Plinio Corrêa de Oliveira

 

Comentários de Churchill sobre o imperador Guilherme II da Alemanha

Os homens-símbolo

(conscientes ou não)

 

 

 

 

 

 

 

 

Reunião de 6 de dezembro de 1974

  Bookmark and Share

 

A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério tradicional da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.

 

 

Resolvi tratar de uma questão, que teria pelo menos a vantagem de ser mais leve, é de estudar com os senhores um trecho do Churchill a respeito de um de seus contemporâneos, que certamente interesse aos senhores e que é o Imperador Guilherme II da Alemanha.

Preciso dar algumas coordenadas a respeito desse imperador para lembrar aos senhores, porque a figura dele é muito conhecida e não é necessário que eu diga qualquer coisa. Mas lembrar algumas coordenadas a respeito dele, para os senhores compreenderem, primeiro, quem era o homem. E em segundo lugar, quais eram as dificuldades que Churchill tinha ao tratar com ele. E assim nós podemos melhor compreender o valor de que ia tratar.

Guilherme II, como os senhores sabem bem, era imperador alemão. O título oficial dele era esse: imperador alemão e rei da Prússia. Era o terceiro imperador do Reich, constituído na Galeria dos Espelhos por Bismarck, depois da vitória que as tropas prussianas e as tropas coligadas de toda a Alemanha obtiveram contra as tropas francesas, capitaneadas por Napoleão III, em Sedan.

O Reich alemão era assim constituído sob a égide da Prússia. E algo do espírito prussiano, em profundidade maior ou menor, projetou-se desta forma sobre todo o Reich, que então deu a fisionomia ao novo Estado alemão. Enquanto outrora o polo do estado alemão era Viena, era a Áustria que projetava a sua luz sobre a Alemanha e comunicava um colorido próprio a todo mundo germânico. Com a exclusão da Áustria, depois da batalha de Sadowa, passou a ser Berlim o polo de irradiação.

Esse polo de irradiação em Berlim pedia um imperador de possibilidades muito simbólicas e que irradiasse exatamente o prussianismo, o germanismo prussiano sobre toda a Alemanha. Tal germanismo prussiano tinha dois aspectos principais. Não posso ir mais longe numa reunião que deve ser muito sucinta, para dar a palavra desde logo ao grande Churchill. Os dois elementos principais eram, com uma raiz protestante, luterana: de um lado o militarismo; de outro lado o espírito organizativo e industrial moderno. Esses eram os dois elementos que caracterizavam a Alemanha.

As grandes indústrias, não só as indústrias militares ligadas ao Exército, mas as grandes indústrias de tintas e de brinquedos, de mil outras coisas, que constituíram um dos maiores parques industriais do mundo. Ainda hoje a Alemanha o é; os técnicos e as universidades, os sistemas de transportes e tudo quanto esta situação pressupõe. E de outro lado o exército alemão, que como os senhores sabem, era o primeiro exército pelo brilho, pelo esplendor, pela capacidade de seus chefes, pelas experiências de seus armamentos, o primeiro exército do mundo.

Era preciso que este espírito industrial e militar, se os senhores quiserem, militar-industrial, esse espírito marcasse a Alemanha daquele tempo, para que a obra de Bismarck e de seus continuadores permanecesse de pé.

Não havia só isso. Como sucessor de uma dinastia, Guilherme II tinha que marcar isso com um espírito imperial, que era uma herança da Idade Média. E qualquer coisa de aristocrático, de monárquico lembrando vagamente e mutiladamente o Sacro Império, de sublime e de poético que é ligado às tradições imperiais alemãs, também devia ser simbolizado por Guilherme II.

Ora, dispôs ou permitiu a Providência que o homem, a quem incumbia essa tarefa simbólica, tivesse as seguintes peculiaridades: ele não era nem um pouco um homem inferior à média, talvez no conjunto fosse um homem superior à média, se bem que não muito superior à média, no conjunto. Mas, não era um homem homogêneo. Ele tinha algumas qualidades que o punham bem superior à média, e algumas que o colocavam bem inferior à média. E era por isso que ele ficava na média. Não era porque ele fosse mediano em tudo, mas era pela composição das qualidades excepcionais e dos defeitos excepcionais. Assim a linha média se fixava nele.

Tendo nascido com um braço pequeno, ele tinha artes cênicas extraordinárias para esconder o bracinho e ninguém perceber. Bem constituído, no mais fisicamente bem apresentado, bem crescido, bem desenvolvido, jovem e otimista. Pela força, pela saúde, pelo ânimo, representando muito bem o impulso prussiano. E tornando muito palpável a presença prussiana, figurava bem nos uniformes do exército e da marinha alemã. A aeronáutica ainda não tinha uniformes. Começou a ser uma arma efetiva só durante a guerra em que veio a perder o seu trono.

Ele era um apaixonado pelo uso do uniforme. E por isso tinha o uniforme de quase todos os exércitos estrangeiros que lhe davam graus, porque os monarcas faziam isso: permutavam graus. Um nomeava outro general de tal regimento. E tinha o uniforme de quase todos esses exércitos e gostava de mudar de uniformes algumas vezes por dia.

Os jornais socialistas - havia um socialismo ignóbil Rosa Luxemburg, Baby, coisas abjetas ali - debicavam dele tirando várias fotografias dele por dia e contando quantas vezes o imperador tinha perdido o tempo mudando de uniforme. Mas o fato é que ele figurava esplendorosamente nas paradas, nos desfiles. Tinha muito o que o francês chama “le physique du rôle”, o físico do papel. E era um homem que completava bem o cenário militar alemão. E a esse título um homem que sem dúvida desempenhava bem o seu papel simbólico.

Mas o que complicava a situação é que dos lados dos defeitos tinha o seguinte: cercado de sumidades, ele não era sumidade em nada. Era ele que devia dar a palavra decisiva na balança das sumidades. E não tinha nem sequer aquela sumidade de bom senso, que faz com que um homem comum possa ser a chave de cúpula de homens incomuns. Pelo contrário, o que lhe faltava era o bom senso.

Muito falador, muito parlapatão, gostando de fazer discurso com grandes frases, dado a orador, aliás, falando de modo muito agradável. Gostando de compor os seus discursos sem ouvir os seus ministros. De vez em quando ele saía com estraladas que depois davam trabalho para consertar. Por exemplo, um famoso discurso em que falou a respeito do perigo amarelo. E depois mandou ilustrar com uma figura de São Miguel Arcanjo, que era um símbolo dele, incitando os povos do Ocidente a se defenderem contra o perigo amare-lo. Nisso ele “quebrou vários ovos para fazer omelete”. Porque contrariou a Inglaterra, contrariou a Rússia, indignou o Japão, estremeceu a China, uma série de coisas. Mas ao menos tinha feito um discurso pomposo. Assim, ele tinha uma série de pronunciamentos.

O príncipe de Bülow (contemporâneo ao Guilherme II), que escreveu suas próprias memórias conta esse caso curioso. O Kaiser resolveu ir à Terra Santa, aonde foi com a Kaiserin (sua esposa, n.d.c.) e séquitos, em navio especial, segundo os sistemas da “Belle Époque”. Quando ele chega a Bari, porto de mar, era preciso um piloto para conduzir o navio dentro do porto. As pessoas do tombadilho se distraíram um pouquinho. E de repente ouviram a voz do imperador fazendo as declarações mais solenes e tonitruantes a respeito de política internacional, explicando e arengando etc. Eles pensaram: com quem é que o imperador está conversando e contando essas coisas extraordinárias com tanta ênfase e se mostrando tanto? Foram ver e era o piloto... Este último, naturalmente um italiano reluzente, com todas as habilidades peninsulares que nós bem conhecemos, soltou a trela (língua, n.d.c.) do imperador. E possivelmente ainda ganhou um pouco de “denaro” (dinheiro) da polícia para contar depois tudo, para fazer um relatório para ir para o Ministério exterior da Itália...

A tal ponto que, de vez em quando, um ou outro dentro do séquito do imperador, quando o via fazer discurseira meio descabelada, voltava para outro e dizia: “piloto de Bari”...

Esse homem com toda essa capacidade simbólica marcante, simbolizando às vezes o que devia, às vezes o que não devia, acertando muito e errando muito, tornou-se verdadeiramente odiado pelos dois grandes povos adversários dele. A França, ainda marcada pela guerra de 1870. E a Inglaterra muito espezinhada por causa do perigo da expansão colonial alemã, que poderia abalar o império britânico. E os senhores sabem quanto o assunto colônia, no tempo em que o leão britânico tinha garras novas, o assunto colônia estremecia os ingleses.

O resultado é que foi responsabilizado pela I Guerra, foi odiado por todos aqueles que lutaram contra ele e se transformou numa espécie de “bête noire” odiada por todo mundo.

Cessada a guerra, ele se refugiou na Holanda, num castelo do Conde Bentinck, de Amerongen. Quando chegou, vindo de trem da Alemanha para a Holanda, exilado, encontra o conde no passadiço do trem para recebê-lo. Ele cumprimenta o conde, era uma gentileza que o conde ia fazer pondo o castelo à sua disposição. E diz o seguinte: Conde, o senhor é maçom? - O Conde: sou. Ele: Ah, muito bem, muito bem. Entra no automóvel, vai para a casa do conde e pergunta: o senhor tem chá inglês? Ele estava sendo derrotado pelos ingleses. Naturalmente na Alemanha não tomava chá inglês por ser uma bebida odiada durante a guerra. O conde diz: tenho. Serve e ele toma pequenos goles e diz: que gostoso! Começa a sua vida de exílio.

Esse homem com a personalidade tão variada, incumbia ao Churchill comentá-lo muitos anos depois da I Guerra, no momento em que começava a ser possível fazer uma apreciação imparcial sobre o Kaiser. Mas em que se começava apenas a ser possível. Dizer tudo era uma coisa muito complexa.

Então vamos ver com que estilo e com que arte o Churchill faz esse comentário.

Lamento que a exposição tenha tomado uma boa parte do texto, mas tenho impressão que ainda que  não terminemos a leitura, deixemos para outro dia uma parte, mas vale a pena fazer uma leitura atenta para ver o sentido e o subsentido das coisas, do que uma leitura que em rigor os senhores poderiam fazer sozinhos também.

“Ninguém deve abalançar-se a um julgamento sobre o imperador Guilherme II, sem primeiramente interrogar-se a si próprio: que teria eu feito em seu lugar?”

Os senhores vão ver que Churchill tinha muita simpatia pelo Kaiser e que ele portanto quer fazer a coisa apresentando as coisas favoráveis do Kaiser. Mas observem com que inteligência ele introduz o tema: não julguem. Eu já sei o que vocês vão fazer. Vocês teriam feito melhor do que ele? 

Esse modo de perguntar, para nós latinos não impressiona muito. Mas para os germânicos e anglo-saxônicos... [a pessoa] pára e diz: Homem, um pensamento! E o pensamento pode atrapalhar. O pensamento está muito bem lançado; logo na introdução tem verve e atrapalha os furibundos logo desde o início. 

“Figurai que desde a vossa infância fosseis educado na convicção de que Deus vos escolheu para ser o chefe de uma poderosa nação...”

Era um monarca de direito divino.

“...que as próprias condições de vosso sangue vos colocam muito acima do comum dos mortais. Imaginai que antes dos trinta anos herdastes um rico espólio, bem resguardado no vosso tesouro, províncias, poder, orgulho nacional, frutos esses de três guerras sucessivas ganhas por Bismarck. Atentai nos sentimentos que deveria criar o espetáculo dessa magnífica raça germânica...”

Começa o elogio, mas veja como o elogio entra bem, porque que é uma magnífica raça ninguém pode negar.

“...multiplicando-se sob seu cetro, em número sempre crescente, estadeando sua energia, sua riqueza, sua ambição nas manifestações de lealismo das multidões e lisonja de hábeis aduladores.”

Não sei se os senhores percebem, mas me parece ver por detrás dessas palavras, que tem toda uma certa pompa, uma evocação magnífica do brilho da Alemanha imperial. Tenho toda impressão de que esse brilho ocorre de um modo ostensivo aí. E depois o problema está posto: cada um vai se imaginando nessa situação e vai achando delicioso. “Mas, puxa! Tem ainda um tesouro e província... que maravilha! Poder… depois uma magnífica raça…” No fim o sujeito está babado de se imaginar nessa situação!...

“Vós sois, dizem eles, o senhor poderoso, o supremo árbitro da guerra”. 

Um dos títulos do Kaiser era o “senhor onipotente da guerra”.

“Hindenburg falando dele emprega essa expressão: eu encontrei o meu senhor soberano, meu senhor onipotente da guerra. Ao soar a hora do próximo embate, é a vós que compete conduzir à batalha todas as tribos germânicas”.

Quer dizer todos os povos germânicos.

“...à frente do mais belo e forte exército do mundo, renovareis numa escala maior as vitórias de 1866 e de 1870. É a vós que cabe escolher chanceleres e ministros de Estado. Sois vós quem designais os chefes que terão de comandar os exércitos e as esquadras. Em todo o império não existem funções, grandes ou pequenas, cujos titulares não dependam de vossa vontade. Tudo que disserdes será recebido por todos com entusiasmo. Basta formular um desejo para que o mesmo seja realizado. Cada ato vosso reveste-se de esplendor. Sessenta palácios e castelos esperam a vinda do seu proprietário. Centenas de deslumbrantes uniformes enchem vossos guarda-roupas”.

Não sei se os senhores estão vendo como, pondo o leitor neste papel, Churchill vai acumulando as atenuantes para o Kaiser. Mas por outro lado, como está escrito, é o próprio da literatura evocar toda uma época de um modo meio imponderável. A gente sente tudo, sem que esteja minuciosamente descrito.

“A lisonja grosseira tem sido ela excessiva? Algo de mais sutil lhe irá suceder. Os homens de Estado, generais, almirantes, magistrados, sacerdotes, filósofos, sábios, financistas estão às vossas ordens para beneficiar-vos com os seus tesouros de conhecimento. E também para receberem com profunda gratidão a crítica que vos dignardes fazer dos seus diversos trabalhos. Íntimos amigos estão sempre prontos para repetir-vos que tal grande especialista ficou imensamente admirado de reconhecer vossa maravilhosa faculdade de apreensão dos assuntos de sua especialidade. Os diplomatas sentem-se tocados de admiração pela decisão viril ou paciente serenidade que sabeis revelar de acordo com as circunstâncias”.

Porque tudo isso acima diz a lisonja. É clássico da lisonja! Um Kaiser encontra, por exemplo, um grande diplomata. O indivíduo que depois tratou com o diplomata diz: “Senhor, ele ficou encantado convosco. Ele disse: Albion [a Inglaterra, n.d.c.] entrará em declínio se esse homem reinar muitos anos...” Não é fácil não acreditar. Não sei se os senhores já se puseram neste papel...

Vai presidir uma conferência de professores biólogos e fazem a ele uma exposição. E ele diz uma coisa insignificante. “Ah!”... Murmúrio e aprovação. E depois alguém comenta que grande professor biólogo tal disse: “o lugar dele, se não fosse no trono, seria no laboratório. Ele seria o mestre de todos nós”...

Porque essas são as lisonjas. Essas são as lisonjas que vão. Os senhores já imaginaram cada um envolto com essa lisonja? E devendo não crer nem um pouco. E conservar a cabeça inteiramente serena depois de ter bebido esse “vinho”?

“Os artistas são unânimes na exaltação do quadro alegórico que fizestes.”

É o tal do perigo amarelo.

“As nações estrangeiras rivalizam com os vossos súditos nas aclamações. E de toda parte saúdam na vossa pessoa o mais glorioso do mundo. E essas adulações continuaram, dia após dia, ano após ano, durante três décadas.”

Não sei se os senhores percebem o poder de argumentação do homem e a apresentação, a introdução do assunto como está bem feito. O Kaiser já sai aí pronto para receber todas as atenuantes. Trinta anos de bajulações desse gênero, de brilho desse gênero. Os senhores se ponham, os senhores mesmos, nesse papel seriamente. Por exemplo, capitaneando uma nau...  Na proa do navio, com um binóculo super... e um navio que passa na frente da esquadra que salva, levanta as bandeiras. Os soldados marinheiros gritam: Viva! Um dos senhores na frente, singrando nas águas azuis ou verdes do mar Báltico. Seria fácil conter expectativa na véspera do desfile naval? Como vou estar eu nesta ocasião? Fácil conter a alegria quando subirem as aclamações e o troar dos canhões. E depois o comentário do papel que fizeram? Os senhores não teriam medo de participar de um desfile desses? Se não tivessem medo, eu teria medo pelos senhores. Agora imaginem 30 anos disso. É duro...

Estais bem certo, amável leitor (para retomar uma velha forma em desuso) de que teríeis resistido à prova? Estais seguro de que vos conservaríeis um homem simples, sem pretensão, que não teríeis feito uma idéia exagerada de vossa própria importância, que não teríeis tido uma opinião demasiada de vós mesmo e teríeis sempre praticado a virtude da humildade e trabalhado sempre pela paz? Notai bem, que se houvésseis conseguido fazer isto, uma nota discordante misturar-se-ia e imediatamente aos coros dos louvores: Não temos senão um efeminado no trono.”

Aí é o contrário. Se o Kaiser fosse humilde, o que o povo teria dito dele.

“Nosso senhor da guerra é um pacifista! Não é que o novo império germânico, vindo tarde para o cenário do mundo, dispondo de forças formidáveis, cada vez mais crescentes, vai ser dirigido por um presidente da União Cristã? Foi para isso que nosso imortal Frederico e o grande Bismarck intrigaram e venceram? Foi para isso que os gloriosos chefes que conduziram a guerra libertadora, erigiram a cidadela prussiana, a gigantesca fortaleza do poderio teutônico? Os estados alemães longo tempo divididos, sulcados outrora, correntes opostas estão hoje unidas, sua vitalidade é invencível. De um só golpe eles humilharam a Áustria e esmagaram em seguida a França. Não temos no continente poder que nos possa igualar.”

Ele põe no continente para excluir a Inglaterra...

“Dois países mesmo aliados não conseguiriam submeter-vos”.

A França e a Inglaterra.

“Nestas condições nos conformaremos em ficar limitados à Europa. Será possível que esse pardo velho lobo do mar, a Inglaterra, continue a gozar de dominação do mundo e dos oceanos. E a França decadente, que nos perseguiu grandemente no passado e que agora treme diante de nossas forças reunidas, continue a desfrutar o esplêndido império colonial que acumula e alarga cada dia? Será possível deter-nos diante da porta fechada das Américas por causa da doutrina de Monroe, afastadas da África do Norte em virtude de um acordo anglo-francês e excluídos da China e do Oriente por um concerto internacional? Deixaremos a Holanda enriquecer-se nas suas opulentas Índias Orientais? Que a pequena Bélgica, cuja reputação é tão má, continue a chafurdar-se no imenso Congo?”.

Isso tudo são reflexões do imperialismo germânico que exigiria do imperador.

“Viemos tarde, seja. Durante séculos fomos mercenários, as bestas de carga da Europa, mas hoje na plenitude de nossa força reerguemo-nos. Onde estão aqueles que nos possam igualar nos duros trabalhos, no pensamento laborioso, na organização, no senso dos negócios, na ciência, na filosofia? E por trás de tudo isso, não é preciso dizê-lo, há o entusiasmo de ferro de incontáveis guerreiros prontos aguardando o sinal do chefe. Será possível que nos recusem o nosso lugar ao sol? Admite-se que nossas indústrias prósperas não possam contar nunca com petróleo, estanho, cobre, borracha, pertencentes à própria Alemanha? E que todas essas matérias primas vos venham dos ingleses, americanos, franceses ou holandeses? Não haverá, pois, regiões de clima temperado, onde os alemães possam fundar uma nova Stuttgart ainda mais próspera e cultivada, o comércio de uma Berlim mais rica, ou o campo de manobras em condições mais favoráveis de uma nova Potsdam? Chegamos atrasados, é certo, mas reclamamos a nossa parte.

“Dai um lugar à mesa ao Império Alemão. Ele atingiu a glória, graças à fidelidade do Deus alemão e do seu invencível exército. Senão nós mesmos vos arrancaremos de vossos postos e nos encarregaremos da partilha! Chegado a este ponto culminante de nossa história, quando já brilha a aurora de um formidável futuro, será que tenhamos por senhor da guerra um fátuo, um humilde de curto fôlego, que mal sabe murmurar? Não, isto não. Temos homens e quis a sorte que Deus desse a um deles o temperamento de um rei-soldado”.

Quer dizer, é a pressão da opinião pública para ele ser como era. Os senhores vejam que magnificamente exposto. Que brilho! Que síntese! Que fulguração! A mim parece ver todas as fotografias da velha Alemanha imperial, os anelos de um povo modelando o seu imperador. Daí a pergunta: podia ser o imperador de outra maneira?

“Era o que se lia nos olhos brilhantes e nos sorrisos afetados de quem, não obstante as atitudes reverentes, se esforçava por parecer cortês na sua postura militar.”

Aqui vem a descrição do homem. O Kaiser, com os olhos brilhantes, procurava corresponder a essa expectativa.

“Se se tivesse ensinado ao jovem imperador que o sentimento de sua própria importância primava sobre tudo mais, ter-se-ia ao mesmo tempo inculcado nele a idéia de que o seu primeiro dever consistia em manter a grandeza do império. Guilherme II tinha sido advertido, porém, de modo diferente. E apesar da fria aparência do respeito que lhe manifestavam, forçaram-no a convencer-se de que, para conservar a admiração e o amor dos seus súditos, se fazia mister tornar-se deles o campeão. Os socialistas também para tanto concorreram: pobre gente, afastada de tudo, sem quaisquer preocupações pela continuidade da dinastia, pela estabilidade da monarquia e até mesmo pela própria grandeza da Alemanha.

“Dos socialistas não havia recebido jamais nenhuma aclamação, ou sequer uma saudação, a não ser quando a isso obrigados pelo dever militar. Eram contrários à aristocracia, aos proprietários territoriais, essas colunas da nação. Não tinham eles nenhuma consideração pelo admirável exército que, pelo seu poderio, havia libertado a Alemanha e lhe assegurava constantemente a unidade. Anos consecutivos, sem desfalecimento, votavam contra tudo que o Kaiser amava, contra todas as classes, todos os interesses em que se agrupavam seus mais fiéis servidores – servidores que eram também seus senhores – e que bem o sabiam.

“Como eram grosseirões esses homens, como tudo escarneciam. Que mentiras não sabiam inventar e, mais grave ainda, que escandalosas verdades não gostavam de divulgar! Admitir-se-ia, pois, que Guilherme II viesse a ser realmente o arauto desse povo? Poderia ele entrar em luta com preciosos elementos, que sustentavam seu país e seu trono para defender a causa de tais homens que se vangloriavam de não possuir o sentimento de pátria. E cujo primeiro ato, se porventura chegassem ao poder, seria derrubar o trono.”

O pensamento que está expresso aqui é o seguinte: os socialistas eram pacifistas. E se o imperador tomasse um feitio pacifista, ele só seria apoiado pelos socialistas. Mas como os socialistas eram inimigos irreconciliáveis dele, nem por isso deixariam de ser inimigos. Então ele perderia os amigos e não ganharia os inimigos. Ele se precipitaria no vácuo. Ele não podia, portanto, ser pacifista. Essa é a tese que Churchill desenvolve.

“Aderiria às idéias exóticas de que participavam seus inimigos, os socialistas, enquanto de todos os lados as forças viris da nação lhe solicitavam a constância da fidelidade?”

É muito bonita essa comparação. As forças viris contra o socialismo pútrido, mole e sem virilidade verdadeira.

“A voz de uma tradição secular em nome de uma ficção romanesca, a herança ancestral, tudo não lhe aconselha a audácia? Estais certo, leitor, de uma convicção vinda do mais profundo de vossa consciência, de que, se houvésseis sido submetido a tão terríveis influências, alimentado dessa real ambrosia, terias ficado um homem de Estado calmo, benevolente, um conservador ou um liberal? Não o creio”...

Não sei se os senhores veem que está quase irrespondível. Quase porque o católico teria o que responder, mas seria preciso argumentar com a graça de Deus, porque sem a graça de Deus isso teria que dar certamente no que deu. Ora, o imperador era protestante e entendia a graça de Deus num sentido completamente diferente dos católicos.

“Se levarmos em consideração as circunstâncias e as tentações que o cercavam, o modo de vida adotado pelo imperador é digno de ser examinado. Não se deve condená-lo sem refletir. Trinta anos a fio reinou como soberano pacífico. Durante trinta anos seus oficiais tinham a ordem de dizer, pelo menos aos estrangeiros, que a manutenção da paz fazia parte de sua religião. Várias ocasiões de deflagrar a guerra se lhe ofereceram, sem que delas se aproveitasse. A guerra entre o Japão e a Rússia servira para abater esse colosso. Pelo período de três anos o perigo de uma guerra em duas frentes havia desaparecido. A aliança franco-russa estava condenada a não passar de um farrapo de papel. Podia por isso crer que a França ficasse à sua discrição.

“Reinou em paz, embora não fossem poucas as tentações. Em Algeziras sofreu uma derrota diplomática. Em Agadir, depois, aceitou uma situação de algum modo humilhante. Guilherme II fez tudo por contentar seu exército e sua marinha com palavras sonoras e grandes gestos. O punho de ferro, a armadura reluzente, o almirante do Atlântico. O sic volo sic jubeo, stec pro ratione voluntas (assim quero, assim mando, a minha vontade me sirva de razão), inscrito no Livro de Ouro de Munich.

“Nada de guerra. Não mais despachos e maquinações astuciosas à maneira de Bismarck. Contentava-se com atitudes, não raro ostentoso tilintar de espadas, mas espadas na bainha. O que ele mais desejava era passar por Napoleão, sem os riscos de guerra; um Napoleão sem batalha. Quem quiser fingir de vulcão o menos que deve fazer é lançar fumaça. Foi o que ele fez. A fumaça que lançava visível à distância tomava, porém, as proporções daquela coluna que conduzia os hebreus ao deserto. Isso pouco a pouco levou os observadores inquietos a se unirem e a se aliarem no sentido da mútua proteção”.

Não sei se percebem claramente a magnífica argumentação. Agora o outro lado, diz ele em favor do Kaiser: o Kaiser governou 30 anos e teve excepcionais ocasiões de declarar a guerra. Uma delas foi por ocasião da guerra russo-japonesa, quando a Rússia ficou escangalhada e, portanto, não era uma aliada válida da França. O Kaiser poderia ter invadido a Rússia. Não fez. Em Algeziras não fez. Durante 30 anos ele representou o papel que o público queria dele, sem declarar a guerra que o público queria. Esse homem era um pacifista ou era um belicista? A argumentação é discutível, mas não sei se percebem como é primorosamente bem feita. A tal ponto que acredito que vários dos senhores ficariam tentados em concordar. Diz: “coitado, a coisa vai mesmo. O homem tem substância, o homem era bom...” Como argumentação, expressão literária, acho um primor.

É de tal maneira um primor que estou tendo pouco que comentar. Estou quase fazendo uma leitura à voz alta para os senhores. Mas é que não dá muita margem a comentários. Há tempo eu li e pensava que desse mais margem a comentário. Não dá, porque a coisa fala por si e não admite muito acréscimo. O que ainda é uma qualidade literária a mais. 

“Tive sorte de haver sido hóspede do imperador durante as manobras alemãs de 1906 e 1908.”

Aí é um pouco de “megalada” (neologismo para o ato de se gabar, n.d.c.) de Churchill.

“Estava ele no ponto mais glorioso da sua carreira.”

Os senhores se lembram que a I Guerra arrebentou em 1914.

“A cavalo, cercado de reis e de príncipes, enquanto suas legiões, numa marcha que parecia interminável, desfilavam diante da sua augusta pessoa, dando a impressão que nelas se resumia tudo que no mundo havia de pujança material. A mais viva cena que eu guardo na memória é da entrada do imperador na cidade de Breslau no começo das manobras… Montava um esplêndido corcel e cavalgava à frente de um esquadrão de couraceiros em uniforme branco, trazendo no capacete a águia simbólica”.

Não sei se os senhores têm a mesma sensação que eu, de ver desfilar o imperador à frente de seus couraceiros.

“As ruas da capital silesiana enchiam-se de multidões entusiásticas, que eram contidas não por uma simples linha de soldados, mas por fileiras de antigos combatentes com as roupas pretas esverdeadas pelo tempo, com seus chapéus altos, parecendo assim que o glorioso passado da velha Alemanha emergia naquele instante para saudar um amanhã mais fulgurante ainda.”

Que bem dito! Que bem posto!

“Que contraste teria de ser esse amanhã doze anos mais tarde! Um homem prostrado num vagão de estrada de ferro, aguardando na fronteira holandesa, durante longas horas, que lhe permitissem um refúgio para escapar à execração de um povo, cujos exércitos ele conduzira a incomensuráveis derrotas, a preço de sacrifícios tremendos e cujos tesouros esbanjara, bem como todos os frutos das antigas conquistas.”

Não sei se percebem que de repente vem uma pena do Kaiser, porque o contraste está muito bem introduzido, está muito bem exposto.

“Esse desastre foi resultado de uma falta ou somente da sua incapacidade? A um certo respeito, uma tal incapacidade corresponde mesmo a uma falta. Como quer que seja, a história deve adotar um ponto de vista mais caridoso, não deve acusar Guilherme II de ter querido e preparado a guerra mundial. É verdade que os argumentos invocados para defendê-lo estão longe de favorecer-lhe a reputação. Lembremos de um célebre advogado defendendo o Marechal Bazaine do crime de traição pela rendição de Metz, exclamou: não é um traidor; vede-o, é um desastrado”.

Os senhores se lembram do processo do Marechal Bazaine. Foi exatamente na guerra contra os prussianos, ele foi derrotado. Então o advogado (ele foi processado) alegou em favor dele isso: “olhe para ele, não é um traidor, é um desastrado”. Bazaine muito sem vergonha continuou a passar perfeitamente bem de saúde. Foi para um forte e de lá escapou e viveu bem em Madrid. Era um homem de um tipo inteiramente diferente.

“Não se pode exagerar a inópia [miséria, escassez, pouquidade, n.d.c.] que, no curso de uma geração, de erro em erro, conduziu o imperador alemão à catástrofe. O jovem soberano que despedia Bismarck sem o menor constrangimento, não demorou em fazer que a Alemanha perdesse a segurança e as garantias que lhe poderiam advir de um bom entendimento com a Rússia”.

Aí ele vai “descangicando” um pouco a diplomacia.

“A Rússia viu-se obrigada a passar para o campo adverso. A abundante correspondência entre Willy e Wicky (tratamento que o imperador Guilherme e o tsar Nicolau empregavam), as consideráveis vantagens que deveriam resultar de uma amizade pessoal, de nada serviram. Sobreveio, ao contrário, a aliança franco-russa.”

“O tsar de todas as Rússias preferiu estender a mão ao presidente da república francesa, ao som da Marselhesa, a colaborar com o imperador seu bom irmão, seu igual, seu primo, seu amigo. Segue-se como uma fatalidade o arrefecimento das relações com a Inglaterra. Cumpria nesse caso romper vínculos mais poderosos, formados pelo sangue, pela raça e pela história. O trabalho era longo e árduo, entretanto Guilherme II conseguiu realizá-lo sem tardança.”

Ele está sustentando a tese de um incompetente.

“O ciúme que tinha de Eduardo VII e também a admiração que lhe despertavam a vida, as maneiras e os hábitos ingleses serviram-lhe de estimulantes. Respeitou sempre a Rainha Vitória, sua augusta avó. Mas por Eduardo VII, seja como príncipe de Gales, seja como soberano, sentia um estranho misto de inveja e desprezo, causa de muitos desastres. Dirigia-lhe homilias pretensiosas a respeito de sua vida privada”.

O rei Eduardo VII era muito sem vergonha.

“As setas ferinas que lhe atirava ao acaso jamais se perdiam, ainda quando não atingido o seu alvo, pois não faltava quem reunisse para levá-las ao conhecimento do alvejado. Onde se encontra vosso rei neste momento? perguntou certa vez o Kaiser a um visitante inglês. Em Windsor, senhor. Ah! Supunha-o em algum cruzeiro com seu fornecedor”.

Aí os senhores veem o destempero do homem... Quer dizer, com algum magnata.

“As relações de família, que deveriam cimentar uma aproximação internacional, transformaram-se entretanto em motivo de discórdia. A Grã-Bretanha é uma democracia constitucional. Os sentimentos pessoais do monarca não influem sobre a administração responsável, daí as razões das mais graves hostilidades. O telegrama irrefletido enviado por Guilherme II ao presidente Kruger, por ocasião do raid Jameson, arrancou ao leão britânico um rugido tal que a Alemanha jamais ouvira. Veio depois a rivalidade marítima. O senhor do mais poderoso exército quis possuir também uma frota capaz de contrastar a maior potência naval do mundo.

“A Inglaterra trazendo consigo todo o Império Britânico aproximou-se pouco a pouco da França. E sob a influência de golpes sucessivos, Algeziras (1906), a anexação da Bosnia (1911), concluiu com a França e a Rússia uma tácita união que, por não ter sido formulada, não se apresentava menos efetiva. A Itália acompanhou a Inglaterra. Uma cláusula secreta do tratado da Tríplice Aliança libertava a Itália da obrigação de tomar parte numa guerra, uma vez que se encontrasse em campo oposto da Inglaterra. Já em 1902, o Kaiser havia feito uma ofensa mortal ao Japão”.   

É um desastrado.

“No curso de longos anos de ostentação, de atitudes medievais, o senhor da política alemã tinha conseguido separar o país de todos os seus amigos, exceto um, o império dos Habsburgs...”

E agora vem uma asneira do Churchill:

“...império fraco, ingovernável, dilacerado por lutas intestinas”.

Não é verdade e nem Churchill pensava isso. Outro dia me contaram de um livro que ele mandou com dedicatória ao Otto de Habsburg, com essas palavras: “A Europa sangra por não ter um Habsburg”. Quer dizer, isso não é o que ele pensava. Aqui é falsidade.

“Todas as barreiras protetoras que Bismarck erigira foram destruídas, ao mesmo tempo que se formava, embora pouco visível ainda, uma forte coligação no centro, da qual ardia a chama da revanche francesa.”

Vejam que bonita forma de apresentar o papel da França: uma chama ardendo no centro da coligação.

“A Alsácia!  Deixando como lhe convinha, a Áustria com as mãos livres, segue naqueles brilhantes dias de Julho de 1914 num cruzeiro de três semanas. E o aliado durante esse período puniria a Servia pelo atentado de Serajevo.”

Começa então a I Guerra.

“O turista despreocupado lançava a ponta do seu cigarro aceso na entrada de um paiol de pólvora, que era então a Europa. De regresso sentiu os primeiros sinais do incêndio, a que se seguiria a humilhante aceitação do ultimato austríaco por parte da Servia. Exclamou: É um brilhante sucesso diplomático! Não há mais motivo para a guerra, não mais necessária a mobilização”.

Contava instintivamente nessa ocasião impedir uma conflagração. Os senhores estão vendo que ele conduz a idéia de um pacifista.

“Era tarde demais! Em presença do perigo, o exército tomara suas precauções. Por toda parte fortes cordões de tropas armadas, vindas de todas as direções, se estendiam para conter, no meio da confusão, obrigá-los a recuar os curiosos, a populaça exaltada e os próprios apaziguadores ocasionais. No meio do tumulto geral a pompa dourada do poder pessoal, os cortesãos solícitos, os áulicos imperiais são imprudentemente varridos,  juntamente com os fáceis triunfos dos tempos de paz.

“O poder e a direção dos negócios passaram a mãos mais firmes. Desatam-se indomáveis as paixões das diversas nações. A morte de milhões de homens faz a sua entrada em cena. Vão roncar os canhões. A guerra em duas frentes – que tanto fora receada – veio inevitável. A defecção da Itália, abandonando a Tríplice Entente, não foi menos certa que a hostilidade do Japão. Impossível fugir à violação da neutralidade belga. E os exércitos dos impérios centrais lançaram-se ao ataque dos pequenos estados vizinhos. A guerra ia ter três frentes. O ultimato britânico vem a seu turno. O império dos mares desse muito aliado da Alemanha completa o círculo de ferro e de fogo que sobre ela se aperta e tornou-se seu mais implacável inimigo.

“Guilherme II somente então compreende até onde levou o seu país. Num acesso de desespero e de pavor escrevera estas palavras que revelam de um modo frisante seu pensamento íntimo: O famoso cerco da Alemanha é enfim um fato consumado. É um grande feito que se impõe mesmo à admiração de quem lhe vai sofrer as conseqüências. Eduardo VII morto, é mais forte do que eu, que estou vivo!

É terrível de melancolia e de objetividade.

“A verdade é que ninguém poderia ter obtido um igual resultado. Ao povo alemão cabe uma imensa responsabilidade pelo fato da sua servidão à idéia bárbara da autocracia. A história não o poupara dessa grande recriminação.

“Guilherme II não tinha senão a aparência, sem as qualidades do ditador moderno. Foi um tipo representativo, não há negar, no cenário do mundo, mas tinha que desempenhar um papel de muito superior às possibilidades do maior número. Não possuía em verdade senão muito pouca coisa de comum com esses grandes príncipes que os acasos do nascimento...”

Outra expressão idiota.

 “...faziam surgir no curso dos séculos, de raro em raro, para guiarem os estados e os impérios. Sua inteligência tão incontestável, como a sua versatilidade, seu encanto pessoal e sua vivacidade de espírito, encobrindo a sua incapacidade, fizeram com que se agravasse o perigo que encarnava”.

Muito bem formulado! Esplendidamente apresentado.

“Sabia muitíssimo fazer frases, tomar atitudes imperiais. Mostrou-se um comediante completo na arte de sorrir, de inclinar-se, ou de reerguer-se. Mas através de todas essas poses, solenes ou falsas, encontrava-se apenas um homem comum, vaidoso, embora cheio de boa vontade, esforçando-se por passar por um segundo Frederico o Grande. Nele não havia nenhuma profundeza de vista, nenhuma limpidez de cálculo, nenhuma habilidade diplomática, nenhum alcance político de que pudesse beneficiar seus súditos.

“Em última palavra, deu-nos ingenuamente a sua verdadeira medida, publicando as memórias que escreveu na reclusão forçada de Doorn. Não se pode imaginar revelação mais inócua, de uma congênita vulgaridade, de uma falta de compreensão, de uma ausência de senso das proporções e ao mesmo tempo de uma pobreza literária. Fica-se admirado de supor que durante trinta anos uma palavra, um simples gesto, de um ser tão limitado, podiam desencadear forças suscetíveis de devastar o mundo. Não foi culpa sua, foi seu destino!”

Aqui está evidentemente errado. O resto é bem menos interessante.

O balanço qual é?

Os senhores veem aí a grande habilidade de Churchill. E ao par disso, o estilo brilhante, a apresentação magnífica e algo de muito verdadeiro no discernimento do personagem.

Tudo de verdadeiro? Não creio. Acho que ele esquece uma verdade.

Quando um homem consegue muito simbolizar algo, ele não pode ser uma nulidade, pois tem que ter em alguma parte de sua alma uma riqueza e uma riqueza de muito valor para exprimir. Porque do contrário seria inexpressivo. Quem é muito expressivo tem muito que exprimir. E quem tem muito que exprimir tem em algum recanto de sua alma um valor, evidentemente algo que tem importância, que tem alcance e por onde ele merece figurar na galeria dos grandes homens

Tomem por exemplo Luiz XIV. Pergunta-se qual foi o grande valor de Luiz XIV. Em última análise, foi de tal maneira um grande rei, que quando se diz “o rei”, todo mundo pensa nele: foi um grande general? foi um grande diplomata? foi um grande administrador? foi um grande financista? O que ele foi? Ele foi menos do que isso e incomparavelmente mais do que isso: foi um grande símbolo, um símbolo no qual todos se inspiraram. Ele foi o sol. O sol não é um financista, não é um diplomata, um guerreiro. O sol ilumina os financistas, os diplomatas e os guerreiros. Ele foi um rei-sol. E o ser um rei-sol é um “métier” [atividade] que não adianta dizer que não indica o homem inteligente, porque sem uma grande compreensão do papel que seja um rei-sol, ninguém consegue ser um rei-sol. E um desprovido intelectual não pode ter a grande compreensão do que seja o rei-sol...

Há historiadores que perguntam qual é na história um dito que revele, da parte de Luiz XIV, uma grande inteligência, qual é uma resolução que revele da parte dele uma grande capacidade. A resposta é esta: há coisas que não se medem, não se pesam em ditos, nem em resoluções, mas sim em forças simbólicas! De tal maneira que ele foi um grande rei.

Único dito de Luiz XIV que conheço e com um certo espírito, foi para os protestantes, na véspera da abolição do edito de Nantes. Ele disse aos protestantes que foram visitá-lo, alarmados com a tempestade que percebiam que vinha; ele disse o seguinte: “Meu avô (Henrique IV) vos amava e vos temia; meu pai (Luiz XIII que era sinceramente católico) não vos amava mas vos temia; eu não vos amo nem vos temo”.

É uma observação histórica interessante. Não se vai dizer que é um dito de um pensador. Pensador cogita coisas mais profundas do que isso.

Então, o que foi Luiz XIV? Ele foi um grande símbolo, ele foi um rei-sol. É verdade que ele soube conjugar grandes valores, é verdade que ele soube comunicar uma certa unidade de ação a esses grandes valores. Mas sobretudo soube inspirá-los. Sobretudo!

Ora, eu acredito nisso. Churchill não reconhece que o Kaiser foi em alguma medida um rei-sol. Até certo ponto ele foi um imperador-sol. E enquanto tal, nessa proporção, nessa linha, revelou uma capacidade de interpretar as aspirações de seu povo, de as exprimir e as exprimir no mais alto ponto. E que fizeram dele um homem que, debaixo de um certo ponto de vista, não todos os pontos de vista, não pode deixar de ser tido como um grande homem.

Os senhores me dirão: mas então o que? Um grande ator?

Eu digo, precisamente não. Um símbolo não é um ator. O ator é aquele que faz o papel do símbolo. O ator está para o símbolo como a pedra falsa para a pedra verdadeira. O símbolo é aquele que sabe ter autenticamente aquilo que o ator sabe fingir de modo inautêntico no teatro. Ele foi um grande símbolo.

Creio que Churchill não terá talvez percebido que um dos melhores aspectos dele próprio – Churchill - é de ter sido também um símbolo. O leão britânico antes de começar a perder os dentes e as unhas e a força para levantar a cauda, Churchill foi a personificação do leão britânico. E se a Inglaterra vibrou por ele, se entusiasmou com ele, foi na medida em que se sentiu interpretada por ele. Quer dizer, o Churchill do charuto, o Churchill do chapeuzinho, o Churchill da bengala, o Churchill do dito espirituoso, reluzente, o Churchill grande orador, era o tipo consumado de como o inglês entendia que o inglês deve ser.

Para entenderem bem isto, a Inglaterra não se julgou super interpretada por (...) quão palito em comparação com Churchill. Mas tanto quanto me é dado julgar, Churchill com sua roupa preta era um homem elegante. Porque tinha uma elegância que não dependia da roupa. Ele tinha uma roupa que estava fora do tempo e que não competia com a de ninguém; nem era para ser comparada com a de ninguém. Mas ele tinha um quê pessoal coruscante, brilhante, que estava a bem dizer na vitalidade e nos olhos dele. E por onde se alguém me dissesse: Churchill se vestia bem? Eu digo: sim. Ele era vestido de olhar e de luz. E esta roupagem era para ele verdadeiramente esplendida. Esse era o Churchill-símbolo. Muito mais do que as roupas impecáveis do dândi perfeito, nulo...

Os senhores me dirão: agora foi o centenário dele e ele não era símbolo porque a Inglaterra não vibrou mais por ele.

Eu digo: ainda é Inglaterra? Essa é a grande pergunta. O fato de não ter vibrado por ele não indica que ela perdeu o amor aos seus próprios símbolos? E, portanto, já não é ela mesma?

Se Churchill tivesse compreendido quanto ele valeu como símbolo, talvez tivesse podido aquilatar melhor o valor do Kaiser. E aí está a restrição que tenho que fazer a esta apreciação brilhante debaixo de tantos pontos de vista: é a fraqueza em que caem muitos homens. É por “megalarem” [se vangloriarem] por coisas secundárias, não percebem o principal que têm. E não dão graças a Deus por isso. Churchill se ignorou a si próprio.

Teria Luiz XIV percebido inteiramente quem ele era? Teria ele amado a sua própria simbologia como os contemporâneos amaram? Também não sei.

Saint Simon conta que Luiz XIV de vez em quando permitia que a orquestra tocasse, enquanto ele jantava, músicas populares de elogios a ele. E que cantarolava a música com a orquestra. Nessas horas ele deixava de ser sol para passar para a lâmpada elétrica; se quiserem, gás néon. Até que ponto Luiz XIV mesmo teve noção de seu próprio papel simbólico?

Encontrar um homem inteiramente fiel ao que ele deve simbolizar, creio que sem a marca da religião católica, a gente não encontra.

Houve um homem que foi um símbolo perfeito. Não foi apenas um símbolo, mas perfeito em tudo. Ele foi perfeito também como símbolo. Esse homem foi um santo. Foi São Luiz, Rei.

Aí está o drama dos homens símbolos. Drama no qual Churchill e Guilherme II apresentam a mesma vulnerabilidade. Coisa na qual penso que Churchill não refletiu quando comentou Guilherme II.


Bookmark and Share