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Plinio Corrêa de Oliveira
Santo Odon de Cluny e o perfume da Idade Média
Santo do Dia – 17 de novembro (1966?) (Texto adaptado a partir de transcrição de gravação magnética de conferência para sócios e cooperadores da TFP, sem revisão do autor)
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Hoje é festa dos bem-aventurados [agora Santos] Roque Gonzalez e companheiros, mártires do Rio Grande do Sul, jesuítas. Amanhã, dia 18, festa da dedicação das Basílicas dos Apóstolos São Pedro e São Paulo. E ao mesmo tempo, festa de Santo Odon, confessor.
Da "Vida dos Santos" de Omer Englebert temos a seguinte síntese biográfica de Santo Odon:
“Odon era filho de fidalgos que viviam na Alsácia, os quais atribuíam seu nascimento à intercessão milagrosa de São Martinho. Foi mandado, ainda criança, para a corte de Foulques, o Bom, conde de Anjou, e mais tarde passou para a de Guilherme, duque da Aquitânia. Aos 15 anos foi acometido de fortes e contínuas dores de cabeça, que só foram curadas quando o jovem ingressou no cabido de São Martinho, em Tours. Dedicou-se durante vários anos ao estudo dos clássicos e dos Santos Padres, seguindo em Paris, em 901, os cursos de filosofia de Remígio de Auxerre. “Aplicou-se também profundamente ao estudo de poesia e da música, os quais cultivou durante toda a vida. Após ter sido [cantor] do cabido, e de ter escrito várias obras, Odon ingressou no mosteiro beneditino de Baume-les-Messieurs na Borgonha, mudando depois para Cluny, quando da fundação desse mosteiro onde foi nomeado abade. As escolas que ele criou em Cluny atraíram em breve tudo quanto havia de mais nobre no Ocidente. Era costume dizer-se que um príncipe, no palácio de seu pai, não recebia educação mais apurada que os alunos de Cluny. Graças ao santo abade, a influência da abadia espalhou-se por toda a cristandade. Os papas a ele recorriam em suas dificuldades e os príncipes chamavam-no para reformar os mosteiros em seus estados”.
A linha moral, tudo, enfim, nessa biografia, é digno de nota. É muito bonito observarmos a nomenclatura dos personagens e lugares envolvidos. Os senhores vejam aonde ele foi mandado, quer dizer o conde a quem ele foi mandado servir quando ainda menino: conde Foulques, o Bom. Isso é de tal maneira um conde medieval, em seu castelo, bom homem, ao mesmo tempo amável, gentil, mas infatigável no combate, que realmente chama a atenção. Dá a impressão de uma figura de vitral. Aliás, é preciso dizer que o qualificativo de “o bom”, naquele tempo, não tinha bem exatamente o sentido que tem hoje. “O bom”, naquele tempo, não era a pessoa caridosa, amável, etc., mas a pessoa capaz de fazer aquilo que devia fazer. Isso é o que era Fulano, o bom; quer dizer, o Fulano que leva a cabo aquilo que tem que fazer e que, portanto, cumpre com os seus deveres, tem capacidade e faz o que deve. Depois os senhores vêem que ele passa para Guilherme, duque da Aquitânia. Tudo quanto representa o ducado de Aquitânia, um grande feudo francês, um verdadeiro principado, uma miniatura de monarquia, na parte talvez mais poética da França, que é a França dos jograis, a França dos trovadores, um pouco a França das heresias e das devassidões mas afinal de contas a França com o aspecto poético da Idade Média. Os senhores podem imaginar o conde Guilherme da Aquitânia sentado num trono de carvalho trabalhado, recebendo homenagens de seus súditos à tardinha, no alto de uma escadaria do castelo, que dava para o pátio onde se adestravam os pajens. De repente soa o Ângelus, todos interrompem seus afazeres, rezam; nesse ambiente é que Santo Odon formou sua mentalidade. Como isso é diferente do ambiente, por exemplo, de uma grande avenida de uma de nossas megalópolis!
Depois, esse homem que conheceu personagens tão interessantes, foi estudar filosofia, poesia e música na universidade de Paris. Imaginem um estudante daquele tempo, vestido com aquela espécie de batina que vai até embaixo, de cores variegadas, com chapéu, com gorro com uma pena, e que anda por Paris com alaúde, ou com algum outro instrumento, pára à beira do Sena, toca um pouquinho, sai andando, a atmosfera inteiramente poética em que essa vida se passava. E depois a conjugação: que riqueza uma pessoa estudar filosofia e música ao mesmo tempo! que miserável é o músico que não conhece filosofia, e que tri-miserável é o filósofo que não conhece música. Aí, não: é uma idéia medieval, a síntese da cultura medieval, tudo é filosofia e música ao mesmo tempo, e há uma música filosofada e uma filosofia musicalizada. Os senhores compreendem como isso é superior. É tão diferente das Faculdades de Filosofia atuais, dos Conservatórios Dramáticos e Musicais de nossas urbes, muitas vezes 'caixas de fósforos' espremidas, aterrorizadas entre arranha-céus de grandes avenidas, é tão diferente e demonstra uma tal visão das coisas que se tem a impressão de que são figuras de vitrais, panoramas de iluminuras, toda a luz da Idade Média que se irradia. É um prenúncio da luz do Reino de Maria. Quem sabe se os senhores, que são mais moços do que eu, vão conhecer estudantes que ao mesmo tempo estudem filosofia e música, e alguns que saibam fabricar coisas maravilhosas em vidros, cristais para vitrais, etc., em uma outra época. Quem sabe se nessa época, até as margens de nossos poluídos rios serão poéticas. Vai exigir uma dose de poesia enorme para vencer o prosaísmo das margens do Tietê ( rio da cidade de São Paulo, altamente poluído ), por exemplo... E o mais curioso: Santo Odon cultiva essa duas coisas durante a vida inteira. Há um conceito de que ao entrar no convento o frade acaba com a música para ter filosofia. Por quê? Porque a música seria uma coisa que profaniza. É preciso distinguir: a música má é claro que profaniza. A boa música de nenhum modo.
Pode haver uma coisa mais bela do que se imaginar um abade imponente, majestoso, que em uma hora de silêncio na abadia, entra sozinho na igreja e vai fazer seus exercícios de música no coro, como grande conhecedor? Pára, toca mais um pouco... Esse abade é um santo e se sente algo da santidade dele modulando o próprio som do instrumento que ele toca. Pode-se imaginá-lo, como em uma iluminura, sozinho, tocando um instrumento, com uma vela acesa... de repente, lhe aparece um anjo, e fala com ele! Continuemos. Ele segue os cursos de filosofia. Vejam o nome imponente do personagem: Rémi [Remígio] d´Auxerre. Remígio não tem a mesma beleza. Ele tem o nome de São Rémi que fundou a França, um homem que tem nome de cidade: Rémi d´Auxerre! Santo Odon também se aplicou profundamente ao estudo da poesia e da música. Após ter sido [cantor] do cabido e de ter escrito várias obras – ele entrou com intenções tão boas para o cabido, que curou-se da dor de cabeça que o trouxera ao cabido. Não é muito freqüente que a entrada do indivíduo no canonicato lhe cure a dor de cabeça – Odon ingressou no mosteiro beneditino - vejam que lugar lindo – de Baume-les-Messieurs: Bom dos Senhores. A gente tem impressão da cidade de "Bom" – e em francês é preciso sempre conhecer a ortografia para conhecer a beleza dessas coisas, - esse "Bom" evidentemente não é "Bom" mas é Baume-les-Messieurs.
Baume dos Messieurs. A gente tem impressão de uma cidade pequena cultivada, distinta, em cuja praça pública há continuamente Messieurs [Senhores] que estão conversando de um modo agradável e delicado. É um encanto Baume-les-Messieurs, é uma pedra preciosa engastada numa jóia. Essa jóia se chama Borgonha, umas das mais fabulosas regiões da França. Então ele vai para Baume-les-Messieurs, na Borgonha. Os senhores compreendem que é qualquer coisa diferente de ir para alguma cidade industrial de nosso tempo... Depois ele foi para Cluny, quando da fundação desse mosteiro, e logo foi nomeado abade. Os senhores precisam considerar que o mosteiro de Cluny foi quem fez a Idade Média. A alma da Idade Média veio de Cluny. Uma grande abadia beneditina, que chegou a ter sob sua regência mais de mil abadias espalhadas pela Europa inteira e que deu o espírito da Idade Média. Para não dizer mais nada, São Gregório VII era monge de Cluny. Para não dizer mais nada. E São Gregório VII foi a Idade Média viva.
Então esse homem, depois de ter estudado poesia, filosofia, música, depois de ter conhecido os messieurs de Baume-les-Messieurs e de ter aprendido a conversar com eles, esse homem é um dos fundadores de Cluny. E vai ser logo abade de Cluny. Quer dizer, ele está nas nascentes do movimento ultramontano da Idade Média. E as escolas que criou em Cluny atraíram em breve o que havia de mais nobre no Ocidente. Uma das coisas que os inimigos da Igreja atacavam nela é que as instituições eclesiásticas se voltavam a formar sobretudo as pessoas de boa família. Maior cegueira eu ainda não vi. Porque se se quer fazer bem a muitos ao mesmo tempo, faz-se bem àqueles que depois podem fazer bem aos outros. É evidente. É um pouco como dizer: fulano não tem pena dos pobres. Ele, em vez de cuidar dos pobres naquele lugar, fundou uma escola de medicina. Pois faz médicos que saem e vão cuidar dos pobres. Portanto, teve máxima pena dos pobres. E quem tem verdadeiro amor ao povo e tem pena do povo forma as elites capazes de fazer bem ao povo. Isso está imensamente acima do conceito atual de apostolado leigo, nem é possível comparar. Está em outra categoria o nosso santo Odon, que em uma época de muito analfabetismo, a primeira coisa que faz é fundar escolas para a elite, que atraem toda a nobreza da Europa. E daí aquele comentário: o menino educado em casa não poderia ter a mesma finura e a mesma educação que se fosse educado em Cluny.
E aqui está exatamente o empuxe de partida que Cluny deu a toda Europa, pela influência que teve sobre a nobreza européia, como teve sobre os clérigos. E como sempre acontecia na Idade Média, os grandes santos eram convidados para serem conselheiros dos Papas e dos reis. Os senhores não vêem hoje, por exemplo, uma carta assim: “Meu santo pai, fulano de tal. Eu que estou em meio a dúvidas e perplexidades quero um conselho sobre o modo de resolver um assunto. Assinado: Qualquer governante da atualidade”. Portanto, esse homem foi um pilar da Europa, também enquanto conselheiro de Papas e de reis. Aí os senhores têm uma vida que mereceria toda ela ser escrita em vitrais, em vitrais como os da Sainte Chapelle, ocupando um lado e outro de toda uma catedral e começando com o nascimento dele, depois naturalmente os milagres... aparições, deve ter tido lutas, deve ter tido episódios, por exemplo encontros com o Imperador que o ia consultar, etc., e depois naturalmente até a santa morte dele. E haveria no vitral a imagem dele estirado, à maneira medieval, numa cama, coberta de tecidos caídos por todos os lados, e uma pombinha saindo de sua boca e que era o símbolo da alma que ia para Deus. Como isso serve para a gente matar saudades daquilo que não conheceu! A pior saudade! Pensa-se que as saudades são daquilo que se conheceu. São daquilo que a gente não conheceu, daquilo que nós sabemos que era nossa casa paterna, que nos foi roubada séculos antes de nascermos, que foi destruída séculos antes de nascermos, e que é a sacrossanta Idade Média. Servem para alimentarmos nosso desejo do Reino de Maria. Que Santo Odon acenda esse desejo em nós e nos acenda a vontade de rezar para que Nossa Senhora apresse a realização da promessa por Ela feita em Fátima: o Reino de Maria. Porque realmente nós estamos num ponto em que é preciso empenhar todas as forças da alma, e fazer todos os sacrifícios para que se cumpra essa promessa. Se os senhores querem um estimulante para se resolverem a praticar atos de virtude, ou eventuais atos de mortificação, façam isso: peçam a Nossa Senhora que aceite tal renúncia, tal sacrifício, para apressar esses acontecimentos, e que sejamos chamas ardentes em pedir que eles se concretizem logo. |