Plinio Corrêa de Oliveira aos 40 anos, aprox.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

 

Idade Média - 03

 

O papel da Honra na sociedade medieval

 

Série de palestras de formação histórica

 sobre a Idade Média - 1954 

A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a colaboradores do então Grupo do "Catolicismo", do qual posteriormente surgiria a TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor. Devido à idade das gravações, alguns trechos estão inaudíveis, mas não são de monta a impedir a compreensão do sentido geral da conferência.

A transcrição deste texto foi feita a partir de gravações extremamente antigas, com o que algumas partes ficaram inaudíveis e estão indicadas no texto.

Tem que se levar em conta que as descrições históricas foram feitas de memória em sua maior parte. Algumas imprecisões factuais, especialmente em situações de muita complexidade e mesmo dificuldade histórica, podem ter ocorrido.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.

 

* Na Idade Média havia um sentimento que dominava e que impregnava toda a vida social, e era o sentimento de honra

Vimos na última aula que a Idade Média, em virtude de ser uma época profundamente impregnada de doutrina católica, é muito fácil e, ao mesmo tempo, muito difícil de ser estudada.

Muito fácil, porque tudo se resolve à luz da doutrina católica. Quando encontramos uma instituição qualquer difícil de ser compreendida, percebemos imediatamente que ela se prende próxima ou remotamente a algum ponto da doutrina católica que precisa ser evocado. Mas de outro lado, acontece que a Idade Média, por ser impregnada de doutrina católica, era uma época em que a sociedade tinha muito de contingente; se adaptava também às circunstâncias da época, e as circunstâncias da época resultando de fatos muito complexos, há dentro da Idade Média muita complexidade também.

É o que sentimos bem quando tratamos de estudar uma coisa a respeito da qual os poetas da Idade Média — quer dizer, aqueles que em nosso século fizeram poesia a respeito da Idade Média, porque sentiram a poesia da Idade Média e viram na Idade Média sobretudo poesia — souberam ver bem.

Estou longe de falar mal daqueles que compreenderam a poesia medieval e a puseram em evidência essa poesia. Eu creio mesmo que foi um dos melhores modos para restaurar o prestígio da Idade Média nos tempos contemporâneos. Mas o mal é ver nas coisas principalmente poesia e, pior ainda, é ver nas coisas exclusivamente poesia.

Gravura  medieval de um torneio

A poesia tem que resultar do conhecimento da verdade. A poesia verdadeira é a beleza da verdade, e supõe, antes de tudo, que a gente tenha a verdade bem clara diante dos olhos, articulável, exprimível, definível, para daí então se desprender uma poesia verdadeira. Não é a emoção diante de imagens confusas que pode ser chamada verdadeira poesia.

Na Idade Média havia um sentimento que dominava e que impregnava toda a vida social, e que era o sentimento de honra. E esse sentimento impregnou sobretudo algumas instituições muito poéticas: a Cavalaria. Até hoje, quando se quer dizer de um homem que ele possui a plenitude das qualidades do varão católico, diz-se que é um cavalheiro.

A Cavalaria e, de outro lado, a poesia dos trovadores, que falava daquelas lutas, torneios, combates, etc., em que a questão de honra é constantemente tomada, elaborada e estudada. Mas nem sempre se faz uma análise exata do papel que, dentro da organização jurídica da Idade Média, a noção de honra ocupava, para depois daí tirar algumas noções de caráter concreto. E é o que eu queria analisar na aula de hoje. 

* O direito natural decorre da ordem natural das coisas e é a expressão da vontade de Deus. Constitui uma laje sobre a qual têm que correr os trilhos do direito positivo

 Nas aulas anteriores, tivemos ocasião de ver que na Idade Média a organização do Estado era profundamente diferente, não só do estado moderno, mas daquilo que seria o Estado segundo os tratadistas católicos de direito natural. Suponhamos, por exemplo, o famoso [inaudível], o [inaudível]. Para eles, o que é o Estado? Eles não dizem isto, mas por omissão eles acabam conduzindo à noção errada que eu vou mostrar. O quê é uma sociedade?

Uma sociedade acaba organizando-se da seguinte maneira: há o direito natural que decorre da ordem natural das coisas e que é a expressão da vontade de Deus. O direito natural constitui como que uma laje sobre a qual têm que correr os trilhos do direito positivo. Se o direito positivo, quer dizer, as leis feitas pelo Estado, corre constantemente sobre o terreno do direito natural, o pensador católico não tem mais nada que exigir.

E então, há duas zonas legislativas, se quiserem. Uma zona fundamental que é o direito natural, o direito não escrito, o direito definido pela moral católica. E sobre esta zona, há uma segunda camada do direito positivo. E depois acabou-se.

Os homens com sua situação definida pelo direito natural e pela lei positiva, conservam uma certa margem de liberdade, que é maior ou menor, segundo as leis positivas lhes reconheçam maior ou menor amplitude de movimentos. E dentro dessa margem de liberdade, eles fazem tudo quanto absolutamente entendem.

Encontramos mais uma vez aquele [inaudível] do cidadão livre, vacinado, maior de 21 anos, no gozo de todos os seus direitos civis. Ele faz absolutamente tudo quanto entende. Não tem que dar satisfação a ninguém. E por causa disto, a vida privada acaba sendo entregue a uma espécie de inconsistência, não nascem dela instituições nem situações estáveis, tudo é mutável, tudo é flutuante, tudo está entregue ao jogo das circunstâncias, que já se deseja de antemão, sejam mutáveis e vacilantes.  

* A organização da Idade Média, com o direito natural, o direito eclesiástico de instituição divina e eclesiástica, as leis do Estado e os contratos entres os particulares - o desejo de estabilidade

 É exatamente o contrário na organização da Idade Média. Temos o direito natural, mas além do direito natural, temos uma coisa da qual os tratadistas de direito natural falam muito pouco, que é o direito eclesiástico, de instituição divina e eclesiástica. E além do direito eclesiástico, temos as leis do Estado e os contratos entre os particulares.

Toda a sociedade medieval é constituída de contratos entre grupos, entre pessoas, pessoas que formam grupos, grupos que formam grupos de grupos, para chegarem até o Estado, tudo isto constituído de contratos e esses contratos dando origem a instituições estáveis, definidas. Contratos que têm o grande mérito de muitas vezes viverem muito além daqueles que os instituíram, porque são contratos feitos por pessoas de lado a lado, constituindo direitos por todas as suas gerações, enquanto o mundo for mundo.

Esta expressão "enquanto o mundo for mundo" é tirada do velho direito português. Eles faziam tratados, faziam contratos que para significar que eram perpétuos, diziam "enquanto o mundo for mundo".

Por exemplo, na doação de chão da prefeitura municipal de São Paulo, para a construção do mosteiro de São Bento, a cláusula final era esta: "e durará a presente doação em todas as suas cláusulas, enquanto o mundo for mundo". Vejam o desejo de estabilidade, de fixidez. 

* Além das leis natural, eclesiástica e positiva, havia uma floresta de contratos que constituíam quase a parte mais importante da vida, que estipulavam cuidadosamente todas as cláusulas

 As concessões feitas pelos suseranos aos vassalos eram para durar enquanto o mundo fosse mundo. E as concessões feitas pelos vassalos aos seus vassalos, também eram para durar enquanto o mundo fosse mundo. E a concessão feita pelo vassalo nobre ao súdito plebeu, de terras para ele explorar, era enquanto o mundo fosse mundo.

As corporações eram constituídas mediante contratos entre as partes, para durarem enquanto o mundo fosse mundo. De maneira que as pessoas já nasciam vinculadas por situações contratuais estabelecidas antes delas que deveriam durar depois delas, enquanto o mundo fosse mundo. E por causa disso, às vezes, nem as duas partes interessadas podiam mudar a situação contratual. De maneira que ficava além da lei natural, além da lei eclesiástica ou divina, além da lei positiva, ficava uma imensa camada, uma espécie de floresta de contratos, que constituíam quase que a parte mais importante da vida, que estipulavam cuidadosamente todas as cláusulas. E esses contratos eram leis para as partes. E era sobre esses contratos que estava baseada toda a sociedade medieval. 

* Uma sociedade baseada em tão larga medida sobre contratos, acaba sendo uma sociedade baseada no sentimento de honra, porque o contrato vale pela veracidade da palavra

 Compreendemos facilmente que um contrato vale pela veracidade da palavra daqueles que o subscreveram, e que uma sociedade baseada em tão larga medida sobre contratos, acaba sendo uma sociedade baseada sobre a palavra de honra, ou sobre a honra da palavra. Se o contrato é base, mas a base do contrato é a honra, o sentimento de honra acaba sendo a base de toda a sociedade.

Então compreendemos que a veracidade, a exatidão da palavra empenhada, o respeito religioso, e tudo aquilo que foi prometido, é um dos fundamentos do próprio direito, da própria sociedade medieval. E vemos que a medida que ela foi declinando, esse respeito à palavra empenhada foi desaparecendo também.

Ainda no Brasil, no século passado (XIX), havia pessoas que seriamente entregavam como garantia de uma dívida pesada, um fio de barba. O outro tomava o fio de barba, guardava num envelope e restituía na hora de pagar a dívida. Ainda neste tempo a barba do homem era uma espécie de produção consciente de título de honra. E o fio de barba ia sem assinatura, mas era o amor do homem ao seu fio de barba que servia de garantia. Era o calor de uma tradição medieval que ainda estava vivendo. 

* A honra era uma virtude católica e, como tal, todas as questões de honra eram questões de moral, e como questões de moral eram questões de caráter religioso

 Havia uma conseqüência para a religião católica nisto, de uma importância enorme. A honra não era concebida de um modo baixo. Se há uma coisa que na Idade Média não existia era qualquer concepção leiga; a honra era concebida de modo religioso. Era uma virtude católica e, como tal, todas as questões de honra eram, em última análise, questões de moral e, como questões de moral eram questões de caráter religioso, e como tais, eram todos os campos da sociedade.

A Santa Sé em ponto grande, os bispos em ponto pequeno. Já disse aqui, que o bispo quando ia em visita pastoral, não ia, como vai hoje, para fazer uns sermões, ouvir confissões, verificar as contas do vigário. Isto era apenas o começo de conversa da função do bispo. Na visita pastoral o bispo ia também para tomar conhecimento dos escândalos existentes no lugar, ia com tropa própria para mandar seus soldados irem ao lugar onde havia gente escandalosa, trazê-los à sua presença e dar um prazo para as pessoas se emendarem. E quando não se emendavam dentro do prazo determinado, ele tinha o direito de mandar prendê-los.

A importância do papel da honra na Idade Média, nota-se numa porção de circunstâncias. 

* Exemplo histórico de um Senhor feudal que estava preso por uma prisão maior que todas as outras prisões: sua palavra de honra 

Guerra dos Cem Anos - Batalha de Crécy

Manuscrito de Jean Froissard

Por exemplo, numa das fichas que me encaminharam, nota-se algo interessante a este respeito. Era um senhor feudal, francês, que havia sido preso pelos ingleses na guerra dos Cem Anos. Exigiam dele uma certa quantia de resgate para poder ser posto em liberdade. Ele disse então:

Eu não tenho dinheiro.

— Mas você tem o tal castelo que poder nos ceder.

— Não posso, porque este castelo, eu empenhei minha palavra que pertence a fulano.

— Mas há outro castelo.

— Também não posso. Empenhei minha palavra, pertence a sicrano.

— Mas há tal coisa assim que você tem o direito.

— Não posso porque este é meu suserano. Tenho também minha palavra empenhada.

— Então você não pode nada?

— Não, em virtude das leis da honra, eu não posso nada. Não dou nada e continuo prisioneiro.

Este homem era prisioneiro apenas de sua honra. Os ingleses estavam dispostos a fazer com ele qualquer negócio, assinar com ele qualquer papel que lhes desse um pretexto para tomar este castelo. Mas ele estava preso por uma prisão maior que todas as outras prisões: ele tinha sua palavra de honra. 

* O respeito à própria palavra era o perfume de toda uma organização jurídica e moral existente

 Estes fatos eram tão comuns que havia a instituição dos prisioneiros de guerra que eram libertados, quando eram nobres, com a condição de darem sua palavra de honra de que não iriam mais combater.

Então, davam a palavra de honra e deixavam como emblema a sua espada com o vencedor. Voltavam para o seu país e ficavam durante todo o resto da guerra, de braços cruzados. Ficavam presos por palavras de honra. Às vezes, o rei chamava um senhor feudal a quem ele queria impor uma pena, e em vez de mandar prendê-lo, dizia:

"Eu lhe dou como domicílio forçado tal lugar durante tal tempo. Mas quero sua palavra de honra de que não se afastará".

Se o senhor feudal realmente não tinha intenção de fugir, ele fazia seu compromisso. Podia se estar seguro. Ele não fugiria absolutamente. Houve casos de prisioneiros feitos à força, que receberam oferecimento de serem libertos mediante palavra de honra de morarem do lado de fora da prisão, no mesmo lugar. E eles respondiam: "de dentro da prisão, é possível fugir, mas da honra não se foge. De maneira que me sinto mais próximo da liberdade numa enxovia, alguns pés abaixo da terra, amarrado à uma parede de granito por uma corrente que me pega pelo abdômen, do que do lado de fora com a palavra de honra".

Vejam o respeito à própria palavra! É o perfume de toda uma organização jurídica e moral, que absolutamente estava [inaudível]  

* Não se pode pretender que a sociedade tenha ganho com o fato de a fé e a honra terem sido substituídas pelo princípio de autoridade, no século XVI e XVII

 Há aqui uma citação desse [inaudível]. que diz:

É certo que durante mais de 5 séculos a fé e a honra conservaram-se a base essencial, a armadura das relações sociais. Quando a fé e a honra foram substituídas pelo princípio de autoridade, no século XVI e, sobretudo, no século XVII, não se pode pretender que a sociedade tenha ganho com isto.

Vie et miracles de Saint Louis - Guillaume de Saint-Pathus (1277-1315) (***)

Em todo caso, a nobreza, já diminuída por outras razões, perdeu, com este fato, a sua [inaudível] moral essencial. Com efeito, a classe que por excelência era a que devia ter honra, era a nobreza. Nobre e honrado, eram expressões correntes e comuns. E supunha-se do nobre que lhe era conatural ser honrado e era conatural ser corajoso. Não se compreendia um nobre poltrão, um nobre que não tivesse honra, cuja palavra não fosse verdadeira. Palavra de rei não volta atrás, diz um antigo ditado. Isto se podia dizer de todos aqueles participantes da autoridade do rei. A palavra de um nobre era uma coisa sagrada e que nunca se violava. Esta idéia de que os nobres eram aqueles que deviam primar pela honorabilidade, que deviam ser o modelo de honra em tudo, se exprimia na legislação de um modo interessante.

O crime de um nobre era, em princípio, um crime mais pesado que o de um plebeu. E por causa disto, freqüentemente as leis taxavam os nobres muito mais duramente que os plebeus. Por exemplo [inaudível].. refere-se a um determinado crime cuja pena acarretava para um vilão, pagamento de uma multa de 60 "sous" (*), para um nobre, 60 libras. A proporção de um para 20, porque o nobre era muito mais culpado.

Nas famosas "établissements" de São Luiz existe uma pena de 50 "sous" para o plebeu. O mesmo crime é punido com confisco completo dos bens, para o nobre.

No ato constitutivo da cidade de [inaudível], há um crime de 20 libras para um barão; 10 libras para um cavaleiro, 6 "sous" para um burguês e 20 "sous" para um vilão.

[Não está claro na fita o que é leitura da ficha ou palavras do Prof. Plinio]

 * Uma pequena aplicação do princípio do Evangelho, de que os poderosos serão poderosamente atormentados

À medida que decaem, a pena vai decaindo também.

Aquele que tem mais obrigação de honra é punido mais severamente. Há [aqui] uma pequena aplicação do princípio do Evangelho, de que os poderosos serão poderosamente atormentados. Deus vai ser, também com os poderosos, muito mais severo. E por isso, também na Terra, as autoridades devem ser mais severas com os poderosos. Uma das manifestações interessantes da importância do juramento é o papel que ele ocupava na posse do Chefe de Estado.

Em princípio, o Chefe de Estado não podia tomar posse de seu cargo, se ele não prestasse juramento de bem o cumprir. Hoje, isto é quase uma solenidade, um pretexto para uma champagnota. O Presidente da República vai jurar bem cumprir o seu mandato, fidelidade à constituição.

Imaginem um artigo [escrito] da seguinte maneira: é urgente que o Sr. Presidente preste seu juramento. Porque tal é o valor que adquire a palavra de um homem em virtude desse juramento, que nós poderemos respirar tranqüilos. Mas enquanto ele não tiver prestado esse juramento, nós não podemos ter garantias. E não tendo garantias, toda a ordem jurídica do país está em suspenso...

Chega o dia do juramento do Sr. Presidente. Ele vai à Câmara e jura. E neste dia as famílias vão passear no passeio público com banda de música e dormem mais sossegadas, porque a ordem legal está consolidada...

O quê é o juramento? Entende-se que é preciso haver uma solenidade para o Chefe de Estado tomar posse. Mas [hoje] nem as pessoas 'jurantes', nem as juradas, nem as conjuradas dão importância ao juramento. Quem de nós sabe qual é a fórmula do juramento do presidente da República? 

* Na Idade Média o chefe de Estado tomava posse de seu cargo num juramento, e os termos do juramento eram cuidadosamente pesados, eram objetos de discussões

 Ora, todo Chefe de Estado na Idade Média tomava posse de seu cargo num juramento. E os termos do juramento eram cuidadosamente pesados. E eram objeto de discussões.

Quando chegava a ocasião do rei tomar posse, às vezes pedia-se revisão dos termos do juramento. E a revisão era apresentada de modo cru pelos nobres e clérigos na véspera da posse: "Vosso pai interpretou o juramento desde modo. E não é esse o modo pelo qual se interpreta. De maneira que, ou não há cerimônia de coroação, ou o texto do juramento tem que trazer tal esclarecimento".

Objeta o rei: "não, vós oprimistes meu pai que era velho, e eu não aceito isto. A interpretação dele era verdadeira".

Então, em torno do juramento se travava uma batalha moral e uma batalha política, que às vezes acabava numa batalha militar. Suspende-se a cerimônia da coroação e sai guerra civil por causa dos termos de um juramento.

O juramento tinha um valor tão sagrado que ele, a bem dizer, derrubou o Sacro-império Romano Alemão. A fórmula de juramento do imperador não era fixa. Cada novo Imperador era obrigado a jurar alguma coisa a mais que os outros imperadores, para ser eleito. Isto chamava-se capitulação. Incluía-se mais um capítulo no juramento. Então, os juramento do imperador do sacro-império eram uma coisa quilométrica. Mas o curioso é que o imperador julgava-se amarrado pelo juramento que tinha prestado, e, em via de regra acabava cumprindo o juramento. De onde, cada vez mais ele ia ficando uma figura de proa dentro de um Sacro-Império onde a independência dos súditos crescia de um modo exagerado. Valor quase supersticioso do juramento e da palavra de honra.

* Juramento de Otton [IV] ao Papa Inocêncio III

Vou dar alguns exemplos do juramento:

Inocêncio III reconhecendo Otton IV como rei. Otton IV, por sua parte, prometeu e jurou — quer dizer, ele era filho do imperador anterior e, como tal, imperador dos romanos. Para ele ser reconhecido pela Santa Sé como rei dos romanos, e depois poder ser sagrado imperador do Sacro Império Romano Alemão, era preciso ele fazer este juramento.

Otton IV e o Papa Inocêncio III

Manuscrito do  século XV

Otton IV prometeu e jurou, no dia 8 de junho de 1201, em [inaudível] :

Ao Papa Inocêncio e seus sucessores e à Igreja Romana, proteger todos seus direitos, deixar-lhe todas as possessões reconquistadas e ajudá-lo na reconquista das que faltavam.

A estas possessões pertenciam os territórios desde... até [inaudível] O Exarcado de Ravena, a [inaudível]., a [inaudível] de Ancona, o ducado de Spoleto e sobretudo, o suculento território da condessa Matilde, e o condado de [inaudível].

Ele prometeu auxílio à Igreja para conservar e amparar o reino de Sicília, do qual o Papa era o verdadeiro senhor feudal.

Prestou obediência ao Papa e seus sucessores como o haviam feito os outros imperadores romanos. E jurou seguir os conselhos e a vontade do Papa, para manter os bons costumes do povo romano, no tocante à federação da Toscana e da Lombardia.

Em Colônia, no dia 3 de julho, o enviado pontifício Guido de Palestrina entregou o escrito do Papa, no qual Otton era solenemente reconhecido rei, pela graça de Deus e do Papa. Contra todos os contraditores se pronunciou a excomunhão (**). Era uma das grandes vantagens. A pessoa fazia um juramento ao Papa, recebia como paga o seguinte: quem violar este juramento, será excomungado. Veremos a preciosa vantagem que tinha um juramento de ser sancionado pela excomunhão.

Ora, promessa é a do imperador Frederico a Inocêncio III. Na Dieta dos Príncipes de Nuremberg, solenemente agradeceu a Inocêncio III, seu benfeitor e amparador, por cujos esforços e solicitude, ele tinha sido alimentado, amparado e elevado. E prometeu num documento com bula de ouro, ao Papa e seus sucessores, assim como à Igreja Católica, obediência e reverência.

Além disso, prometeu que a eleição dos prelados se fizesse livremente pelos cabidos, que as apelações chegassem livremente sem obstáculos à Sé Romana. Renunciou aos espólios, prometeu ajuda para a extirpação das heresias, amparo e auxílio para a recuperação dos Estados da Igreja, aos quais pertencia o país desde [inaudível] até [inaudível], comarca de Ancona, ducado de [inaudível] o país da condessa Matilde, o Exarcado de Ravena, [inaudível] e outros, segundo os privilégios dos imperadores e reis, desde Luiz.

A Igreja Romana devia ter todos estes domínios com jurisdição e soberania, mas de tal sorte que o imperador tirasse dela o dinheiro necessário para ir a Roma para a coroação como em outros casos, quando ele fosse chamado pelo Papa, para razões de guerra. Também ajudaria a Igreja Romana a conservar o reino da Sicília e outros direitos, como fiel filho da Igreja e como príncipe católico.  

* Inocêncio III conseguiu fazer vergar diante de si os monarcas mais poderosos, mas fazia consistir sua glória em respeitar os privilégios de todas as cidades do Estado Pontifício

 Este respeito ao juramento explica também uma outra coisa: como é que reis e papas muito ciosos de sua autoridade, faziam consistir toda a sua glória em respeitar os direitos de determinados organismos inferiores a eles? Por exemplo, Inocêncio III foi um Papa que fez sentir a força de seu pulso em todo o território europeu.

Ora, ele conseguiu fazer vergar diante de si os monarcas mais poderosos, mas fazia consistir sua glória em respeitar os privilégios de todas as cidades dos Estados Pontifícios. Isto vem exatamente dessa idéia de que ele era um homem de honra e que se ele, para manter os seus direitos, sabia fazer os poderosos abaixarem a cabeça, entretanto, ele não era um homem que não soubesse respeitar os seus juramentos.

Por causa disso, era homem de proteger os mais insignificantes de seus súditos, aos quais estava amarrado por um contrato em que ele tinha dado garantias, regalias e autonomias. Isto era razão suficiente para ele se curvar e respeitar esta situação. 

* Os delitos contra a honra eram punidos com penas que afetavam a honra

 Naturalmente, também isto explica a ferocidade de certas vendetas quando a pessoa cometia crimes de desonra. Nós sabemos que a Idade Média, com seu senso jurídico profundo, qualificava determinados delitos como delitos contra a honra e esses delitos eram punidos com penas que afetavam a honra também.

Sabemos, por exemplo, que para determinados crimes contra a virtude da pureza, numa das cidades da Alemanha, parece que Nuremberg, o culpado era obrigado a andar com uma imensa cabeça de porco sobre a sua cabeça, pelo meio da cidade, seguido dos moleques que batiam caixas, davam pontapés, etc., debaixo dos olhares complacentes dos peregrinos que evitavam que ele fugisse. Mais, para se saber quem era, ia na frente um funcionário com um cartaz com seu nome.

Outras vezes, conforme fosse o crime, por exemplo, crime de gatuno, o animal simbolizado era diferente. Noutros lugares, em lugar de ser uma passeata infamante, a pessoa era amarrada no pelourinho em praça pública, os braços atrás bem presos para não fugir, com um escrito perto contando o que ela fez. O homem ficava arrasado. Era no terreno da honra, uma repressão feroz que, às vezes, ia mais longe.

Todos nós conhecemos a terrível marcação do criminoso, com a famosa flor de lis, em fogo, na França. Coisa horrível, porque era o estigma da justiça real marcando as carnes daquele criminoso para sempre.

Naturalmente, era susceptível de ser escondida, mas compreende-se todos os riscos que poderia comportar. Eu sei que uma pessoa tem uma flor de lis na carne, eu digo numa roda: "você é um homem que não é capaz de abrir sua camisa".

Noutros lugares a pena era pior, porque era para ser vista. Então cortavam a orelha do sujeito de um determinado modo só aplicado a criminosos. Ficava o cartão de visita colocado no rosto. Penalidades tremendas de caráter feudal. 

* Havia uma confiança que todos tinham no Papado, como fundamento da honra de todo o Universo

 Por exemplo, Bonifácio VIII. Entre outros vassalos feudais, ele tinha os Colonas. Os Colonas se revoltaram contra ele. Ele pregou uma Cruzada contra os Colonas. Resultado: veio gente de toda parte, e ele liquidou com os Colonas. Depois disto, resolveu perdoá-los. Mas, numa cerimônia pública, os Colonas se ajoelharam diante dele e pediram perdão. Depois disto — faz parte do indulto que ele deu — mandou tropas dele a Palestrina, que era um dos focos dos Colonas, arrasar a cidade, passar o arado por cima para maior certeza de que não havia ficado nada, e depois salgar o lugar em que existira Palestrina.

A nós isto parece muito violento. Parece violento justamente porque não estamos familiarizados com a noção de [inaudível].

Não compreendemos a vilania que cometia um senhor feudal em se revoltar contra seu suserano. É muito fácil a gente falar em caridade, quando não se tem o senso moral e quando não se compreende a enormidade de determinados delitos. Esta situação fazia também com que o Papa fosse o homem mais procurado e estimado por sua honorabilidade, em toda a Cristandade. Sabia-se [que] o Papa era o Vigário de Jesus Cristo na Terra, era o homem de confiança por excelência do mundo inteiro, o pai comum de todos e que, por causa disto, podia-se confiar na honra dele, - que era o sustentáculo de toda a honra do Universo- mais do que em qualquer outro.

Por causa disto, era muito comum os Papas receberem como pupilos, reis menores de idade. Quando o rei falecia, deixava em testamento um pedido ao Papa para ser tutor do menino. O papa aceitava a tutela e começava por lançar a excomunhão contra quem atentasse contra os direitos do menino. Às vezes mandava o menino ir à Roma para ser educado, e se incumbia de toda a sua formação, enquanto a Igreja ficava tomando conta do reino dele, com algumas pessoas da família exercendo a regência.

Quando o menino estava maduro o Papa, que era o depositário daquela semente de dinastia, mandava-o de novo para o reino, para ser reintegrado e iniciar suas funções.

Era a confiança que todos tinham no papado, como fundamento da honra de todo o Universo. 

* Com o declínio da Idade Média nasceu a idolatria da esperteza e o desprezo pela honra

 É curioso notar que há um sentimento que é oposto à honra e que é a idolatria da esperteza. Exatamente onde começa a nascer a idolatria da esperteza, começa a nascer o desprezo pela honra. Hoje, por exemplo, inventou-se uma palavra que tem feito um bem enorme ao demônio e cuja invenção é muito antiga: a palavra "trouxa".

Como contrário de "trouxa" existe o "tubarão", que é o homem bem sucedido na vida e que ganhou muito dinheiro. O "tubarão" é o esperto. E acaba se criando um mito de admiração pelo "tubarão", um pouco como um menino tem por "gangster". Ele é criminoso, mas que grande homem!

Ora, esta idolatria da esperteza acanalhada e bem sucedida, e este desprezo para com a honestidade que não faz dinheiro, é uma coisa muito típica das épocas de [inaudível]

E isto começou a nascer no Ocidente, quando a Idade Média chegou a seu declínio. Começou por aparecerem os reis absolutistas, do tipo de Felipe IV ou mais tarde, do tipo de Luiz XI. Reis completamente sem palavra e que fazem consistir a sua glória em não ter palavra.

Uma coisa um pouco trágica e um pouco cômica: nas lutas entre Luiz XI e Carlos, O Temerário, duque de Borgonha, vê-se Carlos, o Temerário, sempre confiar na honra de Luiz XI, que está sempre preparando mais uma felonia.

Felipe IV é o tipo do rei absolutista e, ao mesmo tempo, o tipo do rei que dá exemplo de desonra bem sucedida. Com Eduardo I da Inglaterra, há um fato característico. Felipe IV marcou um encontro com Eduardo I, em Amiens, e anunciou o propósito de fazer a Eduardo concessões espetaculares. Eduardo I achou a coisa interessante a mandou que as cidades de Bordeaux, de [inaudível], fossem abertas — estavam no ponto do trajeto que Felipe IV tinha que fazer até Eduardo I — para as tropas. [Felipe IV] Toma conta da cidade e declara que não deseja mais fazer nada. Por causa disso, toda a Aquitânia cai nas mãos de Felipe IV. 

* Os dois fatos que concorreram para a destruição do contrato e da honra: no campo eclesiástico a implicância com a arbitragem do Papado, e no campo temporal a força como elemento de ordem

Représentation d'Avignon et du « palais forteresse » datant du début du XVe siècle

Atelier du maître de Boucicaut Bibliothèque Nationale

 Aqui começa uma situação nova. Felipe IV representa o direito romano, o absolutismo real. Ele representa uma ordem de coisas em que o contrato e a honra não tem mais muita importância, mas é o Estado, é a força. Não é preciso ter muita honra. O rei tem força para impor a ordem. O rei faz uma lei, todos têm que obedecer. Essas categorias de honra, desonra, etc., não têm muita importância.

Infelizmente, houve outra coisa que concorreu para isto. E isto foi de caráter eclesiástico. As questões de honra só podiam regular o mundo na medida em que houvesse confiança no papado, para que o papado fosse o juiz das questões de honra. Mas a partir do momento em que esta confiança desaparecesse, as questões de honra viravam fumaça. Se não há um tribunal de honra que se imponha ao mundo inteiro, as questões de honra já não o podem mais regular.

Ora, aconteceram duas coisas ao mesmo tempo. Pela entrada do pensamento laico, começou-se a implicar cada vez mais com a arbitragem do Papado. Coisa característica: Bonifácio VIII funcionou como árbitro entre Felipe IV, da França e Eduardo I, rei da Inglaterra, numa questão. Mas a cláusula que estes reis impuseram para que o Papa fosse o árbitro, foi a seguinte: que ele fosse árbitro a título pessoal e não enquanto Papa, porque não queriam reconhecer o direito do Papa de ser árbitro dos reis cristãos.

Ainda quando o homem merece confiança, é preciso declarar que não é como Papa, porque o Papa deve ficar excluído da coisa. Mas houve outro fato que contribuiu ainda mais para destruir o poder do papado em Avignon. Para que o Papa pudesse ser imparcial entre todos os povos, era preciso que ele não fosse suspeito de parcialidade para com nenhum povo.

Ora, os Papas de Avignon eram franceses, enclausurados na França e colocados debaixo da tutela dos reis de França. Qual o resultado? A permanente desconfiança de que eles iriam torcer as coisas em favor da França. Em conseqüência, desconfiança deles como árbitros e assim o tribunal de honra desapareceu. Depois do longo exílio de Avignon, veio o cisma do Ocidente. Vários Papas e anti-papas simultâneos. Nasce a dúvida de quem é o verdadeiro Papa.

No século XVI havia perto de 200 anos entre o exílio de Avignon e o cisma do Ocidente. Dois séculos de anomalias profundas no exercício do poder papal, com as repercussões tremendas [que] isto trouxe para a função de arbitragem do Papa. O resultado foi a decadência natural dessas funções. 

* Um exemplo de entrelaçamento das questões morais e políticas na Idade Média: a luta de João-sem-Terra com a Santa Sé

 O entrelaçamento das questões morais e políticas, nota-se muito bem em algumas questões medievais.

Por exemplo, na luta de João-sem-Terra com a Santa Sé e com os nobres de seu tempo. Em linhas gerais, o rei João-Sem-Terra resolveu liquidar um seu sobrinho, quer era Artur, duque da Bretanha. De um modo muito simples: convidou este duque para um passeio e, a horas tantas, não se sabe de que maneira, o Sena engoliu o duque da Bretanha. Constava no povinho, que João-Sem-Terra foi passear com o sobrinho e que desalmadamente dera duas estocadas no peito do sobrinho. Ele então, teria caído no Sena e morrido (****).

O fato é que se noticiou em Londres que o duque da Bretanha morrera. Logo que a notícia chegou à Bretanha, delineia-se uma situação de irregularidade para esse grande feudo da coroa francesa. E havia a situação curiosa de que o próprio rei da Inglaterra era vassalo da coroa francesa, enquanto duque da Normandia.

Então, o mantedor do direito natural na Bretanha, o bispo de [inaudível], representante da Igreja na sua função de bispo, intervém no caso. Vai correndo à França, e oferece uma denúncia oficial ao rei da França, pela morte do duque da Bretanha, acrescentando, ao mesmo tempo que os nobres e o clero da Bretanha, reconhecendo que o direito à sucessão natural do ducado da Bretanha pertencia à filha desse duque que tinha falecido, já a haviam instalado no trono ducal, apesar da minoridade, e que derramariam todo o seu sangue para mantê-la nessa situação.

O caso vai ao julgamento do rei da França, que o julga numa corte de pares e incita João-Sem-Terra a comparecer, enquanto duque da Normandia, e condena João-Sem-Terra ao confisco da Normandia, por crime de alta traição, enquanto felão.

João-Sem-Terra não aceita a situação e começa então uma política de hostilidades de João-Sem-Terra contra o clero inglês. Porque o clero inglês, revoltado contra o crime de João-Sem-Terra tinha tomado a iniciativa de combatê-lo. Nesta situação, vaga o trono arquiepiscopal de Canterbury, que é a sede primacial da Inglaterra, e o Papa Bonifácio VIII elege para arcebispo de Canterbury um certo [inaudível]. que era o chefe da oposição. João-Sem-Terra declara que não quer aceitar [inaudível] como arcebispo. O Papa mantém-se firme em sua deliberação e o caso da Bretanha degenera num conflito de características muito mais vastas, um conflito entre Inocêncio III e o rei da Inglaterra. Este conflito chega ao seguinte:

Inocêncio III excomunga João-Sem-Terra. Este, sentindo que a excomunhão vai ser para ele uma coisa tremenda, tenta fazer uma coisa que séculos mas tarde Napoleão faz: resolve trancar todos os portos da Inglaterra para que a notícia da excomunhão não chegue lá. Acontece entretanto, que as coisas papais têm uma capacidade de penetração prodigiosa. Nada menos que o juiz maior de Londres toma conhecimento da bula da excomunhão. Convoca, então, os outros juízes e lhes comunica que é ruim para a consciência continuar fiel a um rei excomungado. E por isto incita a todos os juízes a suspenderem o exercício das funções judiciais. João-Sem-Terra manda matar o juiz.

Resultado: [inaudível] na classe judiciária muita unidade e se queixam que seu chefe foi morto por causa da bula de excomunhão. Chega a notícia ao País de Gales. E a nobreza do País de Gales resolve revoltar-se contra João-Sem-Terra porque ele havia sido excomungado. Eles anteriormente já se haviam revoltado por outras razões. E João-Sem-Terra para ter a certeza de que não se revoltariam mais, tinha tomado 28 meninos nobres do País de Gales e os mantinha em Londres como reféns. Quando os nobres se revoltavam, ele manda enforcar os 28 meninos e assiste ao enforcamento, para ver se intimida o País de Gales. Isto provoca, com a notícia da excomunhão que se alastra, um levante de toda a nobreza da Inglaterra.

Então começa um zumbido de cartas pela Inglaterra de um nobre para outro. João-Sem-Terra vê que só consegue debelar as oposições dos melhores de seus adversários reconciliando-se com Roma. Manda comissários a toda brida a Inocêncio III, dizendo que estava disposto a reconciliar-se e que estava disposto mesmo a renunciar à coroa da Inglaterra para recebê-la novamente das mãos do Papa de presente. Inocêncio III caiu na onda. E o episódio de [inaudível] no século XIX não foi senão uma repetição desse episódio na Idade Média. Resolve então suspender a excomunhão, receber na comunhão dos fiéis a João-Sem-Terra e declarar que excomungaria todos os que daí por diante se revoltassem contra João-Sem-Terra.

João-Sem-Terra pôs a coroa na cabeça. Teoricamente, nos decretos tratados, alfarrábios, escritos, etc., ele passava a ser rei da Inglaterra pela graça de Deus e da Santa Sé, mas com os braços prontos para cair sobre os inimigos de sua obra nefasta.

Ele começou imediatamente a perseguir um e outro de seus adversários. O [arcebispo de Canterbury], que era mais esperto que Inocêncio III, levantou-se imediatamente e disse: "eu sou arcebispo de Canterbury, e eu tutelo a manutenção do direito natural e a honorabilidade dos tratados neste reino da Inglaterra".

"Ora, o direito natural está sendo violado pelo rei e os contratos entre o rei e seus senhores feudais também. Ergo, excomunhão contra o rei, excomunhão de caráter episcopal se o rei não voltar atrás e não reconhecer as velhas leis da Inglaterra".

O clero todo se levantou contra João-Sem-Terra. Este apela para o Papa. Inocêncio III entra em luta contra o [inaudível], mas nisto, João-Sem-Terra morre e as coisas ficam mais ou menos paradas aí.

Estas situações nós notamos no Sacro Império Romano Alemão, na história da Boêmia, na História da Polônia, e todas elas nos mostram como o Papa [entrava] a fundo, na política daqueles tempos e como isto dava ao papado uma verdadeira tutela sobre a política de todo o Ocidente. Naturalmente, esta tutela era recebida muito bem por uns países e recebida muito mal por outros países.

Sabemos que os povos meridionais são turbulentos. Bonifácio VIII, em certa ocasião, mandou ao reino da Sicília um legado para ajustar as pazes com os sicilianos. Este legado levava uma bula em branco para os sicilianos escreverem dentro o que quisessem como condição de paz. O legado se apresenta e os sicilianos dão a seguinte resposta: "Este negócio não termina com bula, mas termina com ferro". Era a onda de antipapismo e de laicismo que vinha subindo.

Outras cidades recebiam muito bem as interferências papais. Por exemplo, Pisa que nomeou Bonifácio VIII rector...

  


(*) - Le sol est une monnaie de compte de l'Ancien Régime, valant un vingtième de la livre tournois. Le sol est lui-même subdivisé en 12 deniers. Au XVIIe siècle, la forme "sol" a, sauf dans certaines expressions, été progressivement remplacée par la forme "sou", conformément à la prononciation.

(**) On 3 July, 1201, the papal legate, Cardinal-Bishop Guido of Palestrina, announced to the people, in the cathedral of Cologne, that Otto IV had been approved by the pope as Roman king and threatened with excommunication all those who refused to acknowledge him. -  http://www.newadvent.org/cathen/08013a.htm

(***) Life and Miracles of Saint Louis, Paris, around 1330-1340, Manuscripts Department, Western Section - This account is the French translation of a Latin original, since lost, which was used in the canonization proceedings of Louis IX (1226-1270). It was composed for Blanche of France, Saint Louis's daughter. The manuscript's ninety illustrations are divided into two series: the first relates to the edifying actions of the king's life; the second consists of sixty-five supplementary miniatures illustrating the miracles that occurred at the sovereign's tomb in the Abbey of Saint-Denis.

(****) Para um estudo mais detalhado sobre o assassinato de Arthur ver: "Charles Petit-Dutaillis. Le déshéritement de Jean sans Terre e le meurtre d'Arthur de Bretagne"


 

Para os demais artigos desta série ver:

 

Idade Média_01 - Organização Social

Idade Média_02 - O papel da Nobreza e das Elites:

Idade Média_03 - O papel da Honra na sociedade medieval

Idade Média_04 - O direito consuetudinário

Idade Média_05 - O equilíbrio legislativo na Idade Média

Idade Média_06 - O papel da Igreja na Sociedade Medieval - I

Idade Média_07 - O papel da Igreja na Sociedade Medieval - II: O Papado

 

 

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