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Plinio Corrêa de Oliveira
Idade Média - VI O papel da Igreja na Sociedade Medieval - I
Série de palestras de formação histórica sobre a Idade Média - 1954 |
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A D V E R T Ê N C I A O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a colaboradores do então Grupo do "Catolicismo", do qual posteriormente surgiria a TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor. Devido à idade das gravações, alguns trechos estão inaudíveis, mas não são de monta a impedir a compreensão do sentido geral da conferência. Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:
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Qual era a situação da Santa Igreja na Idade Média, os Srs. todos já sabem. Era imensamente diferente da situação que Ela tem hoje em dia. E assim como a situação da Igreja em nossos dias é o resultado de determinados pressupostos, de determinadas considerações e determinados postulados de ordem doutrinária, assim também na Idade Média a situação da Igreja baseava-se sobre postulados, idéias ou conceitos doutrinários de uma natureza diferente. Porque o que o bom senso nos mostra, e a história nos confirma, que todas as situações existentes entre homens, em última análise, são baseadas em idéias e doutrinas. Nós não encontramos uma instituição, uma organização, um teor de relações entre homens que não seja baseado — ainda que esses homens não o percebam — em determinadas idéias, em determinados princípios que eles admitem como verdadeiros, e em função dos quais desenvolvem as suas relações. E devemos analisar um pouco a diferença de princípios sobre os quais se baseia a situação da Igreja em nossos dias, e sobre os quais se baseava na Idade Média. Qual é a situação da Igreja em nossos dias? Para não fazer generalizações que talvez não sejam muito científicas, e para ficar dentro de um campo determinado, definido, vamos tomar a situação da Igreja no Brasil. Qual é a função legal da Igreja no Brasil, no ano de 1954? Como todos sabem, no Brasil a Igreja está separada do Estado. Quer dizer que o Estado brasileiro não reconhece como verdadeira nenhuma Igreja. Ele não admite como verdadeira a Igreja Católica, como nenhuma outra igreja, e nem dá preferência a qualquer igreja sobre as outras associações. De maneira que a Igreja Católica Apostólica Romana, ou então a Igreja Brasileira, fundada pelo desventurado ex-bispo de Maura, ou então a igreja japonesa - que certos bonzos budistas estão construindo aqui entre nós - constituem associações de fins lícitos e que, portanto, podem livremente formar-se e livremente organizar-se. Associações lícitas, como por exemplo, associações de colecionadores de selos, associações de pessoas que apanham borboletas, uma associação de astrólogos, uma associação de poetas: diante da lei brasileira a Igreja Católica e todas essas associações estão absolutamente na mesma situação. Os fins são lícitos, as associações se constituíram, elas gozam do direito de realizarem seus fins e de se organizarem como entenderem. Qual é pressuposto que está na raiz disto? É um pressuposto muito simples: sendo difícil saber se há uma religião verdadeira, e saber qual destas religiões é a verdadeira, o Estado não deve tomar posição, porque os homens facilmente podem enganar-se a esse respeito e podem enganar-se com inteira boa fé, com intenção perfeitamente boa. E é mesmo tão difícil, que não se pode saber se o problema é solúvel. Uma vez que se está diante deste emaranhado, desta situação perfeitamente incômoda, o que o Estado tem a fazer é tomar as várias opiniões como valendo umas tanto quanto as outras. Ele toma uma posição neutra em face dessas opiniões. É também a atitude que o Estado toma diante de inúmeras outras questões. Por exemplo, a questão tão controvertida da homeopatia e da alopatia. Afinal de contas, há boas razões para se ser homeopata. Mas há razões que parecem muito mais numerosas, e pelo menos mais evidentes, para se ser alopata. Essas razões não chegaram a um tal grau de certeza que um alopata possa dizer que um homeopata não está de boa fé. São opiniões que, em última análise, valem tanto uma quanto a outra. Resultado: o Estado toma uma posição neutra diante do problema homeopatia-alopatia. Um médico homeopata quer clinicar, ele permite. Um médico alopata quer clinicar, ele permite. Ele não permitiria (e notem bem esse ponto, porque importa) de nenhum modo que clinicasse um curandeiro, porque é fora de dúvida que as mandingas dos curandeiros nada têm de científicas e, portanto, não podem ser admitidas, pois até podem ser nocivas. Então, diante de três atitudes em face do problema da doença: homeopata, alopata e curandeiro, o Estado declara o seguinte: questão ideológica entre os homeopatas e os alopatas, duvidosa. Liberdade para todos. Curandeiro não é questão duvidosa. Resultado: deve-se combater o curandeirismo, porque para os curandeiros não existe liberdade. Esse conceito de que as opiniões certas devem ser livres e as opiniões duvidosas não podem dar lugar à liberdade, é um conceito que nós vemos a toda hora. Imaginem os Srs., por exemplo, se nós tivéssemos a idéia extravagante de constituir uma escola para demonstrar que não é verdade que a terra seja redonda, que não é verdade que a Álgebra ensine retamente as coisas, que não é verdade que vale a pena um homem se tratar quando estiver doente. Esta escola seria fechada, porque ela estaria sustentando coisas que todo mundo sabe que são falsas e para a mentira certa, cientificamente comprovada, que não dá margem à dúvida em nenhum país do mundo civilizado, [não] existe liberdade. Nós vemos, portanto, que o laicismo do Estado se baseia nesta idéia: opiniões certas, liberdade; opiniões duvidosas, liberdade. Nenhuma liberdade para as opiniões manifestamente erradas. Isto não é um princípio próprio do Estado leigo. É um princípio de bom senso. Todo mundo admite isso. É claro. (...) A Idade Média também admitia esse princípio. Ela entra em desacordo com o mundo de hoje num outro ponto. Ela admitia que é manifestamente errado que a Igreja Católica não fosse verdadeira. Ela tomava a veracidade da Igreja Católica — as provas que demonstram que a Igreja Católica Apostólica Romana é a única e verdadeira Igreja de N. S. Jesus Cristo, que N. S. Jesus Cristo é Deus, que a Igreja é a Igreja Verdadeira — como uma verdade tão certa, tão evidente, como nós tomamos, por exemplo, a verdade de que o curandeirismo é uma coisa falsa. Equivaliam-se as coisas. Nós não permitiremos que uma pessoa faça propaganda para dizer que é bom tomar injeção de água no cérebro para curar resfriado, porque é uma coisa evidentemente falsa. Pela mesma razão o medieval não permitia a propaganda de uma doutrina contrária à Doutrina Católica, porque a certeza de que a Igreja Católica é verdadeira era uma certeza tão grande quanto é para nós a certeza de que a injeção de água no cérebro não cura gripe. Quer dizer, há um ponto de desacordo entre as duas concepções, a atual e a medieval, a respeito da Igreja Católica. E o problema posto em foco, ontem como hoje também, era o seguinte: as provas que a Igreja dá de si mesma são provas que se impõem a todo espírito reto que estude a questão? Se são, não pode haver liberdade para aqueles que discordaram da Igreja. Eles que estudem, eles verão. Se não são, neste caso então deve haver liberdade. Nós temos que a diferença entre o laicismo de hoje e a posição medieval está numa diferença de atitude perante a Igreja Católica. O homem da Idade Média considerava a Igreja Católica certa, e as provas disto são manifestas. O homem contemporâneo considera a Igreja Católica certa ou errada, em todo caso as provas são difíceis de aquilatar, duvidosas, uma questão portanto, de opinião. Tudo quanto nós vamos estudar a respeito da posição da Igreja Católica na Idade Média gira em torno disso. Os Srs. tomem uma sociedade em que todo mundo é católico. Mas todo mundo não quer dizer todo mundo como no Brasil, onde temos 97 ou 98% de católicos, mas onde todos os católicos, ou grande número deles, se permitem discutir, pouco mais ou menos, a religião católica. Os Srs. admitam uma época onde realmente o fluxo enorme das pessoas era católico e admitia toda a Doutrina Católica como verdadeira. Essa sociedade, que posição, que atitude tomava em face da Igreja Católica? É isso que agora vamos estudar. A primeira coisa que eles faziam era a seguinte: uma vez que a Igreja Católica é verdadeira, eles admitiam que os Evangelhos são verdadeiros, que o Antigo Testamento é verdadeiro, e que a Igreja Católica tem o poder de interpretar, de modo infalível, o Antigo e o Novo Testamento. Depois, admitiam também que Jesus Cristo tinha dado à Igreja Católica poderes para fazer leis no sentido de salvar os homens, e as leis contidas no Antigo Testamento, bem como as leis feitas pela Igreja Católica para governar os homens tinham o valor de leis do Estado para todas as nações católicas da Europa. Não era necessário que um país fizesse uma lei, para pôr em vigor uma lei feita pelo Papa: a lei feita pelo Papa tinha vigor em toda Cristandade automaticamente, pelo próprio fato de haver sido feita pelo Papa. Não era necessário que um país fizesse uma lei, declarando que tal disposição do Novo Testamento está em vigor, ou que tal outra disposição do Antigo Testamento está em vigor. Deus não precisa dos homens para dizer que Ele tem licença para fazer leis, pelo contrário, é em nome d’Ele que os homens governam, em nome d’Ele que os homens fazem leis, e as leis de Deus, as leis da Igreja eram automaticamente leis de todas as nações, do conjunto de todos os Estados cristãos, que naquele tempo se chamava Cristandade. Essas leis (do Antigo Testamento) estavam em parte revogadas pelo Novo Testamento, mas o Novo Testamento estava todo em vigor; além dessas leis do Antigo e do Novo Testamento, nós tínhamos as leis feitas pelos Papas e pelos concílios. As leis feitas pelos Papas e pelos concílios constituem o Direito Canônico que se dividia em duas espécies de legislação: as decretais, que eram as leis feitas pelos Papas; e os cânones, que eram as leis feitas pelos concílios. A palavra cânone é uma palavra grega que quer dizer regra. Essas leis foram objeto de várias compilações sucessivas. Eu não vou dar aqui, porque o nosso curso é muito resumido, a história dessas várias compilações sucessivas — desde Dionísio (?) até São Raimundo de Penaforte, e mais recentemente até as Decretais Clementinas — mas passarei desde logo a analisar essas leis. Essas leis o que dispunham? O que estabeleceram? A primeira coisa que nos chama a atenção no Direito Canônico é a parte das leis referente à situação do clero dentro da sociedade. Os Srs. sabem que no tempo dos romanos a Igreja era perseguida. Ela [não] tinha o direito de existir e quando Constantino a chamou de dentro das catacumbas para lhe dar liberdade, ao mesmo tempo reconheceu-a como a Igreja verdadeira. Começaram desde logo a se tirar daí as conseqüências legais decorrentes. Já no Império Romano, antes da queda, havia um primeiro privilégio dos bispos. Um bispo não podia ser julgado por ninguém. Ainda que ele fosse acusado do mais atroz dos crimes, não podia ser julgado por nenhum tribunal civil. Ele só podia ser julgado por um tribunal constituído pelos outros bispos de sua província eclesiástica. A Igreja Católica se dividiu desde muito cedo em províncias eclesiásticas, como as que temos dentro do Brasil, tendo cada uma delas à sua testa um metropolita. São Paulo, por exemplo, é uma província eclesiástica, aliás, a mais numerosa do mundo, tem 14 dioceses, tendo à testa dela um metropolita, que é o cardeal arcebispo de São Paulo. Um bispo, segundo princípio do sistema medieval, ainda que cometesse um crime gravíssimo, só poderia ser julgado por seus pares. Não se trata aqui de um privilégio por mera amabilidade, mas é uma conseqüência rigorosa do fato da Igreja Católica ser verdadeira. Seu bispo é o sucessor dos apóstolos: se a mais alta dignidade que existe sobre a terra é a dignidade dos apóstolos e dos seus sucessores, e a Igreja é fundada por Deus e o Estado é uma constituição material dirigida por homens, não é razoável que um bispo seja julgado pelo Estado. Não é razoável que um inferior julgue seu superior. O que os Srs. diriam de um exército em que houvesse um regulamento dizendo o seguinte: quando um general comete um crime é sujeito ao julgamento de um tribunal de tenentes e quando um tenente comete um crime é sujeito ao julgamento de um tribunal de praças. Nós diríamos que isto é uma loucura, o contrário seria razoável, e um general só pode ser julgado por um tribunal de generais. Pois bem, por essa mesma razão um bispo só podia ser julgado por um tribunal de bispos. E a pena que fosse dada ao bispo devia ser cumprida sob fiscalização dos outros bispos, de tal maneira que o Estado não tocasse no bispo, porque ele é uma pessoa sagrada e, para o Estado, uma pessoa intocável. A situação hoje é diferente. Nós tivemos, por exemplo, um bispo como D. Vital levado a ferros para o Rio de Janeiro e colocado no presídio da Ilha das Cobras, porque o Estado se julgava no direito de prender um bispo. Isso seria impossível no tempo do Império Romano do Ocidente e na Idade Média. Quanto aos clérigos, no tempo dos romanos a legislação canônica ainda não estava muito bem definida. Mais tarde ela se definiu melhor. Nos tempos dos romanos, o clérigo deveria ser julgado segundo as leis comuns. Na Idade Média estabeleceu-se que o clérigo só poderia ser julgado pelos bispos e que as penas que o clérigo devia sofrer, eram as penas dadas pelos bispos. Apenas podia dar-se uma situação extrema, quando o clérigo merecia uma pena de morte ou merecia uma pena que importasse em derramamento de sangue: neste caso, naturalmente, a situação era outra. A Igreja nunca derrama o sangue de ninguém. Existe uma máxima: "Ecclesia abhorret a sanguine". O processo que se tinha de aplicar então era de a Igreja degradar o clérigo numa cerimônia impressionante, em que lhe eram tiradas as unções das mãos e ele era despojado de todos os paramentos eclesiásticos. Só então ele era entregue ao Estado, depois de ser eliminado, por assim dizer, da clericatura para ser objeto de uma condenação. Mas nunca ele era condenado na plena posse de seus direitos de clérigo, por esse princípio da inferioridade do Estado em relação à Igreja. Foi, aliás, o que tivemos aqui no tempo do Brasil colônia, quando Frei Caneca foi condenado à morte. Primeiro ele foi degradado para depois ser entregue à justiça comum. Durante toda a Idade Média o Direito Canônico foi se desenvolvendo e um dos pontos mais importantes sobre os quais legislou foi o casamento. Com efeito, nós sabemos que o casamento é um sacramento. É um contrato que Nosso Senhor Jesus Cristo elevou à dignidade de sacramento. Esse contrato tendo sido elevado à dignidade de sacramento ficou de fato sob a legislação da Igreja. Por causa disso o Direito Canônico dispôs inteiramente a respeito do casamento. Poucos eram os efeitos dos casamentos que não ficavam sob a legislação do Direito Canônico. Foi a Igreja quem definiu a indissolubilidade do vínculo conjugal como sendo instituída pelo próprio Jesus Cristo; foi a Igreja quem estabeleceu os graus de impedimento para casamento; foi a Igreja quem estabeleceu a necessidade da presença do padre para a validade do casamento entre católicos, nos lugares onde o padre poderia ser contatado pelos católicos; foi a Igreja quem legislou a respeito dos filhos legítimos, ilegítimos, filhos adulterinos, etc.; foi a Igreja que proibiu os padres de se casarem. Essa legislação imensa a respeito do casamento não era feita pelo Estado, mas pela Igreja. Razão: a Igreja é verdadeira, o casamento é um sacramento, portanto isso tem que ser aplicado, porque a Igreja mandou. Naquele tempo, não era possível imaginarmos um deputado que propusesse o divórcio, porque o Estado não legislava a respeito de casamento: não legislando, uma lei impondo o divórcio era impossível. No Brasil ele legisla. A Igreja mandou, está estabelecida a indissolubilidade, e acabou-se! Naquele tempo, a situação da Igreja não podia sofrer abalos a respeito desses assuntos. Mais tarde, nos tempos modernos, a Igreja veio a ter outra atribuição: os registros de casamento, de óbito, de batizado, o cuidado pelos cemitérios, tudo isso acabou pertencendo à Igreja Católica; esses assuntos ficaram dentro da alçada da Igreja Católica. O Estado não fazia outra coisa senão respeitar e acatar a autoridade da Igreja. A Igreja organizou também desde cedo tribunais que discutiam todos esses assuntos. E os tribunais civis eram muito pouco apreciados na Idade Média, enquanto os tribunais eclesiásticos eram apreciadíssimos. E muitas vezes nos contratos sobre assuntos que nada tinham a ver com a Igreja, as partes estipulavam entre si que, em caso de dúvida, o assunto seria resolvido no tribunal eclesiástico. Por esta razão, nós temos muitos contratos assim: alguém que vende uma partilha de tecidos para outrem; prazo e prestações. Se houver alguma dúvida o tribunal eclesiástico vai ser o juiz. Qual é a razão disto? Não que a matéria seja eclesiástica, mas é que os tribunais eclesiásticos eram tão mais bem organizados que os civis, eles tinham uma lei tão mais clara, um processo tão mais simples, garantias de imparcialidade tão mais evidente, que todo mundo preferia o tribunal eclesiástico ao tribunal civil, razão pela qual a justiça eclesiástica atingiu um desdobramento enorme. [...] Os tribunais eclesiásticos em princípio pertenciam ao bispo. O bispo era o juiz dentro da diocese em matéria de Direito Canônico: ele delegava suas funções a um arcediago e depois, por uma espécie de abuso, abades e outras autoridades eclesiásticas começaram a julgar também. Mas a Igreja cortou muito cedo esse abuso. O bispo depois constituiu um tribunal especial que era presidido por um oficial, quer dizer, "por um homem de ofício", um clérigo que havia estudado advocacia e por isso ficou chamado oficialidade, porque era dirigido por um homem que conhecia as leis. Esse tribunal era também chamado Corte da Igreja ou Corte da Cristandade. Da decisão de um tribunal diocesano cabia recurso ao tribunal metropolitano; e da decisão de um tribunal metropolitano cabia recurso à Santa Sé, que tinha organizado o tribunal da Rota Romana, que até hoje funciona. O processo não só era muito simples, mas tinha uma grande vantagem: não continha tortura, de modo que as partes em juízo não tinham a recear qualquer tortura no caso de alguma dúvida no curso dos direitos de cada um. Muito cedo se desenvolveu a legislação a respeito dos bens da Igreja Católica. Nós vemos desde os Atos dos Apóstolos que houve o hábito de fazer donativos. O episódio característico é o de Ananias e Safira, que foram fazer um donativo, deram menos do que diziam e por causa disso caíram mortos. Desde os primórdios a Igreja começou a receber donativos, e depois de Constantino Ela foi reconhecida como uma personalidade jurídica, quer dizer, adquiriu a capacidade de receber dinheiro. Esta capacidade foi acrescida por algo que está no âmago da situação legal da Igreja na Idade Média, que é a questão dos dízimos. Quando estudamos o catecismo, um dos mandamentos da Igreja diz: pagar dízimos segundo o costume. Isto nos parece algo muito sem importância; recorda-nos uma boa senhora ou um homem que vem com uma sacola, ou com uma bandejinha, pedindo alguma coisa, cada um dá o que quer, as pessoas que estão sem troco, ainda fazem troco com aquilo, e depois aquilo vai lá para dentro. Para quem vai aquilo? Antigamente gastava-se muito, porque era um tempo muito rico em que tudo estava sendo renovado, em que as cerimônias implicavam no uso de perfumes e outras coisas caríssimas, de maneira que era preciso muito dinheiro para Jerusalém. Havia uma das doze tribos de Israel que vivia para o sacerdócio, que tinha o direito de coletar dinheiro para viver. Por isso era preciso que todo o mundo desse uma décima parte de seus bens para o Templo. A Igreja Católica, usando seu poder legislativo, através de concílios começou a tornar obrigatório o pagamento do dízimo. Todo cristão, todo católico devia dar uma décima parte de sua renda para a Igreja. E, como as leis dos concílios eram leis do Estado, os governos começaram a impor à população que pagasse. Mas a população era muito mais generosa do que a de hoje. Nós não estávamos na era do mercantilismo, em que o lucro líquido, a idéia de acumular dinheiro, de o dinheiro render para ficar rico, para comprar um Cadillac, ou para comprar um outro estabelecimento qualquer e ficar mais rico ainda, dominou e hipnotizou os homens. Nós não estávamos nesta época. Cada um queria viver para manter o seu nível comum. O que lhe sobrasse, de boa vontade dava de esmola. Vamos ver daqui a pouco, o papel da esmola dentro da vida da Igreja na Idade Média. De maneira que esses dízimos eram cobrados dos agarrados, que sempre os há. Mas, em geral a população dava os dízimos de boa vontade, não era preciso cobrar. Nós nos encontramos diante dessa situação, única na história do mundo: um continente inteiro, a Europa, em que todos os homens pagam para uma só instituição — a Igreja Católica, e que é a mesma instituição em toda parte — a décima parte de suas rendas. Os Srs. imaginem se a Igreja de São Paulo tivesse a décima parte de tudo quanto rende em São Paulo. Nós não teríamos a catedral construída em 30 anos, nós não teríamos falta de jornal católico, rádio católica, de obras de caridade, de tudo isso que nós temos falta. Por quê? A Igreja ganharia mais do que o Estado. Era uma coisa fenomenal a entrada que os dízimos produziam para a Igreja. Isto deu uma fortuna muito grande para a Igreja, acrescida do seguinte: em geral as pessoas ao morrer deixavam donativos para a Igreja nos seus testamentos. E a idéia de que um homem que vai morrer deixa donativos à Igreja, para expiação dos seus pecados, era uma idéia tão corrente que em alguns lugares se estabeleceu o seguinte costume: quando alguém morria sem testamento, pressupunha-se que ele não teve tempo de fazê-lo, e então uma quantidade 'x' dos bens que ele tinha deixado - que variava de lugar para lugar - era dada para a Igreja. Não havia o imposto de transmissão de propriedade que existe hoje. O Estado não era o filho primogênito de todos os que morrem como é hoje. Mas a Igreja era a décima filha: quando alguém morria, havia sempre mais uma filha presente, essa filha era a Igreja Católica. Não basta isso, a Igreja recebia donativos enormes de pessoas ainda em vida, e por isso Ela se tornou uma instituição verdadeiramente riquíssima na Europa. A maior potência financeira do tempo era indiscutivelmente a Igreja Católica. Os Srs. compreendem o que é que pode significar isso como poder. Os Srs. tomem uma instituição (vamos olhar as coisas com olhos humanos) imensa, que se estende em todo um continente, muito bem organizada, inteiramente unida, portadora de uma doutrina a respeito da qual mesmo os incrédulos têm que reconhecer que é uma doutrina maravilhosa. Ao mesmo tempo, portadora de uma grande história: no século XIII a Igreja já se sentia velha; já tinha 1300 anos de vida atrás de si. E se essa instituição ainda manejava as alavancas de um poder econômico colossal, os Srs. compreendem quais eram os poderes dessa instituição e quais eram as raízes dessa instituição na vida. Naturalmente é uma questão de História muito severa, saber o que a Igreja fez desse dinheiro. Esse dinheiro ia para quê? Para os padres levarem uma vida opulenta? Há uma literaturazinha anticlerical, e até uma iconografia anticlerical, que representa isso: mesa de abade. Existe até a expressão: comer como um abade. A gente imagina um grande refeitório gótico, um abade comendo numa mesa de estrado alto e vários frades que vêm trazendo perus, leitões, carneiros, cabritos, etc. e adiante já estão entrando as sobremesas. Nós vamos ver daqui a pouco o que era feito dos dízimos da Igreja.
Em princípio, quais eram os fins a que se destinavam os bens da Igreja? Primeiramente: alfaias, todos os paramentos do culto; 2) manutenção do clero; 3) conservação e construção dos estabelecimentos eclesiásticos; 4) um ponto que deve atrair nossa atenção: cura pauperis - o sustento dos pobres. Nessas várias finalidades a Igreja se desincumbia admiravelmente. Em matéria de necessidade do culto, ela desenvolveu as artes de um modo assombroso. Deixou alfaias que os homens do mundo inteiro ainda vão admirar nas catedrais que a Idade Média nos legou. Quanto à conservação e construção dos edifícios eclesiásticos, eu não preciso falar aos Srs. das Igrejas da Idade Média. Verdadeiras maravilhas do talento humano. A cura pauperis, é algo que precisa ser mais estudado, porque vai provar aos Srs. o seguinte: não só a Igreja tinha o que hoje nós poderíamos chamar uma assistência adiantadíssima, como todas as medidas do Estado moderno para a assistência dos pobres são medidas fracas, impotentes, em relação à imensidade que a Igreja fazia. Esta fortuna nababesca da Igreja como estava constituída? Era constituída de uma porção de patrimônios. Havia a chamada mensa do bispo, necessária para a manutenção do bispo; havia um patrimônio cuja renda supria a manutenção dos cônegos; depois, cada paróquia tinha o seu patrimônio; e em todos esses patrimônios se entendia que havia como que uma parcela que era [destinada à assistência] dos pobres. A cura pauperis, a assistência aos pobres, era uma finalidade normal da Igreja, uma função normal da Igreja, como era a compra de incenso para um turíbulo, ou a restauração de um vitral. Por causa disso, na Idade Média em cada paróquia e em cada diocese havia um hospital ou uma obra de caridade anexada que o vigário era obrigado a manter com os dízimos, e que tinha que chegar aos pobres que estavam naquele lugar.
De maneira tal que um pobre, por exemplo, indo bater à casa de alguém pedindo esmola, podia-se dar esmola, mas a resposta normal era esta: "vá pedir ao vigário". Esta resposta era normal, porque o vigário já tinha recebido o dízimo e ele tinha que manter os pobres da paróquia com esse dinheiro. Ele tinha uma fortuna para isso e era responsável por aquele templo. Mais ainda: quando o vigário cuidava mal das coisas, o pobre tinha o direito de se queixar ao bispo - e talvez daí venha a expressão brasileira: "vá se queixar ao bispo". Essa expressão não queria dizer "vá amolar outro", mas queria dizer o seguinte: realmente, o bispo é incumbido disso, ele que veja isso, porque você é pobre. Em que paróquia você mora? Tal paróquia. Logo, você tem direito de comer por conta do vigário; se o vigário não der, registre queixa para o bispo. Além disso, os bispos e os vigários tinham nessas instituições muitos leigos que auxiliavam e desse dinheiro eles prestavam contas. O bispo prestava contas apenas por (?), não dependia de ninguém. Mas o vigário dependia de um conselho que o assistia, de maneira que os paroquianos sabiam o que era feito do dinheiro deles. Portanto, era uma coisa perfeitamente controlada e perfeitamente conhecida. Com isso nasceu na Europa inteira algo que não existia: uma rede de estabelecimentos de caridade como nunca se tinha visto até então. Para os Srs. medirem o progresso, considerem o seguinte: no tempo do paganismo não havia hospitais, pura e simplesmente. Os doentes ficavam vagabundeando pelas ruas.
Os Srs. viram isso nos Evangelhos: como viviam aqueles leprosos que iam atrás de Nosso Senhor? Viviam rodando de um lado para outro, tocados por todo mundo. E assim era a situação comum. Os primeiros hospitais foram fundados sob a proteção da Igreja. E esta rede hospitalar que cobriu a Europa na Idade Média foi a primeira rede de obras de caridade que jamais um continente teve na vida. Tudo isso foi pago com esse patrimônio eclesiástico. Havia coisas tocantes. Por exemplo, estradas ainda ruins, passagens que ainda eram difíceis, e então o que é que fazia? Constituíam-se associações só para remediar esse assunto e, às vezes, até santos que se consagravam a essa obra. Assim, a famosa Pont d’Avignon foi construída sobre o Ródano por uma associação de pessoas piedosas que queriam facilitar a vida dos peregrinos, dos viajantes daquele tempo. Construíram essa magnífica ponte sob a direção de um santo que podia servir de patrono dos engenheiros. Nos montes dos Alpes, havia uma passagem terrível em que muitos morriam. São Bernardo de Menthon fundou então os dois famosos conventos para agasalhar as pessoas que passavam. E até deu origem também àquela raça de cães São Bernardo, que vão descobrir as pessoas soterradas sob a neve. Isso era freqüente na Idade Média: pontes, balsas, estradas construídas sob o patrocínio da Igreja para facilitar e para proteger as pessoas. Os Srs. estão vendo até onde ia a obra de assistência e proteção desenvolvida naqueles dias. Mas a grande glória da Igreja nesse sentido eu creio que não terá sido essa: foi a glória dos leprosários. Entre as mil coisas erradas contadas sobre a Idade Média, há a afirmação de que a Europa, antes das Cruzadas, não tinha lepra, mas que os Cruzados foram ao Oriente e voltaram carregados de lepra devido ao contágio pelos maus costumes que tinham, e que a espalharam pela Europa. É um modo de cobrir de lepra a glória das Cruzadas. Mas nada disso corresponde à verdade. A verdade histórica é outra. Havia lepra na Europa antes das Cruzadas. As Cruzadas deram origem a uma grande movimentação da população, e como acontece por uma lei que os fatos confirmam, mas que a medicina ainda não soube explicar, sempre que há grande movimentação da população, a lepra se propaga de novo, ela encontra facilidade de propagação extraordinária. A coisa concludente nesse sentido é a França. Os Srs. sabem que Paris é uma cidade onde a lepra se paralisa. Há leprosos que vão habitar em Paris para evitar que a doença progrida. Paris é, portanto, um ponto de atração de leprosos que, entretanto, não se irradia para nenhum lugar. Devido aos movimentos humanos a que a 1ª guerra mundial deu lugar, a lepra recrudesceu de tal maneira na França, que foi preciso fundar, pela 1ª vez desde a Idade Média, um leprosário num lugar (?) e, afinal de contas, a lepra acabou desaparecendo. Na Idade Média, com o movimento das Cruzadas, a lepra se generalizou de um modo fabuloso e então foi preciso construir hospitais, devendo isolar os leprosos. Agora os Srs. vão ver a atitude da Igreja: Ela entra com todo o dinheiro necessário para esses hospitais. Os Srs. sabem quantos hospitais? No tempo de São Luis havia dois mil leprosários funcionando na França. Se nós tivéssemos que fazer dois mil leprosários aqui em S. Paulo, nós faríamos naturalmente o Instituto da Lepra, que teria cinco seções, dez subseções, vinte departamentos e um palácio, que seria o palácio da lepra, e vinte automóveis para o presidente do Instituto da lepra... Eu não sei quantos leprosários seriam construídos, eu sei que muitos funcionários seriam nomeados... Os Srs. vejam o que faz a Igreja: foram construídos dois mil leprosários e neles viviam os leprosos. Um homem é considerado leproso, a Igreja interna esse homem num leprosário e excomunga-o sem piedade se ele sair, porque Ela não é piegas. O leproso era levado ao leprosário depois de uma cerimônia parecida com a entrada de uma pessoa numa congregação religiosa. Na igreja, o leproso era deitado num esquife e faziam uma espécie de ofício fúnebre. Depois, acompanhado pelo povo, o padre na frente, o coroinha com turíbulo etc., ele ia até a porta do leprosário, todos rezando salmos, ladainha dos santos. À porta do leprosário, o capelão dos leprosos esperava pelo homem. Lá, numa cerimônia horrífica para a nossa sensibilidade, ele veste o manto dos leprosos - um grande manto com patas de ganso bordadas nele - e recebe a campainha dos leprosos, que ele tem de tocar quando andar. Depois ele vai viver sua vida. A Igreja protege os homens sãos com essa severidade. Agora os Srs. vão ver a Igreja como é mãe: Ela inspira os homens sãos, que vão aos leprosários tratar dos leprosos e ali Ela organiza esses leprosários. Ela cuida dos leprosos, ela os ampara, os protege, ela os cura. Para resumir, ao cabo de algum tempo, já no tempo de Felipe o Belo, não havia mais leprosos na França, não havia mais leprosos em toda a Europa. Os leprosários começaram a fechar. Qual era a causa disso? A ação caritativa desenvolvida pela Igreja com o dinheiro que Ela recebia. Esses são alguns traços que caracterizam a ação da Igreja na sociedade medieval. Para os demais artigos desta série ver:
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