida devia começar pela reforma deles.

Os senhores dirão: “Mas Dr. Plínio, os cardeais daquele tempo eram bem parecidos com os cardeais de outros tempos, não?” Eu digo: é verdade, com uma “pequena” diferença, mas essa diferença é “pequena”  como o tamanho que vai da terra ao céu: os cardeais daquele tempo tinham uma porção de defeitos, mas quando um cardeal Ghislieri era eleito para o Sacro Colégio, eles iam agradecer ao Papa, e depois elegiam esse cardeal Papa. Não é pequena a diferença...

Os senhores viram a medida dele contra as mulheres de má vida.

Por fim, os senhores conhecem o famoso episódio quando ele viu Nossa Senhora Auxiliadora desbaratar em Lepanto as naus dos turcos. E aqui há uma relação entre a “Bagarre” e esse episódio da vida de São Pio V.  Num “sonho” (visão) que São João Bosco teve, Nossa Senhora Auxiliadora estava presidindo do alto uma batalha em que, como em Lepanto, eram completamente dispersadas as naus dos adversários.

São Pio V viu uma vitória prefigurativa da vitória que a Cristandade terá  e da implantação do Reino de Maria.

O que podemos pedir a São Pio V hoje? Que ele faça vir quanto antes esses acontecimentos, a fim de que venha logo o Reino de Maria e  possamos ver uma Lepanto imensamente maior do que a Lepanto de seu tempo, para a glória de Nossa Senhora, que com tanto amor ele serviu.


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