Plinio Corrêa de Oliveira

 

As psicologias de Condée-Turenne

 

"Santo do Dia", 5 de março de 1977

 

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A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.

Houve um rei da França, Luís XIII, que passou à história com o bonito nome de Luís, o Casto. Embora ele fosse casado com uma princesa, - aliás das mais nobres e das mais belas da Europa de seu tempo, Ana d´Áustria, infanta da Espanha, arquiduquesa d´Áustria e rainha da França, não se pode ter mais altos títulos, - e dela tivesse tido dois filhos, Luís XIV e o irmão dele, Gaston d´Orléans, ele era conhecido por sua enorme pureza de costumes, que fez com que ele passasse à história como Luís, o Casto. Além disso, um bom general, e um homem valente na guerra. Não só capaz na direção das tropas, mas desses homens que se expõem, que lutam e que sabem ser os primeiros na hora do perigo, dando com isso exemplo aos seus soldados.

Santa Joana D'Arc - capela do Liceu Jeanne d'Arc - Clermont-Ferrand - França

É muito bela a conjunção dessas duas virtudes: a castidade e o heroísmo. A maior beleza dessa conjunção de virtude nós a temos em Santa Joana d´Arc, a virgem e guerreira heróica, nascida na Lorena. A castidade é uma virtude cheia de delicadeza, cheia de fragilidade. A coragem é uma virtude cheia de fortaleza, cheia de intrepidez e a junção desses opostos forma uma verdadeira maravilha. São como duas partes de uma ogiva que se unem para formar um todo harmônico muito bonito.

Esse rei estava no dia 13 de maio de 1643 expirando. Estava tuberculoso. Era ainda relativamente jovem e quando estava para morrer viu perto da casa dele, em pé, um parente muito próximo, o príncipe de Condé. Os Condé constituíram um ramo colateral da Casa Real francesa. Um ramo que se caracterizou, até sua extinção no século XIX, pelo esplendor da vida e pela coragem. Para os senhores terem idéia do esplendor da vida, os reis da França, que eram do ramo primogênito da casa Real Francesa, tinham, naturalmente, muitos e magníficos castelos ; cada um melhor do que o outro. Basta os senhores pensaram em Versalhes para compreenderem a magnificência em que vivia o ramo primogênito da Casa Real francesa.

Naturalmente o ramo dos Condé, que era um ramo colateral e até bem afastado, Príncipes, mas bem afastados do ramo principal da Casa Real, os Condé tinham como castelo de grande importância apenas um, que era o castelo de Chantilly. E no tempo de Luís XIV, o príncipe de Condé estava construindo Chantilly. E ia ficando tão bonito, que Luís XIV mandou dizer a ele que recomendava que não embelezasse ainda mais, porque poderia fazer sombra ao ramo principal da Casa Real. Com um castelo só, eles sabiam elevar-se tanto e dignificar-se tanto que o ramo primogênito da Casa Real sentiu-se como que em xeque, para não dizer xeque-mate se a beleza de Chantilly continuasse a se aprimorar.

Castelo de Chantilly à noite

Eu visitei Chantilly pessoalmente. Era um velho sonho meu conhecer Chantilly. Quando conheci Chantilly, a primeira coisa que me veio ao espírito foi esse temor de Luís XIV. Eu já tinha visitado Versalhes; conhecia o Louvre, conhecia Fontainebleau, os principais castelos reais da França. Mas sem dúvida nenhuma: se ele aprimorasse ainda mais aquilo, era xeque-mate para a Casa Real. Compreendemos então o valor desse ramo colateral que com menos recursos sabia se valorizar até se elevar a esse ponto. Mas sem uma rivalidade baixa com o ramo primogênito. Pelo contrário, servindo sempre muito bem ao ramo primogênito, a tal ponto que quando em fins do século XVIII arrebentou a Revolução Francesa, o príncipe de Condé seu filho, o Duque de Bourbon, e seu neto, o Duque d´Enghien lutaram como leões a favor do ramo primogênito.

E extinguiu-se essa casa porque o Duque d´Enghien, o mais moço da linha, foi morto por Napoleão num crime que foi um verdadeiro assassinato. Foi a propósito desse crime que Talleyrand teve aquela famosa frase cínica. Quando ele ouviu dizer que Napoleão havia mandado assassinar o Duque d´Enghien, alguém disse a ele: "senhor Ministro, isso é um crime!" E Talleyrand respondeu com aquela calma cínica: "É pior do que um crime; é um erro político". Os senhores vêem a sem-vergonhice, mas a arte primorosa do dizer.

Luís XIII ia expirando e notou o príncipe de Condé (do tempo dele, porque esse título se transmitiu de pai para filho) junto à cama, assistindo a morte do rei. Ele se voltou então para o primo e disse: “Monsieur, eu sei que o inimigo penetrou em nosso território com um grande e poderoso exército; mas vosso filho rechaçará o ataque e acalmará a nossa ansiedade”.

Realmente, a França acabava de ser invadida e era um problema saber como conter o adversário que tinha transposto as fronteiras da Espanha, ou melhor, as fronteiras da França. Ninguém prestou atenção ao delírio de um homem moribundo. No dia seguinte Luís XIII morreu. Portanto, no dia 14 de maio. Mas sua profecia tornou-se realidade. Cinco dias depois, o duque d´Enghien, filho primogênito do Príncipe de Condé (todos os primogênitos dos príncipes de Condé tomavam o título de Duque d´Enghien) de vinte e dois anos, derrotava as forças espanholas sob o comando de Francisco de Melo.

Notem bem: um general famoso com vinte e dois anos. Como se explica que um homem seja um tão grande e famoso general com vinte e dois anos? É o problema que vamos analisar daqui a pouco. A batalha teve lugar em Rocroi. Rocroi quer dizer “rochedo do rei”, em território francês. Uma pequena vila das Ardenas, a duas milhas de distância do que é hoje o litoral belga. A Bélgica pertencia à Espanha naquele tempo. As tropas espanholas entraram pela Bélgica para invadir a França. O exército do qual dependia a sorte da França era parte da legião do grande Ministro de Luís XIII, cardeal de Richelieu, que morrera alguns dias antes. Uma das mais valorosas partes da legião era a infantaria de 160 mil homens e a cavalaria, de 30 mil homens.

Nós devemos então nos perguntar como é que esse príncipe, o Duque d´Enghien, com vinte e dois anos, era capaz de ser um grande general. A França teve nesse tempo, século XVII, dois grandes generais: um general era o Príncipe de Condé e o outro era o Príncipe de Turenne. O Príncipe de Turenne não era da Casa Real francesa. Era uma família de príncipes de categoria um pouco menor. Mas uma grande família. Os memorialistas do tempo e os analistas da história francesa descrevem o modo dos dois combaterem caracteristicamente.

 

Henri de la Tour d'Auvergne, visconde de Turenne

O Turenne era um homem que meditava e planejava os cercos dele, até o último ponto. Ou se tratava dele estar cercado ou dele cercar, ele era um espírito frio, lúcido, calmo, meticuloso e que preparava com muita antecedência todos os pormenores. De maneira tal que não pudesse acontecer nada na batalha que ele não tivesse previsto. E quando acontecia, era como num jogo de xadrez impecável. Ele já tinha a resposta, empurrava para a frente a tropa necessária etc.; na defesa, ele sabia como afugentar o adversário. No ataque ele sabia como sitiar e fazer estalar a cidade sitiada. Ele era um verdadeiro monumento de reflexão calma, madura, forte, mas inteiramente militar, técnica e científica.

Ele morreu já velho. Era protestante e converteu-se à religião católica, e dele disse Bossuet essa frase famosa: "Na juventude ele tinha a maturidade de espírito de um adulto; maduro de espírito, ele conservava a força e o verdor da juventude". É a teoria da soma das idades. Até o fim da vida ele foi assim. A conversão dele foi dura, porque sua família era freneticamente protestante. Eles eram dos chefes do grupo protestante na França. A mulher e a mãe fizeram tudo para ele não se converter. Mas a partir do momento em que ele se convenceu que a religião católica era verdadeira, não houve quem o segurasse.

Ele se converteu mesmo e disse para a mulher: "Querendo, vá embora. Eu agora sou católico". A mulher cedeu mas morreu sem se ter convertido. Os senhores vêem aqui o feitio geral do espírito do homem. Ele para se converter analisou a religião, fez, por assim dizer, o cerco da religião como faria o cerco de uma fortaleza; percebendo que era verdadeira, entrou dentro dela e se submeteu fielmente.

Louis, Príncipe de Condé, por Robert Nanteuil

Condé tinha feitio de uma alma completamente diferente. Era muito vivo e podia ser comparado a uma águia. Muito esguio, esbelto, com um grande nariz curvo, adunco, característico da Casa de Condé, com ar de águia, ele parecia despreocupado. Até no momento da batalha ele parecia um homem que pensava em outra coisa. Quando chegava no hora da batalha, ele se apresentava, tomava conhecimento da situação e tinha um olhar de relance da situação. E jogava-se como uma águia no ponto principal. Com um ímpeto tal que ele ali desbaratava. Em pouco tempo ele ganhava suas vitórias.

Cabe aos senhores dizerem qual o feitio que mais apreciam: o condeano ou o tureneano. Uma pergunta menos discreta, mas que se poderia fazer, é a seguinte: todos os grandes homens são modelo de uma porção de homens menores. De maneira que não há "megalice" [orgulho, vaidade] em uma pessoa perguntar para si mesma se ela se sente mais tureneana ou mais condeana. Não quer dizer que a gente seja um Turenne, não querer dizer que a gente seja um Condé. Mas a gente pode sentir-se à maneira de um Turenne ou à maneira de um Condé.

Há um risco, que é o seguinte: todo homem que gosta de reflexão, se sente à maneira tureneana. Muitos homens podem ser homens com grandes qualidades à maneira condeana. Mas os irrefletidos se sentem muitas vezes condeanos apenas para tapear e disfarçar sua irreflexão. Condé deveria ser interpretado como um homem irrefletido? Usa-se ainda hoje o termo palpite; a pessoa teve um palpite. O palpite é produto da irreflexão ou da reflexão?

(Sr. -: O palpite pode ser produto da reflexão e da irreflexão. A pessoa pode refletir muito e emitir um palpite sobre um assunto. E pode dar um palpite num impulso de momento.)

E o palpite pode ser irreflexão por exemplo no caso de uma pessoa que não pensou nada e diz: eu tenho um palpite. Estou vendo que a palavra palpite do meu tempo para o dos senhores mudou. No meu tempo, a reflexão madura nunca dava num palpite. O palpite se chamava o produto de uma reflexão rápida, que podia ser produto de uma reflexão ou de uma opinião rápida jogada na bamba, na hora do aperto. Então, Turenne não teria palpites. Ele teria certezas. Um Condé poderia ter um palpite refletido, nesse caso com sérias probabilidades de ser verdadeiro, ou uma caricatura do Condé poderia ter um palpite irrefletido. Ele chega, não sabe por onde sair, dá uma coisa qualquer. Se der certo ele ganhou a loteria.

Condé então era um homem que tinha reflexões rapidíssimas. Ele era muito refletido. Mas pela forma de talento dele, a reflexão fazia-se na hora e no momento. E não era uma reflexão lenta. Cada uma das coisas tem o seu mérito. É brilhante acertar de modo fulgurante. Mas é brilhante também a gente ver o espírito montar peça por peça o aspecto geral de verdade e demonstrar. São duas modalidades, ambas criadas por Deus, para refletir a suprema e inatingível perfeição dEle. Que é ao mesmo tempo o modelo de toda reflexão e o modelo de toda subtaneidade na facilidade divina e completa com que Ele cogita. Ai é a perfeição absoluta.

(Sr. -: A intuição não estaria mais na linha condeana?)

Sim, a intuição é o que se chama uma reflexão rapidíssima, fulgurante. O feitio de inteligência do brasileiro é dado para Condé ou para Turenne? É dado muitíssimo mais para Condé do que para Turenne.

Então, temos ai um pouquinho como era o príncipe de Condé. E como se pode explicar que aos vinte e dois anos ele fosse um grande general? Ele pertencia a uma família aonde todos tinham sido grandes batalhadores, grandes guerreiros e alguns generais. Essa atmosfera militar impregnava o ambiente em que ele viveu, no qual se conversava sobre batalhas, se conversava sobre guerras, se conversava sobre planos estratégico como em famílias de hoje se conversará sobre automóvel, sobre a televisão, sobre rádio e outros altos temas de valor metafísico e sobrenatural... o resultado é que ele já era todo modelado por isso. As famílias, naquele tempo, eram escolas de fazer o que tinham feito os antepassados.

Tinha-se dinastias, famílias inteiras de profissões também plebéias. Família de sapateiro, de relojoeiro, de pintor. A família subia, porque cada geração que vinha acrescentava alguma coisa ao savoir faire ao know how da geração anterior. A pessoa era modelada pelo ambiente. Por essa forma de reflexão fulgurante, aos vinte e dois anos, ele já era um grande general. A tal ponto um grande general que as batalhas dele se estudam nas escolas militares do mundo inteiro, como se estuda, por exemplo, as de Turenne e as de Napoleão, como se estudam as de Hindenburg, de Ludendorf, do príncipe Eugênio etc. ficaram no curso da história. De tal maneira eram batalhas pensadas, mas fulgurantemente pensadas e fulgurantemente executadas.

Tenho impressão que todos os senhores, depois dessa descrição, teriam curiosidade de conhecer o príncipe de Condé, de vê-lo. Os senhores vão ver descerrando esse quadro que é uma grande fotografia retocada pelo nosso Dias Tavares. Condé no fim de uma de suas batalhas. Ele teve cinco batalhas mais importante. É no fim da mais célebre delas, a batalha de Rocroi.

Batalha de Rocroi por François-Joseph Heim

Os senhores estão percebendo uma cena de batalha. É um campo, ao fundo corre um rio, ali um campanário e uma aldeiazinha; o rio plácido e tranqüilo, onde não se combateu e que contrasta com o número de pessoas que se acotovelam nessa cena. Há dois grupos de pessoas bem diversas: os franceses e os espanhóis. Os espanhóis são os que estão aqui a pé - o quadro foi pintado por um francês, e naturalmente, não coloca os adversários numa postura justa.

Notamos na primeira fila alguns mortos, um tambor furado. Do outro lado, os franceses. O príncipe de Condé, no centro, mais para trás a figura de um guerreiro, homem perto dos sessenta anos, mas de uma mentalidade extraordinária, guerreando, combatendo, olhando para o Condé com muita atenção, o séquito francês que vem vindo atrás. No meio de uma poeira cheia de luz uma mão que levanta uma espada. Na primeira fileira, dois cavaleiros que se dirigem a Condé e aos quais Condé faz um gesto com a mão; a mim me parecem dois cavaleiros espanhóis ali, como é certamente um fidalgo espanhol essa personagem de vermelho, na primeira fila, e se eu interpreto bem o gesto dele, segura na mão uma dessas forquilhas sobre as quais colocavam a arma de fogo para atirar.

O episódio é o bonito episódio da batalha de Rocroi. A batalha tinha sido ganha e os espanhóis tinham estabelecido um entendimento com os franceses, uma espécie de armistício. Quando se produziu nas tropas espanholas uma certa agitação que emissários franceses julgavam como sendo espanhóis que queriam romper o acordo e começar o ataque. Então os franceses se dispuseram a atacar. Quando Condé recebeu a informação de que se tratava de um engano que era um movimento interno das tropas espanholas.

Ele então levado pelo respeito que devia aos vencidos, e que se deve sempre a vencidos cavaleiros e de boa fé, e que devia ao afeto espanhol que na época era o primeiro da Europa, ele devia imediatamente fazer cessar o equivoco. De onde eu interpretar aqueles dois cavaleiros como dois emissários espanhóis que vão avisar ao príncipe que se trata de um equivoco. Razão pela qual o príncipe faz um gesto tranqüilizador para os dois personagens; assim como lhes dá serenidade. O gesto de mão é muito significativo nesse sentido. Com isso notamos também que enquanto as tropas francesas vêm andando, ele está freando o cavalo dele. Toda a atitude dele é de quem para o cavalo e contém o ataque da tropa francesa e pacifica uma situação que poderia dar numa chacina. Esse é o bonito gesto de elegância militar que o pintor quis guardar.

É preciso notar que por causa das tradições de cavalaria enigmaticamente representados nesse quadro - era muito bonito notar-se que os antigos tinham a preocupação de tratar sempre o vencido com muita honra. E era uma vergonha para vencedor esmagar o vencido de um modo inumano, humilhá-lo. Batiam-se rudemente enquanto durava o combate. Cessado o combate era a hora da cortesia, a hora da reverência, a hora da distinção de parte a parte. Aqui vemos então cumprir esse dever de cavaleiro. Ele, vitorioso contém os franceses e com isso salva os vencidos. É a velha cavalaria que ainda se mostra ai.

A manifestação enigmática da velha cavalaria, para a qual eu não encontrei uma explicação, é o seguinte: notarão ali uma figura completamente anacrônica, completamente fora de época, uma figura medieval, toda revestida de couraça medieval e de plumas, e que está meio fora do ambiente. Ninguém mais usava nesse tempo esse armamento. Não sei se notam que está posto numa luz onde se tem um pouco a impressão de que não se trata de um ser vivo, mas de um fantasma. O que significará esse fantasma? Significará a velha cavalaria, símbolo que paira sobre essa cena cavalheiresca? Também não sei.

Descrevi o quadro com todos os seus pormenores para os meus queridos gerações nova tomarem o gosto pelos pormenores. O sabor de todas as coisas está no pormenor. Talleyrand dizia que a verdade está nos matizes; não está só nas cores fortes; está nas cores médias, tem algo de uma coisa e algo de outra. Todas as verdades são cheias de matizes. Saber matizar é saber pensar. E saber pensar é saber viver. Notem quantos matizes aparecem ai.

Vemos aflição nesses cavaleiros; vemos a inteira calma nesse espanhol de pé, com um grande chapéu, camisa branca, grande gola branca. Ele percebeu a distinção e a nobreza de atitude do Condé, fazendo sinal para que seus compatriotas não ataquem, porque se trata de um mero equívoco. Outro atrás vencido aclama o gesto de fidelidade de Condé. Notamos aí a glória de Condé: a confiança do vencido e a glória do vencedor, ou melhor, a admiração do vencedor. Essa é a glória. Não está escrito, mas está expresso. É um quadro com um pensamento.

Atrás dele vemos aquele velho cavaleiro francês. Vejam o jeito dele; não há dúvida nenhuma de que é um nobre; é também um homem muito varonil; é um homem corpulento e se percebe que passou a vida inteira batalhando. Ele tem um chapéu com uma pluma branca, que parece um pouco de névoa, ou de neblina que continuava a flutuar nas dobras de seu chapéu, como que resto de glória da batalha que ele acaba de tomar parte. Ele usa uma capa azul claro, com uma espécie de bordado dourado, e que o azul claro é quase um azul água de tão claro. Os senhores diriam até que um azul tão claro não fica bem para o traje militar de um homem. Para esse homem, não fica perfeitamente bem? Tão varonil ele é que pode usar e até o que ele poderia ter de um pouco rude demais é atenuado agradavelmente pelo azul claro da capa que ele usa. Ai está uma das coisas do senso de matriz do francês.

Ele faz um herói e veste o herói de azul bem claro. Um bobo diria: efeminado. Mas dizer que esse homem é efeminado é de dar uma gargalhada. É um patriarca, um senhor feudal de grande porte que está na batalha, mas assim como no momento não está matando daqui a dois ou três minutos pode estar matando ou morrendo, porque está inteiramente disposto a isso. É um leão. É a formula francesa de heroísmo e de coragem. Há várias formas. Não é só esta que é bonita. Há a fórmula alemã, lindíssima; há a fórmula espanhola, há tantas outras. A fórmula francesa é a do leão com rendas. Enfeitado de cores claras. Alguém poderá estranhar. Se estranha é porque não entendeu. E se não entendeu, é uma pena para ele. Porque é uma pena que alguém possa não entender isso.

Vejam os contrastes finos apontados pelas coisas. Para dar a idéia de que até que ponto esse guerreiro é um homem varonil, concorre a espada que ele não está brandindo. Percebe-se que quando ele a brande, é assim. Compõe o aspecto guerreiro do homem.

Notem agora para onde está olhando. Ele está olhando para a batalha? Não. Ele está olhando para o Condé. Imagem da disciplina militar. Ele olha para o chefe. O que mandar, ele fará. Se o chefe disser: mate cinco mil, ou morra. Ele vai para a frente, e morre, na tentativa de matar os cinco mil. Se o chefe disser: embainha tua espada, ele embainha. É a fidelidade feudal transportada para o terreno militar. Não apenas na vida civil. Não apenas para a vida civil, mas para o terreno militar e na sua perfeição. Ele olha para o Condé, porque o próprio do grande senhor é olhar para o príncipe, como o príncipe olha para o rei, como o rei olha para Deus. É a hierarquia das coisas.

Chegou o momento de analisarmos o Condé. Notem antes de tudo, as feições. O nariz é o nariz de abutre; é um enorme nariz que se projeta corajosamente para frente. O nariz tem a forma e o gráfico da coragem. Vai para a frente. Ele é ainda muito moço. E as características dele são as de certo tipo de francês, do norte, mais chegado ao alemã. Ele é claro, corado de cabelos louros, longos e cacheados. Características da raça. Para nós, brasileiros poderia parecer um pouco feminino de mais esse tipo. Mas é um tipo de herói, que reúne, que exprime a coragem e a força francesa no que ela propriamente é.

A força francesa, o herói alemão - os senhores sabem quanto eu gosto de tudo na Alemanha; menos o nazismo e, bem entendido, do protestantismo. Ambas as coisas eu abomino perfeitamente. Há uma frase da Escritura, que diz: “Com ódio perfeito, eu te odiei”. Quando eu penso no nazismo ou no protestantismo, eu tenho vontade de dizer isso: eu te odiei com um ódio perfeito. Um ódio ao qual não falta nada. É integral. Eu estou ali e tudo quanto o ódio pode comportar está onde eu estou. Mas não são esses todos os alemães.

O alemão católico é bem diferente. O alemão faz sentir a sua força, pela sua corpulência atlética, pelo seu desassombro e pelo impulso físico e moral que ele dá as coisas. O francês é muito mais esguio, é muito mais fino. Mas a sua capacidade de força não é dado tanto pela capacidade dos músculos, mas pela qualidade dos músculos. São músculos que não precisam ser bolas para fletirem e quebrar. Os senhores sabem qual é a origem latina da palavra músculo? A etimologia vem de mus, que é rato. Músculo e um diminutivo latino de rato, e quer dizer ratinho. Quando o músculo se encaracola, forma à maneira de um ratinho debaixo da pele.

A etimologia com certeza parece aos senhores uma disciplina tão morta. Mas tudo quanto é estudado no espírito católico, é interessante, desde que a gente se coloque no angulo adequado, a gente saiba dar interpretação às coisas. Se os senhores fossem ter uma aula de etimologia e um professor dissesse isso aos senhores a respeito da palavra músculo, os senhores diriam: que bobagem! Aqui estão a coisa à luz de um jogo de alma de espírito, a coisa toma a vida e os senhores se interessam. Eu ouso pensar que assim o estudo se tornaria para os senhores menos enfadonho, menos lento e menos sonolento.

O fato concreto é que o francês não tem ratinhos por debaixo da pele, como teriam, por exemplo, certos atletas da escultura renascentista italiana, o Moisés de Michelangelo, por exemplo, é uma coleção de ratos. Não gosto nem um pouco daquilo. Gosto da Itália, Veneza, por exemplo; Florença, Roma, Nápoles. O francês precisa disso. São nervos de aço que não formam bola, porque tudo nele é harmonia, perfeição e constituição adequada das coisas.

Os senhores vêem um homem frágil: mas é um abutre. Quando ele ataca, ninguém resiste. E percebemos uma coisa muito bonita: na fragilidade dele, a intensidade da alma. Chamo a atenção para olhar. É um olhar dominador. Muito mais do que o nariz, é o olhar. Percebe-se o olhar, não tanto pelo olhar quanto pela posição da cabeça. O que comanda o olhar é a posição da cabeça.

Uma pessoa que olha o outro assim, não pode ter olhar que deve ter; mas um que sabe olhar o outro, esse depende da impostação que a cabeça tomou. E por causa disso, nos antigos tempos em que havia cultura e civilização, os rapazes e as moças eram habituados, pelas famílias, as aulas de maintien, ou seja, aulas de porte, de atitude; entre outras coisas, carregar pilhas de livros na cabeça para habituar a ficar com a cabeça alta. Eu só direi uma coisa aos senhores: assim formou-se Maria Antonieta.

Vejam a posição de pescoço dele; vejam a posição de pescoço e de cabeça dele. O pescoço está completamente ereto. Mas não ereto de modo provocativo. É natural nele ser superior. Ele quase não percebe que é superior. Mas a cabeça está posta numa tal atitude, que ele naturalmente olha de cima. E fica de cima em relação a qualquer pessoa que ele olhe.

De onde o gesto protetor é de uma bondade que deflui do alto; deflui da força e da segurança da própria força. Ele está inteiramente seguro. Olhem a mão dele com um dedo afastado do outro, com naturalidade. Como quem diz: tranqüilizem-se! Eu vou manter o pacto. Não há nada. Mas com a bondade de um vencedor. Ele é superior como um vencedor; bom como um colega. Aqui está o cavaleiro perfeito.

Algo sobre o seu traje. É o gosto dos franceses de adornar a coragem com cores claras, ligeiras. Ele usa um paletó de um dourado muito claro e delicado, quase creme, que deixa transparecer perfeitamente o corpo dele bem delicado, com os ombros muito mais largos do que a bacia. Como o corpo deve ser. Ele tem uma faixa azul, que é a Ordem do Espírito Santo, e uma grande gola de renda. O chapéu é uma espécie de chapéu de três bicos.

E notem o magnífico das plumas que ele traz. As plumas brancas, muito mais magnificas do que as daquele personagem. Nota-se mais o esplendor delas. São plumas ligeiras branquíssimas e que formam atrás uma espécie de rastro, como dizendo: ele passa, mas a glória deixa um sulco atrás dele. Ele meneia a cabeça e a glória esvoaça em torno dele. É quase o que é uma auréola para um santo uma pluma branca dessas para um general. Porque o branco era a cor da França. A bandeira da França era branca, então usam a pluma branca.

O cavalo de Condé é uma perfeição, porque [este cavalo] é no reino dos cavalos o que o Condé é no reino dos homens. É um cavalo de guerra francês. Quer dizer, raça apurada pelos franceses. Não é desses cavalões. Não sei se conhecem um tipo de cavalo chamado “Percheron”, para arrastar carga. Enormes patas, uma coisa fenomenal não deixa de ter sua graça. Mas não é isso.

Esse é um cavalo ligeiro, feito para pular em cima dos adversários, muito mais do que para achatá-los; que mais vence voando do que vence esmagando. Mas cuja pata é certeira e cujo músculo são como as de Condé não tem músculo ali, não tem ratinhos. O “percheron” terá ratinhos. A musculatura desses é enxuta, simples, vigorosa. Vejam a vivacidade dele, como a vivacidade do Condé. E ai os senhores compreendem o estilo condeano. Esse homem olha, chega no campo de batalha, olha e toca. Toda a intuição está nele. Não é nem um pouco o Turenne. Mas é o grande Condé. Ai ele está apresentado à admiração dos senhores.

(Sr. -: [parece pedir a descrição de um modelo que se expressasse a fisionomia moral do Grupo [*])

O Grupo não modela, evidentemente, ninguém fisicamente. Cada um traz o físico que recebeu em casa. Mas o Grupo é tal que marca o físico com uma nota espiritual por onde a gente vê de longe, até desbotado, olha-se e diz: este é da TFP. E é uma transparência do moral no físico, que marca alguma coisa disso.

O que se deve achar de posição do Grupo diante do binômio Turenne - Condé? Eu acho que numa reunião tão grande de pessoas deve haver pessoas preponderantemente Turenne, pessoas preponderantemente Condé, e deve haver pessoas que conforme a hora ou são muito Turenne ou são muito Condé. Deve haver de tudo. É o próprio de uma grei tão grande como é a nossa, graças a Nossa Senhora.

(Sr. -: Qual é o unum deste quadro? No que este quatro tem espírito medieval e no que não tem? Não é a característica, mas o espírito.)

Se eu tivesse que dar um nome a esse quadro, e diria: garbo = força + leveza. Força e leveza dá o condeano. O quadro tem espírito medieval no sentido de que afirma muito a superioridade aristocrática sobre as outras formas; ou melhor, ele afirma muito o esplendor da condição militar. Dentro da condição militar ele afirma muito o caráter aristocrático e nobre da condição militar. De maneira que até os plebeus que estão aqui no quadro tem qualquer coisa de nobilitado pela condição militar. Essa glorificação da condição militar é uma coisa medieval.

Não tem espírito no sentido em que os principais personagens do quadro fazem a guerra de tal maneira que se fossem daí para uma dança, eles estariam perfeitos para a festa. Ora, para a morte a gente não se prepara assim. Há juízo, há a grandeza do destino eterno do homem, há a majestade infinita de Deus, que... pegar os outros, há a majestade da morte que roça por cada um ali, e que suporia, mais gravidade; de onde maior audácia também; de onde, maior beleza. Por isso, aquele personagem meio mítico que está ali colocado é de muito superior ao Condé. É mais religioso no sentido próprio e no sentido lato da palavra.

(Sr. -: Qual a relação do Condé com o beduíno? Como o menino de ouro [**] veria o Condé, depois de ter visto o beduíno?)

O beduíno e o Condé são coisas, ao mesmo tempo, tão parecidas e tão diversas, que a comparação é muito árdua. O beduíno não pode ser visto como o Condé dos desertos. Porque o beduíno nem é um príncipe, nem é um general; ele é um homem isolado que luta com a plenitude natural e humana de seu valor, contra forças enormes, o mais das vezes forças naturais e não outros guerreiros, que luta contra tempestades, que luta contra solidões, que luta contra os calores e os frios - nas alturas do deserto faz um frio intenso - que luta contra tudo isso mas que não tem a nobreza de lutar mais ainda contra os outros homens, portanto, contra rivais da mesma classe que ele. E não tem homens para mandar.

Ora, a dignidade do homem se afirma ainda mais quando ele manda em homens. De maneira que o beduíno é mais um soldado raso na excelência de sua situação, do que um general é um príncipe. E isso resplandece muito mais no Condé. Agora não há dúvida de que o beduíno tem a ligeireza, a desenvoltura que tem o Condé.

Isso condicionaria a atitude de menino de ouro, desde que ele tivesse discernimento.

(Aparte inaudível)

Não, assim eu não disse. Devo ter dito uma coisa diferente: Se eu tomasse um menino de ouro e um Condé que não tivesse o espírito admirativo de um menino de ouro, então o menino de ouro valeria mais. Porque o espírito admirativo vale mais que o espírito admirável. É uma coisa que parece um jogo de palavras mas eu sustento isso. Aquele que admira, vale mais do que aquele que merece admiração, mas não admira. Tal é o valor de admiração.

(Sr. -: O senhor falou na leveza do traje do cavaleiro francês, faltando ai a gravidade da morte. O senhor poderia indicar então como seria o cavaleiro perfeito, para suprir essa falta?)

Eu precisaria ter um talento, para questão de traje, que eu estou longe de ter. O senhor nota que eu sou até relaxado em questão de trajes. Sobretudo estes trajes, eu uso porque sou obrigado; não tenho uma coisa um pouco menos má para usar. Eu não me sinto interpretado. Um homem só usa um traje com gosto quando ele se sente interpretado pelo traje. E eu tenho impressão de estar usando o traje de um outro. Porque eu não sou nada disso que está aqui. Está um outro em cima de mim, como se poderia por num manequim.

(Sr. -: Quem criou a nossa capa, levando tão longe a causa da Contra- Revolução não pode ser relaxado em matéria de trajes.)

Os meus, sim. Nossa Senhora me deu a graça de compor um traje para os outros. Vejam nossa capa: ele é leve como uma coisa francesa, mas a grandeza de Deus a grandeza da morte estão presentes nela. Eu não quero dizer que ela tenha o esplendor principesco do traje de um Condé, mas até chego a dizer que o esplendor principesco não faz falta a ela.

(Sr. -: Esse cavaleiro enigmático, que lembra a Idade Média, não é ainda a perfeição?)

Não, não é a perfeição. A perfeição o senhor encontra esboçada no cavaleiro medieval. Não aquele lá.

(Sr. -: Mas o cavaleiro medieval é a perfeição já?)

O cavaleiro medieval, a meu ver, exprime o grau de perfeição a que foi dado a humanidade chegar; ou melhor, a Cristandade, não a humanidade. No Reino de Maria chegará incomparavelmente mais alto; porque São Luís Grignion de Monfort diz o que os santos do Reino de Maria vão ser para os anteriores como carvalhos são em relação as graminhas. Então, as belezas da Civilização Cristã serão como graminhas em comparação com a Civilização Cristã no Reino de Maria.

(Sr. -: Mas não há no Condé alguma superioridade ao medieval, em algum aspecto?)

Em algum aspecto, há. Eu comparo o Ancien Regime, em relação a Idade Média, como o corpo de um homem que era menino sadio, depois adoeceu e foi ficando moço. Ele é maior, mas doente. O Ancien Regime é mais perfeito, mas tem qualquer coisa de adoentado dentro dele. Não é aquela saúde da Idade Média.


NOTAS

[*] Grupo: O "grupo" que se reunia em torno ao "Legionário" e, posteriormente, ao "Catolicismo", deu origem à TFP. Daí manter-se a denominação de "Grupo" para referir-se a si mesmos.

[**] Sobre o conceito expresso na expressão "menino de ouro" ver aqui.