Plinio Corrêa de Oliveira

 

São Rafael

A vida na terra deve ser preparação

à Corte celeste

O indispensável tônus aristocrático

mesmo nas autênticas democracias

 

 

Santo do Dia, 23 de outubro de 1964

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A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.

 Tobias lutando com São Rafael 

São Rafael Arcanjo é um dos sete Anjos que assistem diante de Deus. Ele tem a missão de auxiliar os homens a apresentar suas preces ante o trono divino. (Rafael, do hebraico “Deus cura” – protetor dos viajantes, da medicina, dos cegos)

Uma das noções que se apagaram muito a respeito do culto dos Anjos e que eu acharia interessante relembrar é a de que o Céu constitui uma verdadeira Corte. Antigamente, quando eu era menino, falava-se muito da corte celeste, e os devocionários eram publicados com referências freqüentes quando tratavam dos Anjos e santos.

Quadro representando banquete na corte de Viena, séc. XVIII

A noção de corte celeste naturalmente se funda na idéia de que Deus está perante os Anjos e santos, na Igreja gloriosa, como o rei perante sua corte. Mas é curioso o seguinte: algo que é próprio às cortes existentes na terra, pela similitude entre estas e as do Céu, acabam existindo na corte celeste também. E se constitui corte num sentido muito mais literal da palavra do que a gente poderia imaginar.

Por exemplo, se os senhores tomam um protocolo monárquico, este não era – como imaginam os bobos, inclusive alguns entusiastas do protocolo – algo completamente vazio e formal. Mas o protocolo era o estilo de reger a existência das várias pessoas do serviço do rei, de maneira que tudo transcorresse de um modo prático, simples, decoroso, facilitando de todas as formas a vida do rei.

Assim, por exemplo, quando o monarca chegava para receber os “placets” nas grandes ocasiões, atendia tendo em torno de si os príncipes da casa real e pessoas da alta nobreza. O interessado então comparecia diante do rei, dizia o que queria; se algum príncipe, alguma pessoa de alta categoria ou alguém chegado ao interessado desejasse, podia dizer uma palavra ao rei, depois do que a pessoa entregava a um dignitário um rolo de papel com o seu pedido, a ser examinado posteriormente pelo rei. Face a este, havia uma mesa sobre a qual iam se acumulando os pedidos que depois eram despachados.

Os senhores vêem aí a idéia de que o serviço e as ordens reais são objeto de distribuição, de um desmembramento e que se chega ao rei pelas mesmas escalas por onde o serviço foi distribuído. De maneira que é uma espécie de hierarquia, que é a corte, onde há graus diferentes de funções,  de dignidades, de intercessão, que leva ao rei e que depois, por sua vez, procede do rei e chega aos particulares. Esse estilo é próprio de uma corte.

Na corte celeste, “mutatis mutandis”, as mesmas coisas existem em última análise pelas mesmas razões. Deus Nosso Senhor que evidentemente – no sentido absoluto da palavra – não precisa de ninguém, tendo entretanto criado seres diversificados, era natural que os empregasse  junto de Si. E que esses seres pusessem um brilho, um esplendor, uma dignidade na mansão celeste correspondente às tarefas de que são incumbidos. Tarefas essas que por sua vez, correspondem à própria natureza deles.

Com efeito, é de acordo com essa ordem de coisas que os homens, sendo regidos pelos Anjos, os tomassem como intercessores. E os Anjos por sua vez fossem intercessores dos homens junto a Deus. De maneira que no Céu há verdadeiramente uma vida, um protocolo e uma dignidade de corte  que serve de padrão para todas as cortes terrestres e que indica a necessidade de um protocolo, de uma hierarquia, de uma diversificação de funções e indica –  em suma – a necessidade de uma corte.

Os senhores tem bem exatamente o contrário disso nas fotografias – me desculpem a baixa de nível – de certos chefes de Estado sindicalistas e  que fazem, em algumas circunstâncias, o papel de lacaio de sua própria comitiva. 

Fidel Castro

O discurso de um líder sindicalista é com vinte, trinta microfones, gente em volta conversando; ele interrompe o discurso, dá uma ordem para um e outro, conta uma piada, depois continua a falar... É do gênero do discurso de Fidel Castro de cinco horas na televisão: fala continuamente; pára, bebe leite, bebe água, canta, conversa com a “esposa” e depois recomeça todo o discurso... Uma bagunça em que não há ordem, nem compostura, nem dignidade. E essa carência de ordem, compostura e dignidade constitui a igualdade e a democracia revolucionária.

Ao contrário, nas cortes segundo o estilo aristocrático-monárquico de se proceder, temos exatamente essa especialização, essa diferenciação, essa hierarquia que sobe e que desce e que é a própria imagem do Céu.

Aí os senhores compreenderão melhor aquela afirmação de Pio XII que até mesmo nas democracias – desde que sejam verdadeiramente cristãs e, portanto, não sejam revolucionárias – é indispensável que as instituições sejam de um alto tônus aristocrático.

 O Papa Pio XII durante a canonização de Madre Cabrini, em julho de 1946 

A festa de São Rafael nos conduz exatamente a essa idéia. Os senhores estão vendo um intercessor celeste, de uma alta categoria, padroeiro especial dos cegos e que leva nossas preces a Deus porque é um dos espíritos que mais alto assistem junto a Ele e que, portanto, está mais próximo para pedir a Deus por nós e são os canais naturais das graças que desejamos obter.

Salão das Tapeçarias, Castelo de Fontainebleau 

Essa consideração nos leva à idéia de reforçarmos cada vez mais em nós o desejo de que as realidades terrestres sejam semelhantes às celestes. Porque apenas na medida em que amarmos as realidades terrestres parecidas com aquelas preparamos nossa alma para o Céu. E, se ao morrermos, não tivermos apetência das realidades terrestres parecidas com as celestes, nós não temos apetência do Céu.

De maneira que há algo nesse espírito de hierarquia, de distinção, de nobreza, de elevação, que é uma verdadeira preparação nossa para a bem-aventurança eterna.

Tal preparação para o Céu é tanto mais desejável quanto mais se vai  afundando num mundo de horror, em que as exterioridades com que  tomamos contato são rinocerônticas, monstruosas, caóticas, desorganizadas. E é uma necessidade do espírito humano, para não afundar no desespero, que possa colocar suas vistas extenuadas e doloridas em algo que ande e funcione bem. Não é próprio ao homem viver num “mare magnum” de coisas que afundam, que caem, que se deterioram. Em algum lugar ele necessita colocar sua alegria e sua esperança. Entretanto de tal maneira tudo quanto é digno está desaparecendo na face da terra que ou vamos tendo cada vez mais desejo e esperança no Céu, ou não se tem  mais condições psíquicas de sobrevivência na terra.

Mont Saint-Michel

Então, eu gostaria de lembrar aos senhores, à vista dessas circunstâncias, uma pequena comparação antropomórfica de São Rafael.

Eu já afirmei aos senhores que se poderia saber algo a respeito da mentalidade – se se pode dizer isso de um Anjo – da mentalidade de São Miguel Arcanjo visitando o Mont Saint Michel, na França, e dei as razões disso.

A respeito de São Rafael, o que poderíamos pensar? Os senhores imaginem o seguinte: eu não me lembro mais qual foi a santa que teve uma revelação em que viu o seu próprio Anjo da Guarda. Era um ser de uma natureza tão elevada, tão nobre e tão excelsa que ela se ajoelhou diante dele pensando que fosse o próprio Deus. E ele teve que lhe explicar que era um Anjo da Guarda. E é sabido que os Anjos da Guarda são da hierarquia menos elevada que existe no Céu. Em comparação com isso, o que podemos imaginar de um Anjo que seja como São Rafael, das mais altas hierarquias? Evidentemente, é algo para nós inimaginável.

Mas para não ficarmos na concepção de um puro espírito, para darmos a isso uma nota um pouco antropomórfica que nos faça degustar melhor essa imagem, poderíamos imaginar, por exemplo, São Rafael tratando com Nossa Senhora e dirigindo-se a Ela no Céu, pensando em São Luís, Rei de França falando com sua mãe, Branca de Castela

  

Branca de Castela, mãe de São Luis IX, conversando com seu filho (igreja de Ivry, França) 

É sabido que ele era um homem de alto porte, de grande beleza, muito imponente, de maneira tal que ele ao mesmo tempo atraía, incutia respeito profundo e suscitava um grande amor. Ele tinha o todo de um guerreiro, era terrível na hora do combate, e era o Rei mais pomposo e mais decoroso de seu tempo. Podemos imaginar este rei – no qual transluziam todas as glórias da santidade, que era um filho muito extremoso – nos esplendores da corte da França, se dirigindo a Branca de Castela e lhe dirigindo a palavra... Quanta distinção, quanto respeito, quanta elevação, quanta sublimidade nessa cena!

 

São Luis IX (igreja Notre Dame, Beaune, França) 

A composição dessa cena nos dá um pouco do que seria São Rafael se dirigindo a Nossa Senhora. São Rafael – assim como São Luís era uma espécie de Anjo na terra – vagamente pode ser considerado como uma espécie de São Luís celeste, apenas com a diferença de que São Luís era Rei e São Rafael não é, e Nossa Senhora é Rainha a um título muito mais alto do que Branca de Castela o era.

Então, por essa transposição, podemos um pouco ter a idéia – valendo-nos da linguagem humana - da alegria de que vamos estar inundados no Céu por tudo quanto pudermos ver de Deus ao contemplar um Arcanjo como São Rafael.

Peçamos a ele que tenhamos essa contemplação, mas peçamos também que algo dessas idéias penetrem em nós nessa vida e que a consideração dessa ordem ideal e realmente existente nos conforte para uma esperança do Céu e do reinado de Maria, levantando toda a tristeza crescente desses dias em que a “Bagarre” vai se aproximando de nós.


Nota: O leitor desejoso de aumentar seu conhecimento no mundo maravilhoso das cortes e castelos, poderá, por exemplo, visitar o blog abaixo