Plinio Corrêa de Oliveira aos 40 anos, aprox.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

 

Idade Média - 02

 

O papel da Nobreza e das elites

 

Série de palestras de formação histórica

 sobre a Idade Média - 1954 

A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a colaboradores do então Grupo do "Catolicismo", do qual posteriormente surgiria a TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor. Devido à idade das gravações, alguns trechos estão inaudíveis, mas não são de monta a impedir a compreensão do sentido geral da conferência.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.

 

*A dependência de um homem em relação a outro 

Ato de vassalagem de Carlos o Mau, rei de Navarra, a Carlos V, rei de França

Nas considerações que vínhamos fazendo anteriormente sobre a Idade Média havia alguns princípios que deveriam terminar aquelas apreciações de conjunto. Um princípio se relaciona a uma coisa sobre a qual a sociedade liberal tem opiniões profundamente diferentes das nossas: é a questão da imitação.

De acordo com a boa doutrina da sociedade liberal, tive ocasião de mostrar que o normal do homem, é ser inteiramente sui juris livre, maior de 21 anos de idade, que não obedece a ninguém a não ser ao Estado, não tem ninguém abaixo de si porque só quem tem alguém abaixo de si é o Estado.

Mostrei que o oposto disto, na ordem política e social, eram os homens da Idade Média, ligados entre si por determinados vínculos e determinados contratos a outros homens aos quais eles se davam - como superior ou como inferior - de corpo e alma, de maneira a formar um contrato de solidariedade, que tinha na [vassalagem] feudal a sua expressão mais típica, mas que existia em toda a vida e pela qual a relação homem a homem não se fazia apenas através desses contratos de locação de serviço. Fazia-se por um verdadeiro imbricamento de toda a vida, por uma verdadeira interpenetração de todos os interesses, de todos os ideais, gerando da parte do superior a obrigação da proteção, que era o dever do suserano, e gerando da parte do vassalo a obrigação de fidelidade, de obediência.

E então o normal do homem medieval era exatamente não corresponder nunca ao conceito contemporâneo do maior de idade, sui juris, independente, que é dono do seu nariz e que faz o que bem entende.

Esta diferença de realidades gerou um terreno imponderável e importante que devemos analisar, gerou conseqüências de caráter muito interessante. 

* Na sociedade contemporânea, é vergonhoso imitar a outro homem

 Para o homem maior de idade da sociedade contemporânea, a imitação aparece sempre como vergonha. Nenhum dos senhores conhece alguém que ousasse dizer que imita fulano, que aprendeu isto com fulano, ou então que "não sei como fazer isto, vou ver como fulano faz para depois fazer como ele". É uma frase que nunca terão ouvido. Faz parte das regras da moral de nossa sociedade nunca pronunciar uma coisa destas, porque são contrárias à igualdade republicana dos homens.

Se todos os homens são tão bons nenhum bom deve imitar o outro, nenhum homem tem lições ou orientações que receber de outro. De fato, nossa sociedade vive da imitação, porque a imitação é um fenômeno social necessário, e por isto, a sociedade deixaria de existir se a imitação não existisse. Mas a imitação passa diante dos olhos do homem contemporâneo por ser uma verdadeira vergonha.

Ainda há pouco tempo atrás ouvi o comentário de alguém que dizia ter-me visto sair do restaurante Fasano com alguém de nosso Grupo, e que esta pessoa tomava em relação a mim a atitude de um discípulo que está aprendendo alguma coisa. Isso era dado como um labéu. Imaginem que ele se reconhecesse um discípulo do Plinio!

Mas o labéu não caía por ser discípulo meu, mas por ser discípulo de alguém. Se quiséssemos fazer um diagnóstico bem exato da sociedade contemporânea, deveríamos reconhecer que ela não é uma sociedade amoral, porque as sociedades amorais são impossíveis. É amoral apenas no sentido de que ela aboliu as regras da moralidade verdadeiras.

Mas tem sua moral própria, constituída de uma série de tabus destes. E este é um dos tabus mais característicos. E de tal maneira isto é contrário à opinião pública de hoje que — volto a dizer — nenhum dos senhores ouviu alguém dizer: "Ele é meu mestre, ou é meu modelo e vou me inspirar no que ele faz para saber como devo agir". 

* O homem contemporâneo imita muito, mas não gosta de dizer que imita

 Na sociedade contemporânea, de fato, imita-se.

Quais são as pessoas que se imitam na sociedade contemporânea?

Antes de tudo, em matéria de modas. Em modas, afinal de contas, vivemos da imitação. É preciso saber o que é que está sendo usado, e o que está sendo usado não obedece a nenhuma regra da razão.

Por exemplo, há uns anos atrás, para casamento, era de rigor a pessoa pôr um terno azul e gravata prateada. Hoje já não é assim. E o coitado que sem saber disto, se mete num casamento com uma gravata prateada dos tempos de outrora, é olhado por todo o mundo e sente uns imponderáveis.... "Ele é um pobre atrasado, que ainda não percebeu que não se usa isto para casamento".... Pode usar fora do casamento, mas não nele.

Por que isto?

Porque na cidade de São Paulo um certo grupo de pessoas resolveu empurrar esta regra. Mas esta regra é imposta a um grupo porque outro grupo internacional mais importante adotou esta regra e a lançou. E como esta regra foi lançada bem do alto, ela vem repercutindo até São Paulo.

Notemos que isto é uma tal contradição com os princípios admitidos pela sociedade atual, que ninguém ousará dizer que vive com a atenção vigilante para saber qual o grito da última moda a seguir.

Mesmo uma senhora não terá uma tal formulação, de tal maneira o espírito de revolta de hoje em dia repugna quaisquer imitações. Mas se isso fosse a única imitação não seria nada. O homem contemporâneo imita artistas de cinema, imita as pessoas que imitam os artistas de cinema. Até as casas entram na moda e passam da moda. De maneira que há determinados tipos humanos que entram na moda e depois também saem da moda.

A imitação impõe-se a tudo, determina tudo. O homem contemporâneo imita muito, mas não gosta de dizer que imita.

Imita em modos de trabalho. Por exemplo, de repente generaliza-se uma versão no meio dos advogados: tal tipo de esperteza foi descoberto por fulano que é o último tipo de esperteza. Todos os advogados aprendem e aplicam aquela esperteza. De repente aquela fica banal e aparece uma velhacaria mais velhaca; aquilo passa para a penumbra e a nota do advogado evoluído é outro gênero de velhacaria.

Isto se dá com as construções, com os diagnósticos, com os tratamentos. Há alimentos que entram e saem da medicina.

A imitação é um fenômeno humano, mas essa imitação supõe uma certa dependência. Supondo uma certa dependência, ela é contrária às idéias de igualdade republicana. E por causa disto é um fenômeno ao mesmo tempo muito evidente e mais ou menos clandestino da sociedade contemporânea.

 * O homem tem necessidade de um modelo a quem imitar

 E em face dessa anomalia, — de uma coisa que o mundo contemporâneo tem de praticar e que pratica de um modo errado e servil, mas de outro lado é uma coisa que tem certa razão de ser, — deveríamos perguntar qual a razão de ser da imitação, qual o limite da imitação e ver como é que essa função da imitação pode ser institucionalizada dentro de uma sociedade.

Para esta institucionalização, o exemplo da Idade Média ser-nos-á da mais alta importância. A imitação propriamente, o que é?

Devemos reconhecer que a maior parte dos homens não têm uma inteligência muito dada à abstração e vê as coisas abstratas na medida em que elas são realizadas em situações concretas.

Por exemplo, o amor materno ou o amor filial, só se chega a conhecer bem quando se conhece uma boa mãe ou um bom filho. Não tendo conhecido uma boa mãe ou um bom filho a pessoa não sabe bem o que é o amor materno ou o amor filial.

Porque abstratamente pode-se saber o que é uma boa mãe: se usará a comparação do pelicano, se usará de outras abstrações ou de outras analogias, e não é preciso ter o conhecimento concreto de uma boa mãe para se saber verdadeiramente o que é amor materno. Mas a maior parte das pessoas não vai ao compêndio para ver o amor que uma mãe deve a seu filho; elas analisam uma boa mãe com seu bom filho, intuem se aquilo está direito e daí depreendem algumas determinadas regras.

Quer dizer, a inteligência humana é, por sua natureza, concreta. Ela se volta para as situações de caráter concreto. É vendo que certas situações concretas estão em ordem que ela acaba compreendendo teoricamente como a coisa deve ser. Os conceitos não descem das abstrações para a Terra, mas eles sobem desta para as abstrações.

Eu tive um colega que, aos 16 anos, para manter a conversa em sociedade tinha um manual de conversação e, depois, quando ia às festas, levantava as conversas lidas no manual.

É uma inteligência deformada, porque não é assim que se aprende a conversar. Aprende-se a conversar, conversando. Muito tempo depois a gente percebe as regras que seguiu para conversar. A inteligência humana vê as situações concretas e das situações concretas sobe aos ápices. Isto dá a fundamentação do ser.

O homem não pratica a virtude lendo o catecismo, lendo uma doutrina qualquer, e depois cuidando de praticar a virtude. Ele vê pessoas virtuosas e aqueles exemplos de virtude lhe mostram praticamente o que a virtude é. Ao mesmo tempo, no catecismo, ele vai ver o que é a virtude. Se essas duas coisas se justapõem, ele tem uma noção da virtude. Mas é por meio do exemplo que ele tem uma noção viva, concreta das coisas; é por meio do exemplo que ele forma seu espírito.

O exemplo tem, dentro da vida social, um papel primordial. Papel primordial no que diz respeito à virtude, no sentido mais amplo da palavra. Não só à virtude moral, estritamente falando, mas a tudo quanto é qualidade ou capacidade.

Suponhamos, por exemplo, bom gosto. Como se adquire? Bom gosto é uma qualidade inata, mas muita gente o desenvolve vendo outras pessoas de bom gosto, ainda que seja um gosto profundamente diferente do nosso.

Mas é no contato com elas, vendo o que elas fazem, ouvindo o que dizem, procurando imitá-las, é que a gente acaba compreendendo como é o bom gosto.

Quer dizer, é preciso ter uma porção de situações concretas para aprender depois como as coisas realmente devem ser. 

* Uma das mais importantes funções da nobreza é servir de modelo (1)

 Esta consideração nos leva a uma idéia um pouco mais alta. Tínhamos visto as múltiplas funções da nobreza. Faltava-nos analisar uma função que é uma função muito importante: a de elite.

Qual é o papel do nobre?

O nobre, na ordem psicológica das coisas, é constituído exatamente para ser imitado. O nobre é um homem de uma organização social, constituído para servir de exemplo em tudo, e para ser imitado em tudo.

Deve ter as fórmulas de vida, as fórmulas de pensamento, de existência, de ação, deve servir de modelo e padrão para todos. E todo o mundo, na consideração daqueles nobres, deve modelar a sua vida. Esta é uma das mais importantes funções da nobreza.

De que maneira a nobreza realiza esta função?

Por uma forma que assim poderia ser definida: vamos tomar uma corrente elétrica que passa por determinado metal e ninguém vê. Tocando com um dedo ali, sente-se um choque, mas não se percebe a corrente. Mas o tungstênio, por exemplo, oferece à eletricidade uma certa resistência e em conseqüência desta resistência produz uma incandescência. Aquela energia elétrica passando pelo tungstênio, se transforma em luz. Então, daí vem a iluminação. Eu diria então que o papel da nobreza em relação à inteligência, ao estudo, à cultura, é o papel do tungstênio.

O intelectual, o professor universitário, estuda, acumula idéias, forma princípios e os ensina às classes altas de um país. O professor universitário, o intelectual, não são necessariamente de classe alta, porque a inteligência tem esta coisa meio democrática de florescer em qualquer classe.

De maneira que tomando esta circunstância de que o espírito sopra onde quer, o intelectual não é provavelmente nem necessariamente um homem de alta sociedade. Mas venha de onde vier, o papel dele é ler e estudar. Depois ele forma determinados intelectuais de qualidade secundária, que são preceptores.

Um preceptor é um homem muito inteligente, mas de um feitio de inteligência diferente. Ele recebe a alta cultura do professor universitário e vai formar crianças com isto. Ele transforma a alta cultura em mercadoria pedagógica, e ele sabe dar uma educação na qual esta alta cultura está impregnada.

Este preceptor, altamente eletrificado pelas eletricidades da alta cultura, vai formar crianças nobres. E estas crianças nobres que ele forma são crianças que acabam tendo um grande discernimento intelectual, mas já em estado de tungstênio. A cultura passa pela cabeça dessas crianças, não para descobrirem fórmulas de pensamento, mas para organizarem a vida de acordo com os princípios que receberam.

Por exemplo, eu imagino São Tomás de Aquino. Como é que a Escolástica de São Tomás de Aquino poderia se tornar um valor cultural dentro da sociedade medieval? Seria por causa dos bandos de estudantes que o acompanharam?

Estes estudantes eram homens secundários na vida medieval. Entre esses estudantes havia alguns que tinham a educação de famílias nobres da Idade Média. Educavam crianças dentro da lógica, das convicções, do espírito de São Tomás.

Essas crianças não iam continuar a Filosofia. Essas crianças iam viver, iam organizar a vida, iluminadas pelo pensamento de São Tomás de Aquino. De maneira que iam governar escolasticamente, iam divertir-se escolasticamente, iam construir escolasticamente, iam transformar em ação, em vida, aquilo que na cabeça de São Tomás tinha sido puro pensamento.

A função do nobre é, então, transformar o pensamento em vida, a doutrina em realidade. Produzir essas organizações políticas, sociais, esses sistemas artísticos. São esses tipos de homens, — individualmente considerados, — altamente aculturados em que tudo é impregnado de pensamentos, iluminado por pensamentos, embora eles mesmos não sejam puros intelectuais, que tomam a realidade, a manipulam, colocam nela toda a integridade do intelectual, preparam organizações sociais cintilantes de radioatividade intelectual. Estão entre a inteligência e a prática e aí está o papel da nobreza.

Submissão de São Luis a Inocêncio IV em Cluny

O nobre toma a doutrina, concebe-a, formula-a como ela lhe foi dada pelo homem de pensamento, e depois inaugura sistemas de vida que estão dentro desta linha.

Por exemplo, com respeito à relação com o inimigo, a doutrina católica tem uma série de preceitos: o inimigo deve ser combatido, mas temos deveres em relação a ele. Temos o dever da lealdade em relação ao inimigo, devemos combater com armas que não sejam infames nem nefandas.

Por outro lado, nosso ódio ao inimigo é um ódio em certa medida legítimo, mas é um ódio que é proporcionado à gravidade da injúria que recebemos. De maneira que não podemos inferir ao inimigo um dano atroz por uma injúria que, por sua natureza, não é atroz. Por outro lado ao inimigo mesmo, devemos um certo respeito. Por fim, ao inimigo, além do ódio, devemos também amor e por causa disso, em certas circunstâncias, nós devemos ter em relação ao inimigo tais atos e tais procedimentos.

Isto é excogitado pelo teólogo, pelo filósofo.

O que faz um nobre?

Ele constituía as regras de combate da Idade Média, que cabem debaixo do título geral de cavalheirismo. Exatamente a idéia de que o inimigo deve ser combatido num duelo, mas num duelo frente a frente, de acordo com determinadas regras, em que os homens se medem por sua coragem e não por ciladas infames, é uma manifestação de respeito que cada combatente tem para consigo mesmo e para o outro combatente.

Vemos até que o combate é verdadeiro combate, e que como a guerra é movida por um ódio que pode ser um ódio santo, ela visa o extermínio do outro, mas visa também que quando, por uma razão qualquer, o combatente está posto fora de combate, cessado o combate, cessa o ódio, começa o amor. É o respeito ao prisioneiro, ao ferido, a proteção ao adversário fraco, etc.

Quer dizer, de um conjunto de princípios de moral, um nobre toma um estilo de guerrear. E esse estilo de guerrear se generaliza entre os nobres do Ocidente, constitui um costume que, por sua vez, constitui um valor de toda a civilização.

Temos então princípios; a nobreza os transforma em costumes, estilos de vida. E esses costumes e estilos de vida acabam sendo a própria realização da vida social. O nobre é, portanto, um exemplo que deve ser imitado.

Ficamos então diante do problema da imitação, em termos da Idade Média, ficamos colocados neste princípio: a imitação é uma coisa tão justa, tão legítima, que ela é até institucionalizada. E existe uma classe que é destinada a servir de exemplo a outras classes que devem imitá-la. Nisto está exatamente uma das mais altas responsabilidades da nobreza.

Por exemplo, o prazer. A Igreja Católica dá a respeito do prazer certas noções de caráter geral. O prazer deve ser antes de tudo conforme a lei de Deus. Não deve ter nenhum atentado à moral e, pelo contrário, deve quanto possível desenvolver a virtude. Em segundo lugar, o prazer deve ser uma verdadeira distensão. Não podemos conceber prazeres aplicados, prazeres esforçados, pois acabam não sendo nenhum prazer.

Com estes princípios alguém aprende a se divertir?

Imaginem que um dos senhores me dissesse: "Acho a vida maçante e não sei me divertir".

Eu diria: "Meu caro, dois conselhos..". E diria o que disse há pouco. Nada mais ... por quê? Porque daí não se deduz nada.

Dizer: "Faça uma distensão honesta e você se divertirá".

Vem logo a pergunta: "Mas o que é uma distensão? E depois, como fazer uma distensão honesta? Como organizar para mim mesmo uma distensão honesta? Não sei".

É simples. Distensão é o contrário de tensão. É um conceito negativo. Se quer aprender a distender-se, veja aquilo que o relaxa a si mesmo e pratique isto.

Entretanto, não se faz isto com princípio. Exatamente há uma classe que tem esta função. Imaginem um estilo de distração honesto que serve para uma determinada época, para uma determinada mentalidade, para um determinado povo e um determinado lugar. Ele se propaga e se propagando ensina os outros a viver.

Temos aí a função da imitação e a função da nobreza. 

* Deus criou certos homens com capacidade de personificação e de irradiação

 Esta posição não existe apenas da nobreza para o povo. Mas ela existe dentro da nobreza e dentro do povo.

De que maneira esta função existe dentro da nobreza?

Deus que constituiu determinados homens mais inteligentes que outros, também fez determinados homens mais representativos do que outros. Tomam-se às vezes pessoas muito inteligentes, capazes de descobrir uma pilha de teorias, que não são nem um pouco representativas. Chamo representativo aqui não o dom de "fazer farol", mas o dom de encarnar princípios e de dar vida a princípios, a doutrinas, etc.

Suponhamos, por exemplo, para personificar, dois homens bem diferentes: o Prof. AC [Professor Catedrático da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, da antiga geração da Faculdade ] e o Bispo “X”.

O Prof. AC é um homem indiscutivelmente muito inteligente. Leu muito e estou certo que leu muito mais que o Bispo “X”, e se fossem ter uma discussão de Filosofia, o Prof. AC acabava mostrando que é mais lido e mais instruído que o Bispo “X”. Mas é uma coisa evidente que se o Prof. AC nos fosse dizer o que é imponência, ele poderia vir com uma pequena definição etimológica e acabaria deduzindo um conceito filosófico de imponência. Mas quem saísse da aula ou da conversa do Prof. AC, para depois dizer: "Já sei quais são os princípios. Vou ser imponente", talvez acabasse usando sapatos sem meia, como ele, porque não se encontraria a fórmula real para a imponência.

Agora, pergunta-se ao Bispo “X”: o que é imponência?

Pode até ser que ele precise pensar para responder, ou então, se responder pode até ser que não seja uma coisa muito bem pensada. Mas depois que ele vai embora, se alguém diz: "que homem imponente", todos concordam. Aí está a realização da coisa.

Ele é representativo, enquanto o Prof. AC é imponderável. O que quero dizer é que certos homens, Deus os dota deste poder de representação que ele tira a outros. Até a grandeza de certos homens aparece, às vezes, nesta incapacidade de representação.

Por exemplo, o Bispo “Y”. Ele é uma pessoa que causa uma surpresa agradável porque a gente abre uma caixa de fósforos e encontra dentro um brilhante. A representação dele é mínima, é indigente. Mas a gente começa a mexer com ele e se percebe dentro daquela casca o que é que está. Deus deu a determinadas pessoas esse poder de representação por onde elas constituem uma espécie de personificação de idéias, personificação de doutrinas.

Considero, por exemplo, o velho Kaiser Guilherme II, um homem indispensável ao militarismo alemão. Está provado que ele não era um grande general, mas ele sabia muito bem personificar o general alemão. Ele tinha um armário com muitas fardas e ele era um ator que representava. Mas era mais do que um ator, era uma encarnação do militarismo alemão, que o representava magnificamente.

Qual o resultado?

O Kaiser era um homem que irradiava militarismo em torno de si.

[Inaudível] ... por exemplo, era um homem com uma cara profundamente vulgar. Não tinha nada do militarismo do Kaiser, embora fosse um militar muito melhor. Mas ele não era uma personificação de determinadas coisas.

Deus criou determinados homens com essa capacidade de personificação e de irradiar. Estou persuadido de que a tradição, a educação feita, não cem anos antes como dizia Napoleão, mas muitos cem anos antes da pessoa nascer, acabam fazendo das pessoas que são apuradas assim, pessoas altamente representativas, nas quais exatamente as idéias acabam tomando esta espécie de transparência.

Isto chega tão longe que a gente acaba encontrando pessoas que representam coisas que elas não sabem que representam. Proust fala, em um de seus livros, em um seu amigo que era um conde moço como ele, engajado no exército francês como ele, que tinha idéias socialistas radicais avançadas.

Conta ele que estava na caserna, comendo com [inaudível] e que o [inaudível] cortando um bife, com um ar de perfeita superioridade, pondo um pedaço na boca, diz para ele, de cima para baixo:

"Mas meu caro, então você não acredita que todos somos iguais?"

No momento em que ele sustenta uma coisa, ele representa outra diferente. Ele não representa como artista, mas no sentido de que dá uma irradiação de uma coisa diferente.

Por exemplo, no casamento em que fui hoje, vi paulistas tradicionais e de quatrocentos anos e vi também gente não tradicional e que não tinha quatrocentos anos. Eu via que os paulistas de quatrocentos anos, porque estavam num casamento, se obrigavam a umas certas atitudes.

O pessoal que não tem tradição, os senhores sabem, aquela alegria espontânea, descontrolada, pavorosa.

O que é isto?

É que essa gente que nem sabe que está representando nada, ainda [não] aprendeu a fazer a coisa. A tradição dá exatamente aquela capacidade de representação, esta capacidade de encarnar princípios, de encarnar sentimentos, sensações e idéias.

Mas como Deus fez uns homens mais representativos do que outros, dentro das próprias elites aparecem uns homens "tungstênio" que são capazes de, com luminosidade muito maior, fazer sentir os princípios e as idéias. Estes homens adquirem uma irradiação, uma influência e podem e devem ser imitados, porque exatamente eles estão com essa capacidade própria e especial, que é do tungstênio, de transformar as idéias em estilos de vida. Portanto, quem quiser saber, deve imitá-los.

Uma pessoa que se recusa imitá-los seria, mais ou menos, tão estúpida como se, por exemplo, eu dissesse: "Eu tenho raiva desta luz, porque luz, para mim, só a que brota de meus próprios olhos". Seria uma estupidez porque meus olhos não são fontes de luz. Pode acontecer que eu precise da luz dos outros para me guiar em muitas coisas. 

* Na Idade Média o exemplo era uma instituição

 Esta função de representação em parte hereditária, em parte pessoal, ajusta-se à organização da nobreza. Temos então, o exemplo institucionalizado dentro da sociedade medieval. Institucionalizado assim: encontramos no ápice da sociedade o homem cuja função mais alta é de governá-la, mas é de representá-la e servir de exemplo, que é o rei.

Quando demos a doutrina da Revolução mostrando que há duas Revoluções: a Revolução "A" e a Revolução "B". A Revolução "A" é a Revolução das idéias, dos sentimentos, dos imponderáveis. A Revolução "B" é a dos costumes ( Aqui o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira se refere aos conceitos de Revolução e Contra-Revolução que posteriormente publicaria no livro “Revolução e Contra-Revolução” em 1959 ).

Um rei tem dois cetros, o "A" e o "B". Pelo cetro "B" ele governa o país, mas pelo cetro "A" ele é o modelo e o diretor das almas do país, é a representação máxima do país. E é por aí verdadeiramente e antes de tudo que ele é rei. Ele é o protótipo do homem exemplar a ser imitado por todos, para o qual todos devem ter suas vistas voltadas e que deve ser imitado. Imitado moralmente porque ele tem a obrigação de ser excelente e de tender para a santidade, mas imitado também em toda essa sua função de tungstênio máximo.

Ao lado do rei, a família real, que é um desdobramento da pessoa do rei, a que deve, como o rei, realizar esta função. Logo abaixo da família real, ligada e misturada a ela, os graus mais altos de nobreza, depois a nobreza média, a nobreza sub-média, a pequena nobreza, até o pequeno gentil-homem, que já é a raiz da nobreza metida dentro da plebe, que transmite, que se liga à plebe, que tira sua seiva, por outro lado, haure sua seiva da plebe. 

* O homem modelo é, no fundo, um escravo dos princípios. Realizar princípios é viver de Jesus Cristo.

 Esta função da nobreza, assim compreendida, exige da parte de todos, muita abnegação e muita humildade. Muita abnegação porque é uma coisa dura um homem reconhecer que deve imitar. Muita humildade na mesma ordem de idéias, mas também em quem é imitado. Porque se uma pessoa compreende que a função dela é esta e ela quer exercer essa função, ela faz, no fundo, uma renúncia completa de tudo quanto sua vida lhe poderia oferecer de gostoso.

Fernando III el Santo flanqueado por un león y un castillo, símbolos de sus reinos, en una miniatura del Tumbo A, cartulario de los ss. XII y XIII

Fernando III el Santo, exemplo perfeito do Nobre vivendo plenamente de Nosso Senhor Jesus Cristo

É uma renúncia constante ao ”laisser faire”, ao relaxar, ao deixar correr, para sempre, sempre, sempre, sempre estar na linha de determinados princípios, cuja encarnação a gente deve... [inaudível]...

É no fundo uma escravidão aos princípios. Mas uma escravidão de todos os momentos, de todas as circunstâncias. E esta escravidão aos princípios é que faz com que a pessoa verdadeiramente esteja em condições de representar.

Temos então, no ápice, pessoas escravas de princípios. Nos degraus menores, pessoas escravas de princípios e de exemplos, que tornam mais vivos os princípios. Mas acabam sendo princípios, princípios e princípios, que o tempo inteiro, dentro de uma civilização católica, acabam modelando tudo, informando tudo, animando tudo.

Como se poderia formular isto, em linguagem teológica? Princípios, o que são?

O princípio é o próprio Nosso Senhor. Conhecer princípios, realizar princípios é viver de Jesus Cristo. E numa sociedade católica, se os mais altos conhecessem e realizassem os princípios de Nosso Senhor, servindo de exemplo para outros, renunciando, — para servir de exemplo, — a todos os seus defeitos, e os outros imitando-os no sentido do bem, essa sociedade teria realizado plenamente as palavras de São Paulo: "Vivo, mas já não sou eu que vivo, mas Cristo que vive em mim".

Então, compreendemos qual é o alto ideal de uma civilização católica e porque essa civilização tem de ser hierárquica e hierárquica por degraus. É exatamente porque a presença de princípios emanados do clero, mais ou menos da alta intelectualidade, derramando-se sobre aqueles que representam o ápice da coluna social, e depois, por uma propagação, atingindo esferas maiores, fazendo viver o bom exemplo, não apenas o bom exemplo moral, mas os bons estilos da vida, costumes bons, a virtude encarnada, não apenas a virtude em tratados. Isto quanto à nobreza. 

* A importância da organização hierárquica para que seja possível a imitação

 Pode-se afirmar que o mesmo deve-se dizer relativamente ao povo. Vimos a organização medieval do povo e vimos como ele é cheio de pequenas sociedade fechadas, corporações, bairros, universidades, etc.

Queen Elizabeth II Coronation - 1953 - The Queen riding along in the coronation coach wearing crown and carrying orb

Nestas sociedades fechadas, forma-se também uma elite, e define-se também um estilo de vida. E essa elite recebe de outras elites mais altas, que acabam tocando na nobreza. O exemplo vai transformando-as até se embeber nas camadas mais baixas da sociedade.

Com isto temos a função mais alta da autoridade realizada. Estou persuadido de que uma sociologia bem escrita deve provar que o mais importante da sociedade é ser uma sociedade de almas e não uma sociedade de corpos.

Uma coisa que urra é colocar título de conde no [“X”]. É uma tal degradação do título de conde, é uma tal impostura, que se tem a impressão de que o amor natural dos homens à verdade urra à idéia de que o ["X"] possa ser conde.

O comunicado a esse respeito é ainda mais ultrajante. Em vez de dizer: "Sua Majestade, a Rainha, nomeou ["X"] conde", o comunicado diz: "Sua Majestade, a Rainha, consentiu, deu sua aprovação a que ["X"] fosse nomeado conde".

Ela que é a fonte de toda a nobreza, não nomeia nobres. São uns vira-latas que nomeiam outros vira-latas para a nobreza. A Rainha fica pairando por cima disto.

É impossível ter-se a função régia degradada a menos. Mas há uma coisa. A Rainha Elisabeth ainda tem a direção da vida social. E na direção da vida social ela tem o cetro "A", embora tenha perdido o cetro "B". Eu afirmo que quem tem o cetro "A", tem incomparavelmente muito mais de quem tem o cetro "B". Pode trabalhar na Contra-Revolução "A", que é muito mais importante que a Contra-Revolução "B". A Rainha criou um tipo humano da moça, ao mesmo tempo, muito atual, inteiramente com os pés plantados dentro de nossos dias, mas na qual vive, autenticamente, uma tradição milenar.

Quem vê a Rainha não tem vontade nenhuma de dar risada e dizer que não é uma rainha. Ela é verdadeiramente uma rainha. Não é como o rei "X", que tem cara de datilógrafo. Qualquer moça que queira ser tradicional, hoje em dia, tem nela um exemplo a ser imitado.

Aqui está exatamente a função das elites.

Por que isto supõe uma sociedade hierárquica, no nosso sentido de hierarquia?

Queen Salote of Tonga in London at the Coronation of Elizabeth II - June 2, 1953

O exemplo, para se propagar, precisa de duas coisas: de uma certa semelhança e de uma certa dessemelhança. Entre duas pessoas inteiramente idênticas não existe exemplo possível.

Imaginem, por exemplo, a Rainha Elisabeth querendo servir de exemplo à Rainha de Tongo. Não é possível porque a diferença é grande demais. Para que haja exemplo é necessário haver uma certa dessemelhança para que a imitação seja possível, mas também uma certa semelhança, para que essa mesma imitação seja possível.

Por isso é preciso haver uma organização hierárquica, em que as diferenças de nível existam, mas não sejam grandes. Então, um duque servir de exemplo para um barão, seria violento demais. Mas ele servir de exemplo a um marquês, seria bom. O marquês é que vai ensinar ao conde como se é nobre. O visconde transmite a lição ao barão, que vai dizer ao cavaleiro como é isto.

E os escudeiros do cavaleiro aprendem também e a transmitem aos plebeus da aldeia. Por esta forma, o estilo de vida das culminâncias da organização social vem até o fim e embebe toda a sociedade.

A organização social da Idade Média, hierárquica, que corresponde a tantas razões dentro da linha "B", é absolutamente necessária também dentro da linha "A". E ela se revela dentro da linha "A" tão sábia, que ainda que dentro da linha "B" ela fosse supérflua, seria o caso de conservá-la só por causa das razões inspiradas na linha "A".

É uma regra que Deus tem ao constituir a natureza. É que todas as coisas profundamente naturais são necessárias por cinqüenta razões que a gente conhece e por mais cinqüenta que a gente não conhece.

 


(1) Sobre a Nobreza e seu papel na sociedade não poderíamos deixar de recomendar a nossos visitantes a última obra do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira: "Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana", onde ele desenvolve largamente os princípios aqui apenas vislumbrados.

 

Para os demais artigos desta série ver:

 

Idade Média_01 - Organização Social

Idade Média_02 - O papel da Nobreza e das Elites:

Idade Média_03 - O papel da Honra na sociedade medieval

Idade Média_04 - O direito consuetudinário

Idade Média_05 - O equilíbrio legislativo na Idade Média

Idade Média_06 - O papel da Igreja na Sociedade Medieval - I

Idade Média_07 - O papel da Igreja na Sociedade Medieval - II: O Papado

 

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