Plinio Corrêa de Oliveira
Escada interna da Catedral de Burgos ("escalera dorada"): elevação e coerência*
Santo do Dia – 27 de setembro de 1967 |
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A D V E R T Ê N C I A O presente texto é adaptação de transcrição de exposição verbal do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira para sócios e cooperadores da TFP, tendo portanto estilo verbal, e não foi revisto pelo autor. Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:
Eu de propósito deixei os Srs. olharem [a projeção] um pouco, antes de começar o comentário, porque isto produz uma primeira impressão que é preciso pôr um pouco em ordem, pois é tão, tão diverso do que a gente imaginava como eu não sei dizer... (Alguém comenta que a fotografia está mais nítida do que a gravura original) A gravura eu conheço bem: é incomparavelmente inferior a isto aqui. O que prova que é uma boa gravura, sabe por que? O gravador fez com tanta arte que o que o olho não pega a fotografia aponta. Aí prova a qualidade da gravura. Isto aqui é uma escada interna da Catedral de Burgos. Vista interna da ”escalera” superior da Catedral de Burgos. A meu ver, no gênero, é “A” escada. Porque tudo isto foi construído apenas para as pessoas saírem por aqui, ou para chegarem até aqui. Os Srs. estão vendo que há aqui uma escada... um, dois lances. Uma coisa tão banal: dois andares que devem dar acesso ao térreo da Catedral. Para fazer isso o artista inventou esta verdadeira epopéia, porque a meu ver isto é uma maravilha, simplesmente! E é uma maravilha de ordenação arquitetônica. Este quadro poderia ter o seguinte título: "Elevação e Coerência". É o que está aqui dentro. Eu acho simplesmente estupendo! Bem, quem sabe se passamos então a um comentário. O primeiro comentário é a linha elevação; como segundo comentário é a linha coerência. Os Srs. estão vendo aqui a elevação: ele colocou três, quatro portas indicadas uma em cima da outra - uma aqui, outra aqui [ as duas de baixo ], uma porta séria aqui [ a do meio ] e uma janela lá [ acima do conjunto ], formando, portanto, ao longo de um muro muito alto, toda uma linha perpendicular muito elevada, tão elevada que no olho do homem ela como que se perde no Céu. Porque o olho do homem atinge até um certo ponto e a atenção dele fica vagamente atraída pelo resto e como que se perde no Céu. O Céu da atenção humana pára aqui, mas há alguma coisa que paira lá para cima. De fato a atenção fica concentrada em torno dessas duas portas [ as duas de baixo ]. Os Srs. querem ver como perde se não se pusesse isto? Imaginem que não houvesse isto aqui e fosse uma parede lambida: ficava pesadão e chato. Seria interessante colocar ali um jornal, por exemplo, qualquer coisa. Os Srs. veriam imediatamente como perde. (Alguém cobre as portas na figura.) Olhem como imediatamente fica pesadão, o que é um problema. A obra prima de equilíbrio é ter feito aqui uma coisa pujante que não fica pesada. E isto foi obtido com essa janela cega em cima. Vejam que artifício curioso. Por que foi feito assim e não o contrário: aquela janela aqui e isto aqui, trocar? Pesava de novo. E depois isto aí ficava tão tênue em cima que se perdia na noite dos tempos. Era preciso ser aqui tênue, depois uma mais enunciada ali, e depois acabou-se. Então a linha vertical fica assegurada e o que isto tem de pesadão fica resgatado por duas coisas: isto e pelo vigor da porta, uma porta forte e que sustenta algo. Reparem a idéia da leveza desse muxarabiê[1] - isto é uma espécie de muxarabiê no fundo - a idéia de leveza da coisa pesada - e que é o triunfo da arte, é o forte leve, pesado leve - fica assegurada, sem que 90% dos observadores se dêem conta do porque. É por um jogo, um jogo de ótica, exclusivo jogo de ótica. Mas isto é ter ótica, o resto não é ter ótica, é olho e é muito diferente de ter ótica. Ele entendeu. Mais engraçado é o seguinte, e isto eu não explico: acho que historicamente falando, esta janela foi feita por engano e depois encheram. Essa janela foi feita por razoes utilitárias e ficou bonito assim.
(Sr. “X”: E tem aquelas duas mulheres, que talvez estejam se encaminhando para cima...) É, veja as duas mulheres subindo a escada, é um defeito de perspectiva da gravura. (Sr. “X”: Aquilo não pode ser um pouco aquela teoria do “remendo” arquitetônico?). É, mas sobretudo sabe o que há? Há um mistério aí que vai longe, nem eu vou tratar disto aqui. Em geral a obra de arte grande excede a própria intuição do artista. (Sr.”X”: Aí não é um problema de...). Providência... Não sei o que é. (Sr.”X”: Uma ação sobrenatural...). Bênção da Civilização Cristã ou não sei bem o que é. Porque eu acho que o homem não teve a intenção de fazer isto. (... em harmonia com outras ogivas no mesmo plano?) Talvez. Mas que tenha tido a intenção da fazer esse jogo de ótica, eu acho que não. (Como essa ogiva está em harmonia com outras em outros planos, no mesmo plano intermediário ....(ininteligível) ... era de fechar para colocar o muxarabiê). Pode perfeitamente ser, mas o que não exclui a idéia de que produzir essa harmonia vertical provavelmente não foi a intenção de quem fez a ogiva; foi de produzir outras harmonias. (Sr.”Y”: E depois ela não continuou para baixo...). É, poderia haver uma galeria de ogivas aqui e essa é necessária para completar a galeria. Perfeitamente verdade. Não exclui o fato de que ela salva do pesado o muxarabiê e que esse salvar do pesado o muxarabiê, provavelmente, talvez, não esteve nas intenções de quem fez. (Inclusive pode ter sido feito em épocas diferentes...) Provavelmente, até. Podem se pôr mil hipóteses a esse respeito. O fato concreto é que salva do pesadão o muxarabiê. Aqui os Srs. têm então elevação, não é verdade? Agora aqui os Srs. têm coerência. O próprio da marcha do pensamento é, afirmado um princípio em toda a sua riqueza, dar origem a um leque de conseqüências. E esse leque de conseqüências, visto no seu conjunto, dar origem a uma conseqüência terminal, que é a fiel imagem do princípio inicial. Quer dizer, o pensamento humano anda em forma de losango. Ele se abre, se abre, se abre e quando são tiradas dele todas as conseqüências, o pensador diz: bem, mas tudo isso posto, o que é que se conclui? Conclui-se tal coisa. Esta tal coisa concluída é a imagem final do pensamento inicial. É o corolário final do pensamento inicial. Aqui os Srs. têm o muxarabiê: é uma nota inicial de harmonia, muito bonita. Olhem o teto do muxarabiê, o corpo do muxarabiê, e depois os Srs. vêem como ele se abre, não é verdade? Aqui essa base - base, corpo e teto formam uma harmonia bonita - e que peanha maravilhosa! Uma verdadeira obra de arte, uma renda essa peanha. E como termina e carrega bem o muxarabiê! Os Srs. têm aqui uma ponta e outra ponta: essas duas pontas são simétricas e constituem os dois pontos extremos harmônicos do muxarabiê, e sempre em rampa. Aqui é uma rampa que termina aqui, aqui é uma rampa que termina lá. Quer dizer, todo ele feito de harmonias correlatas, que dão idéia da lógica, que dão idéia do equilíbrio, da proporção do muxarabiê. E que a meu ver é uma verdadeira beleza. Agora, esse muxarabiê assim concebido, é algo rico em sugestões que se desdobram, como se fossem grandes leques de conseqüências, harmonias que saem daqui, como seria por exemplo uma ponte, mas uma ponte com dois braços de rio que chegados ao extremo começam a voltar para o essencial. É a forma de losango do pensamento. Os Srs. estão vendo que aqui há um losango disposto nessa linha, não é verdade? E que dá uma idéia de coerência. Aquilo que se abriu se fecha onde se abriu. A causa volta: desdobra seus efeitos, que voltam até a própria causa.
E então, como ponto terminal dessa magnífica manifestação de certeza, os Srs. têm os dois braços, que descem, é uma espécie de proclamação! Na hora em que se esperaria que a escada fosse morrer mediocremente, ela como que ressurge, e se desdobra em dois movimentos diversos. De maneira que o fim da escada é aqui. Mas aí a gente quase não vê mais a escada morrer. A gente já não percebe mais a escada, de tal maneira ela termina magnificamente. Esse fecho é assombroso! É afirmação fundamental da coisa: os Srs. vêem a leveza, a força disso - segura e proclamativa! O que isto tem de muito compacto em comparação com o filigranesco que está aqui. E hierático! Esses dragões pensam e parecem dizer: "isto é assim mesmo e eu ataco o que negar”. A gente diria: a vigilância e a força à serviço do sacrário. Mas que fica no fundo, assim esfumaçado. Bem, agora, essa idéia de um muxarabiê [que] enquadra uma coisa mais delicada e mais interna, essa idéia é muito patente na consideração dessa porta. O muxarabiê tem seu segredo. É como que um sacrário. Essa porta conduz ao fundo também, é uma porta profunda e ela mesma ainda de uma arquitetura esguia. As coisas da Renascença em geral são achaparradas. Esta é esguia. Os Srs. estão vendo que essas figuras têm seus análogos aqui. E que isto é um plano magnífico para algo que vai até o fundo e que dá uma idéia mais uma vez de sacrário. Quer dizer, isto tudo é moldura para guardar um mistério qualquer que está por detrás. E o senso do mistério dá tantas obras de arte magníficas. Pode ser a porta da rua. Mas pouco importa, para o olho humano arquitetura é isto. E a meu ver isto é um exemplar magnífico de coerência. Isto é, elevação, coerência estão esplendidamente expressos aqui. Não sei se fica um pouco subjetivo isso, não se trata aqui de jogar com fisionomias humanas, mas com linhas puramente geométricas. De maneira que é muito difícil exprimir bem isto. Bem, agora o bonito é a pequena vida de todos os dias ao pé do monumento. Duas mulheres, ainda meio mouras, a gente não sabe bem se são mouras ou freiras. Também a gente não sabe bem até que ponto se distingue uma coisa da outra... Tem qualquer coisa de mouro. Embora as linhas não sejam árabes, é meio arabesco. Aqui, este homem que sobe – espanholão, forte, vigoroso, não é verdade? E ali um casal que conversa, um homem que está fazendo não sei bem... ah, está junto a uma pia de água benta - e uma mulher que está lá sentada descansando, meio rezando, meio descansando. Depois, um grupo que conversa e dois homens que conversam também, com suas espadas. E umas imagenzinhas para a vida quotidiana, lápides, etc. Bom. Esta visão nos conduz às parafernálias do monumento: são magníficas também. Os Srs. já perceberam que beleza essa espécie de bacia aqui que eu não sei para que serve [ ao pé da escada ]? Que trabalho! Como ela condensa com sua singeleza de linhas o que ela tem de muito trabalhado e como ela compensa, ela se diferencia bem dessa coisa aqui? Olhem duas linhas: uma aqui, a outra uma espécie de concha, soberba, que mantém essa tina. Bem, agora os Srs. vêem aqui uma coisa que eu não sei bem o que é. ( Não seria um túmulo?) Talvez, um monumento funerário, mas que é todo desse estilo, e que ao mesmo tempo já não tem nada que ver com isto. E que enche esse espaço. E aqui, uma outra porta pequena e muito bonita. O painel está completo. E está feita uma coisa que eu reputo simplesmente uma magnificência! ( 0 Sr. viu isto em Burgos?) Não, eu não estive em Burgos. Eu comprei essa gravura na Espanha, duas gravuras da Catedral de Burgos, inclusive esta. Mas, no momento em que estava desarrumando a minha mala vindo da Europa, uma pessoa que estava me ajudando a desarrumar a mala me pediu a gravura. E quando me falaram da nova sala de nossa sede, sugeri então mandar fotografar isto aí para decorá-la. (Pergunta ininteligível) Os Srs. têm aqui um gótico “flamboyant”. A gente diria que isto é o contrario do gótico. Um preciosista em matéria de estilos - eu não sei se os Srs. têm o desdém que eu tenho em relação aos preciosistas em matéria de estilo - um preciosista me diria: "Dr. Plínio, esse monumento não tem valor nenhum, porque ele é uma mistura de estilos, isto aqui é um encaixe de tradições árabes em linhas renascentistas e portanto uma coisa espúria, que não tem pureza de estilo. Não vejo porque o Sr. se embevece com isso. Esse muxarabiê é árabe, há qualquer coisa de filigranesco em tudo isso. E o Sr. quer maior horror do que uma porta renascentista encimada por um muxarabiê árabe?”
E o único jeito é responder como a "viúva alegre" da ópera: "O Sr. permita que eu dê gargalhadas! Lembra-me da teoria de um grego a respeito da galinha”.[2] Aqui os Srs. têm a coisa gótica e então “X” pergunta muito bem como é que se harmoniza com isto. Porque se harmoniza. Se harmoniza a tal ponto que esta janela é indispensável para compor esse quadro. Então, como é que harmoniza? É que o espírito disto aqui ainda é espírito gótico. Embora a decoração e os desenhos sofram influências renascentistas, influências árabes, o espírito é gótico. Os Srs. sabem porque? Aqui está traçada uma ogiva. Esta linha é perfeitamente ogival. E é por isto que ela se casa com esta ogiva. E isto poder-se-ia chamar variações dentro de uma ogiva: é como isto poderia chamar. E a nota ogival está acentuada por isso. Porque o que a ogiva tem de mais alto é o que nela predomina. Depois, toda essa coerência está também muito posta na coisa ogival, medieval. E aqui os Srs. tem outra ogiva. De maneira que no fundo, são dois jogos de ogivas: uma ogiva terminada pelo muxarabiê e uma ogiva terminada num ponto ideal marcado entre essas duas colunas magníficas aqui. Quer dizer, a ogiva está presente no que isto tem de dominante. Mais: há uma certa leveza da decoração gótica que está presente aqui, olhem. E que é uma mesma leveza difusa em tudo isso. Os Srs. então encontram o casamento do gótico com isto. Bem, isto é a coisa como eu a vejo. Eu concebo, eu vejo bem que não estou tendo nenhum argumento para provar a coisa. Mas também não há provas, não é? A gente diz e uma pessoa vê ou não vê, aceita ou não aceita. Prova não tem. Eu não posso provar que isto é bonito. Uma pessoa olha e acha bonito. Vamos dizer, por exemplo, que a pessoa x, y ou z podia achar que isto é feio, ou que, por exemplo, haveria belezas a acrescentar nisso. Mas eu acho que isto aqui deveria ter uma celebridade cem vezes maior do que aquele lá. E que há muita escadaria que é menos bonita do que isto. Eu acho esta aqui uma maravilha. ( Alguém pergunta sobre a grandiosidade a graciosidade do quadro) É uma pergunta muito boa: o grandioso e o gracioso. É uma pergunta muito boa porque exatamente aqui se nota muito. A linha é absolutamente grandiosa. Toda a ornamentação visa o gracioso e compensa o que o grandioso tem de por demais severo. Você não vê aí um ornamento que não seja tão ameno que quase convide ao sorriso, exceto nessas duas colunas... e nisto aqui, que são o terrível. Não é só o grandioso, mas é o grandioso terrível. Não sei se eu respondo bem. (Faz-se uma comparação entre a gravura da Escada Dourada e a gravura de um Capítulo Geral da Ordem de Malta, comentada anteriormente) (Alguém observa que a questão é muito subjetiva) Ah, sim! E legitimamente subjetiva, quer dizer, um tem mais visão para uma coisa, outro tem mais para outra. (Porque aqui há mais valor de alma, mais valores humanos, analisar na própria pessoa humana, enquanto que lá é reflexo da estado de alma também do artista e tudo isso...) Aí entra muito o individual, e legitimamente individual. Para mim uma coisa arquitetônica qualquer é mais expressiva do que a própria fisionomia humana - para mim. Eu sei que em si não é, mas é para mim. Em si não é. Quer dizer, entra muito de individual nisto. Peculiaridades legitimamente individuais e que devem exercer-se largamente em nossas coisas. Eu acredito que dificilmente se poderiam conseguir dois quadros tão expressivos para a formação como esses dois aqui.
* Uma informação histórico-artística sobre a "Escalera Dorada" pode ser encontrada aqui. [1] Balcão mourisco protegido em toda a altura da janela por treliça de madeira através da qual se pode ver sem ser visto [2] ( ... ) um belo dia, Platão, reunido com seus alunos na Academia, resolveu definir o ser humano como “um bípede implume”. Imediatamente Diógenes, da escola filosófica dos Cínicos (~412-323 a.C.), que tinha um penchant para o dramático, pegou uma galinha, removeu suas penas e a apresentou à turma, dizendo com ironia: “eis o homem de Platão”.
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