Plinio Corrêa de Oliveira

 

Encerramento da XXVII SEFAC

(Semana Especializada para a Formação Anticomunista)

1º. de fevereiro de 1976

 

 

 

 

 

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A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério tradicional da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.

Cabe-me dizer-vos, neste momento, algumas palavras de encerramento. Essas palavras devem conter, conforme a tradição, uma essência do que nesses dias foi dito e que possa ir gravado nos vossos espíritos ao longo dessas vias que percorrereis durante o ano que vos separa da próxima SEFAC, vias áridas e difíceis, cheias de emboscadas, de tentações, das seduções, dos sustos dessa quadra histórica terrível na qual vivemos. Lembrança essa, portanto, que deve ficar em vosso espírito gravada com letras de fogo e letras de ouro.

 Onde encontrar esse fogo? Onde encontrar esse ouro? Onde encontrar os recursos para, em vossas almas, gravar bem definidamente o essencial de tudo quanto vós aqui ouvistes? Eu mesmo me pergunto. E a míngua de meios para isso, eu me proponho contar-vos uma estória. Uma estória que, evidentemente tem muito de imaginado, mas com bases na realidade e que conterá, no seu epílogo, a essência da realidade dentro da qual vós vos encontrais. Conterá uma lição; com essa lição, um conselho, com esse conselho, um dever, com esse dever, uma missão.

 Umas das zonas mais belas do mundo é, sem dúvida, a zona montanhosa, a zona de neve, no inverno, mas cheia de sol, de calor, no verão, a zona que fica entre a Itália e a Áustria, nesse maciço montanhoso do qual faz parte também, se não politicamente, mas geograficamente a Suíça. Zona cuja natureza se caracteriza, ao longo das estações, incomparavelmente mais demarcadas do que na natureza brasileira – em que o inverno não é como em São Paulo, uma série de dias frios no meio do calor e o verão, uma série de dias quentes no meio do frio – mas em que o frio é frio definido, e o calor é calor e calor definido. E em que a primavera tem toda a continuidade e o esplendor do sol que se levanta. E o outono tem toda a atmosfera de um poente, de um sol que se põe.

Nessa zona privilegiada do globo, belezas naturais notáveis se fazem notar. Nos períodos de inverno, a natureza parece hirta, parece fria; uma grossa camada de neve cobre as árvores, cobre as casas, os maciços montanhosos se revestem de gelo e dir-se-ia que a natureza toda está morta. O gado recolhido friorento, aos seus estábulos nem é visto pelo viajante que anda por aquelas regiões. Nas casas se nota que há vida porque, contrastando com o frio tremendo que circunda, vê-se que da chaminé sobe uma fumaça anunciando ora o calor do lar, ora o bom perfume da refeição farta, opulenta, simples, pobre, de bom gosto que ali se prepara.

A natureza, entretanto, brilha com todos os fulgores do sol. Já de madrugada, quando o sol lança seus primeiros raios, um cor-de-rosa muito leve se espalha por todas aquelas superfícies geladas, e até se reflete num ou noutro lago de água puríssima, condensada naquelas altas montanhas.

À medida que o tempo vai correndo, esse róseo vai se tornando vermelho, esse vermelho vai tomando quase a cor de um vinho rosé, depois aos poucos evolui para um azul claro, para um azul esplêndido, e está tudo anil. O sol parece esplêndido, magnificente, chegando a um ponto em que ele reflete inteiro qualquer cume de montanha, qualquer encosta de geleira. É a hora em que, com a grandeza do sol, se nota - repercutida por toda a natureza - a magnificência da luz e se pode dizer que tudo canta a glória de Deus.

Num lugar ou noutro, de uma serrania para outra, se vê um som de trombeta. É algum caminhante que toca a trombeta para se fazer ouvir por outro, para combinarem alguma coisa, algum sinal. Mas aquele som, por aquelas vastidões, repercute cristalino e vai longe, longe... o eco multiplica e se espera a volta da resposta. Depois, o silêncio se faz de novo. E algo convida a alma a uma alegria imensa, uma alegria desinteressada, que não tem como razão uma vantagem pessoal, que não tem como razão um deleite individual da carne e do sangue, não tem como razão um enriquecimento, mas tem como razão o estar ali no meio daquelas maravilhas, o estar ali no meio daquelas belezas, e sentir atrás daquelas maravilhas e belezas um mistério que se forma.

Qual o sentido profundo daquilo tudo? Qual a explicação profunda daquilo tudo? Por que tanta beleza acumulada numa região onde há tão pouca gente? E a resposta aos poucos vem ao espírito do homem que sabe pensar. É claro que aquilo tem um Autor; é claro que há um Deus todo–poderoso, onisciente, infinitamente sábio também no que diz respeito às regras do belo, que organizou aquilo daquela maneira, como se fosse  precisamente assim, para que aquelas populações que vivem na fartura que vem do trabalho e da economia, mas que não é nem um pouco a fartura exuberante, trepidante das sociedades industriais; é a fartura moderada, suficiente e parcimoniosa das sociedades agrícolas, de vida econômica organizada, mas de terra pobre, para que as populações que ali vivem, e vivem suficientemente, vivam muito mais do espírito do que da carne; vivam muito mais da beleza, vivam muito mais da grandeza, da meditação e da contemplação, que conduzem a Deus, do que das coisas da Terra, dos automóveis, dos mecanismos, dos arranha–céus, do que das trepidações, dos prazeres, das orgias, da poluição e de tudo aquilo que caracteriza o esplendor - se é que esplendor é... - do mundo contemporâneo, nesse fim de século XX.

Essa consideração exerce sua influência sobre os que por ali passam. Conta-se que, numa ocasião, um turista passou por ali, viu todas aquelas geleiras, olhou a feeria daquele sol e daquela beleza da natureza, e perguntou a um habitante da região: Você é rico? Resposta: - Sou muito rico. - Mas o que é que você tem? Do que você é dono? Ele mostrou uma casa baixa, com vidraças, engraçadinha, mas à distância, quase mais uma casa de boneca do que casa de gente, e disse: - Aquilo é meu. E o turista perguntou: - Mas você se considera rico, tendo só aquilo? - Não, mas eu tenho também os estábulos e, entre bois e vacas, eu tenho 20 peças. E o turista: - Mas isso caracteriza um homem rico? Diz ele: - Sim, porque dá para eu viver aqui. - E riqueza é dar para viver? voltou a perguntar o turista. Então, quem tem apenas o suficiente para ver, é um homem rico? E ele respondeu: - É, quando mora aqui, porque tem o panorama. O turista ficou desapontado, ficou sem saber o que responder e com uma dúvida no espírito, que ele levou, ao se despedir.

(E pensou o turista para consigo) Um de nós é bobo. Ou é esse homem, que acha que riqueza é ter esse panorama, ou sou eu que acho que o panorama não é essa riqueza? O “panorama” é o arranha-céu da cidade onde moro, dinheiro que tenho no banco, o automóvel que eu possuo; essa vida sem beleza, essa vida sem lazeres, essa vida sem contemplação e sem meditação, essa vida de corre-corre, de luxúria e sensualidade, na qual eu me meti e na qual considero ter acumulado todos os bens da vida?

O turista saiu pensando... E como não é hábito dos turistas pensar muito, como a pergunta o preocupava e ele não sabia dar a resposta, mas antes de ir embora ele disse ao homem do lugar:

- Se você viesse morar na grande cidade onde moro, se você soubesse dos arranha-céus magníficos que há ali, e como eles se acendem à noite e ficam reluzentes e esplêndidos, no alto um anúncio luminoso que acende e apaga e um grande relógio que marca as horas; embaixo, os ônibus que passam às centenas e os automóveis também; e as agências de banco, com os cofres subterrâneos, e por baixo ainda os metrôs. Por debaixo da terra, alguns andares de realização e por cima da terra 20, 30, 40 andares! Saiba - e eu não minto - até um prédio com perto de 100 andares que ali existe! Então você compreenderia, pobre coitado, tua vida de panorama é uma vida vazia. Vende essas vacas; não sejas servo das vacas, vivam elas para teu serviço. Arranja dinheiro e emigra para minha cidade. O mundo inteiro admira a minha civilização e, meu bom homem, não admira as tuas geleiras, não admira esse azul e esse vermelho diante dos quais você gasta sua vida, quando você poderia ganhar dinheiro, dinheiro!

Depois de dizer isso, ele sai com o espírito cambaleante, pensando: Será verdade? Olha esse azul, olha aquele róseo, olha aquela água pura, olha o esplendor dessa luz, olha uma qualquer coisa que me deixou algo na cabeça por onde eu teria impressão que eu seria mais ordenado, mais tranquilo, mais eu mesmo, se eu abandonasse os “esplendores” que eu adoro e se eu compreendesse que na vida outros são os panoramas, outras são as quietudes;  que deve haver na vida um lugar para meditações, para pensar nesse  Deus que ali eu suspeito que exista realmente. Na grande cidade onde vivo, não tenho absolutamente tempo para pensar nesse Deus. Vou atrás do dinheiro, do dinheiro, do dinheiro. Estou com quarenta e tantos anos; ontem tinha impressão de que estava com trinta e poucos; amanhã estarei com cinquenta e tantos. São a porta da velhice e, com a velhice, já são os umbrais da morte que se levantam diante de mim. De que me adianta esse dinheiro? Enfim, eu não quero pensar nisso. Está na hora do avião. Vou tomar o automóvel, vou me meter na grande cidade, vou tentar esquecer essas geleiras e esse esplendor.

Assim voltou o homem para a chamada “civilização”. E voltou o habitante do lugar para sua aldeiazinha, trazendo alguns cartões-postais que o turista lhe tinha deixado, mostrando os arranha-céus e todas as maravilhas da grande cidade.

O homem sentou-se. Vamos chamá-lo de Hans... vamos chamá-lo de Giovanni, como quiserem, nessas composições étnicas indecisas entre a Áustria, de línguas alemã, e o norte da Itália e esse homem foi conversar, à noite, na casa de amigos. E para se fazer de importante, mostrou os cartões. E contou o que o turista dissera, perguntando:

- Isso não será, talvez, verdade? Os arranha-céus, que maravilha! Nós deveríamos ir para lá.

E os outros disseram:

- Não, é um risco medonho, não vamos!

Um outro disse: - Eu não me conformaria de viver longe desse panorama; eu não me consolaria de abandonar a casa onde meus ancestrais viveram e onde, à força de trabalho, lutando contra uma natureza esplêndida, mas dura, eles foram acumulando a modesta e suficiente fartura da qual vivemos. Eu não me habituaria a rezar longe dessa matriz onde muitas gerações de antepassados rezaram por eles e pelos que nos precederam com o sinal da Fé, rezaram por eles e pelos que viriam depois deles; e rezaram por mim; e onde eu rezo por aqueles que eu conheci e pelos que nascerão. Há algo aqui que é uma tradição; algo aqui vale mais do que a tradição, e é a fé inspiradora dessa tradição. Há valores morais, espirituais, culturais que eu de nenhum modo quero abandonar.

A passagem do turista nessa cidadezinha deixou, entretanto, uma polêmica aberta. E os partidos se dividiram. Uma parte queria ir embora e outra parte queria ficar. A parte que queria ir embora tratava-se de fins do século XIX, período histórico em que o fluxo imigratório para a América, para a África, para certas partes da Oceania e da Ásia, era muito intenso; em que se viam, às vezes aldeias inteiras lotarem navios e se transportarem para outros lugares, atraídos pela sede do ouro.

Nessa época precisamente essa aldeia entrou na polêmica, e alguns diziam: Embarquemos! vendamos tudo, penetremos num navio e vamos para a Oceania, continente maravilhoso, de uma natureza deslumbrante, com possibilidades extraordinárias de riqueza, com ilhas incontáveis, algumas abandonadas e desérticas, onde podemos descer e onde, desde logo, seremos os reis dos lugares. Braços, nós temos; saúde nós temos, experiência rural nós temos. Trabalharemos como leões e faremos uma fortuna enorme. Quando estivermos na idade madura, seremos homens ricos. O comércio estará instalado na orla de nossas ilhas agricolamente aproveitadas. E - ó felicidade, ó alegria - poderemos tomar um navio (não se pensava em avião naquele tempo) e visitar Nova York a fabulosa, Nova York a maravilhosa; aquela Nova York que o turista descreveu esplêndida, com não sei quantos andares por sobre a terra, e não sei quantas dezenas de andares por baixo da terra; agitada, rumorosa, atormentada, aventureira, fascinante, Nova York, o centro da riqueza na terra!

Outros hesitavam, e alguns poucos diziam: - Nós não iremos.

À medida que a polêmica foi se acendendo, o velho vigário do lugar foi acompanhando. E, em determinando momento, ele percebeu que o fascínio dos cartões postais deixados pelo turista dominava tudo; e que a maior parte da cidade ia embarcar, fascinada pelo ouro, para o mundo no qual eles, que nessa aldeia frequentavam os Sacramentos, eles que nessa aldeia cumpriam os Mandamentos, eles que nessa aldeia viviam na paz de Deus, na graça de Deus, eles abandonariam tudo e se perderiam completamente.

E então, discretamente, esse vigário começou a aconselhar aqueles que queriam ficar:Vedes que uma sede do ouro, uma sede de prazer, uma sede do orgulho, do mando, do orgulho da grandeza que a matéria confere, e que faz desvairar os homens se apoderou de vossos amigos, de vossos parentes. Espalhou-se entre eles um mal moral sem cura. Se eles saírem sem vós, eles se perderão completamente. Ide, pois, vós com eles. Levai os princípios e as tradições que eles querem abandonar, e fazei o apostolado de perpetuar o passado e, mais ainda, o domínio da eternidade nesse presente que parece escapar. Viajai com eles, ide com minhas orações e com minhas benções. Lutai, e enquanto eles lutarem pela grandeza material, lutai pela grandeza espiritual, lutai pela fé e pela religião, lutai pela temperança, lutai pela humildade, para que, por essa forma, possais vencer e salvar essas almas que sem vós se perderiam”.

O conselho do vigário espantou as pessoas boas do lugar. Mas, pensando, eles consideraram que era verdade, que era um conselho justo, e se resignaram à grande separação. E, a partir desse momento, ficou resolvida a viagem. Compraram-se as passagens, vendeu-se o gado, venderam-se os móveis, as casas iam ficar abandonadas, porque não havia quem nelas quisesse residir. Mais ainda: o próprio governo se desinteressava do povoamento daqueles lugares, que não tinham interesse ou atrativo maior do ponto de vista econômico.

Quando chegou o dia da partida, o vigário celebrou Missa com toda a aldeia presente. Depois, todos levando os haveres que podiam transportar, em fila, foram se dirigindo pela estrada, a pé, descendo a montanha abaixo, e o vigário ficou sozinho na cidadezinha vazia. Pela última vez ele viu a longa fila humana que, de longe, parou e ainda lhe disse adeus. Ele deu uma benção e notou, à distância, que todos se ajoelharem e receberam essa benção e depois sumiram no horizonte. E ele voltou - velho e encanecido - passo a passo para a igreja matriz. O Santíssimo tinha sido consumido. Ele apagou a luz da lamparina, fechou a igreja e saiu também. Mas antes de fechar a porta, ajoelhou-se diante do altar de Nossa Senhora e pediu-Lhe, com toda a força de sua alma sacerdotal, de pobre pastor cujo rebanho fugia assim de suas mãos e o deixava na solidão, indo para um terrível incógnito, ele pediu a Nossa Senhora que tivesse pena daquela gente e que a salvasse; que acompanhasse aquela gente com alguma graça, com algum dom, com algum benefício, que pudesse fazer com que aquela gente conservasse ao longe a tradição dos seus maiores, a pureza da organização da família que herdara com a fé, o produto da venda de duas propriedades, para eles poderem ter, ao menos, alguma  coisa com que viver.

O vigário depois retirou-se também. Os sinos não tocaram mais; o relógio da igreja, por falta de corda, parou também. O silêncio completo se fez sobre a cidadezinha.

Meses depois, no hospital de uma cidade vizinha onde se recolhera, o vigário, com um ataque cardíaco, entregou sua bela e virtuosa alma a Deus. E iam longe o navio, já ao longo do Oceano Índico.

Encostou depois nalgum lugar da Oceania e, numa ilha deserta e atraente, com vegetação abundante, pássaros esplêndidos, flores magníficas, frutas pesadas pendentes das árvores, matas virgens cerradas, das quais saíam alguns rios pequenos e atraentes, mar vasto e encapelado e ali desembarcaram e começaram a trabalhar...

Começaram a derrubar árvores, começaram a construir casas, começaram a plantar e organizar e, como tinham previsto, ao cabo de alguns meses já sentiam que venceriam a grande batalha; ao cabo de alguns anos estavam com a prosperidade francamente organizada. Aportavam ali constantemente pequenos navios das ilhas vizinhas, compravam aqueles produtos que eram revendidos nos grandes mercados da Ásia e alguns mercados da América, sobretudo da costa do Pacífico da América do Norte; começaram a penetrar libras, dólares, francos, começaram a fundar uma cidade boa, uma cidade grande; introduziram a eletricidade, apareceu o petróleo, começaram as máquinas a rasgar o interior, e tudo sorria a esse povo debaixo do ponto de vista material.

Mas do ponto de vista espiritual, como estavam as coisas?

Como receava o velho vigário, o gosto do ouro trouxe o gosto dos prazeres. Na cidade começaram a se instalar lugares de prazer; e dos lugares de prazer lícito se passou aos de prazer ilícito; e do prazer ilícito se passou ao prazer infame. E a preocupação contínua com as coisas dessa terra foi dominando as almas daquela população.

Aos poucos se notava nas igrejas que as comunhões eram menos frequentes; que os que comungavam, o faziam com menos recolhimento, rezavam menos a Nossa Senhora; de religião não se falava, a não ser quando, nos Domingos, as pessoas iam à Missa. Assim mesmo, muitos já não iam à Missa, porque já não tinham uma fé definida, não tinham interesse pelas coisas religiosas. O espírito moderno os transformava; eles passavam a ser materialistas, alguns em doutrina, outros na prática e na realidade. O que era feito da oração do velho vigário? Dir-se-ia que não era feito nada.

Entretanto, a oração feita a Nossa Senhora com confiança, nunca deixa de ser ouvida. Havia, na população dessa cidade, entre outras pessoas, uma mulher virtuosa, digna, pobre, apagada, casada com um homem honesto, também digno, mas pobre e ocupando um lugar apagado no conjunto daquela organização social. Eles tiveram filhos e filhas e, contra toda a expectativa, eram verdadeiramente extraordinários. No colégio onde estudaram, começaram a se destacar desde logo: as meninas, no colégio feminino e os meninos no colégio de meninos.

Falemos exclusivamente dos meninos, para não tornar excessivamente longa a nossa história: um se destacava por uma inteligência brilhante. Qualquer problema que o professor punha, antes do professor dar a solução, ele já tinha percebido alguma coisa e perguntava ao professor. E, às vezes, ele fazia alguma pergunta que atrapalhava algum professor, e o professor ficava indeciso na hora de responder. Outro era de uma extraordinária capacidade de realização: organizado, arguto, sério, trabalhador, saudável, não havia incumbência que se pusesse em suas mãos e que ele não fosse capaz de executar. Um outro tinha o dom da palavra. Palavra rápida, fluente, brilhante, verbosa, imaginosa, que retinha as atenções. Outro tinha o dom da boa companhia pessoal. Onde ele estivesse, em torno dele se formava uma roda; a companhia e a presença dele eram deliciosas; ele era o bem estar e as delícias do colégio.

Sobretudo, todos eles muito religiosos; profundamente piedosos, costumes exímios. E, neste lar pobre, eles recebiam uma educação esmerada. Os pais, que tinham pouco dinheiro para lhes dar, lhes proporcionavam, entretanto, muito boas maneiras, muito boa compostura. Vendo-os dir-se-ia que eram mais finos, eram mais nobres do que os filhos dos mais importantes habitantes da cidade.

E, em torno desses rapazes, cuja presença de tal maneira estimulava a virtude, foi-se criando, insensivelmente, no colégio, uma divisão de almas. Alguns sentiram que sobre eles pairava, embora o sentissem indefinidamente, uma predestinação divina, que Deus os tinha suscitado extraordinários, fora completamente da linha e das medidas do lugar, para uma obra de moralização, de evangelização, de elevação das almas, elevação do fator espiritual, uma obra para a difusão da fé e o afervoramento da religião.

Compreendia-se que eles eram verdadeiros predestinados; que algum entraria para as fileiras do clero; que outro entraria para as atividades intelectuais, que outro entraria para a direção do país mas que era uma falange de líderes naturais brilhantes e atraentes, que ali se formava. Compreendiam que havia um desígnio de Deus que pousava sobre essa irmandade tão esplêndida.

Então, os admiravam, os queriam, deixavam-se influenciar por eles, seguiam o exemplo deles. Mas este era um exemplo tranquilizador e moralizador. Quem deles se aproximava, mantinha trato com eles, necessariamente sentia forças para vencer a sensualidade, sentia recursos para vencer a preguiça e estudar, sentia atração de alma para as coisas mais elevadas e mais nobres, sentia capacidade de trabalho. Compreendia que a vida não é o corre-corre dentro da trepidação moderna que começava a dominar a cidade, mas é mais contemplação, mais meditação, mais recolhimento; compreendia que é só do fundo do recolhimento, da contemplação que partem as grandes atitudes de alma, portanto, as grandes ações.

Eles compreendiam que um grande futuro resultaria de um modo de viver completamente diferente daquele por onde a ilha ia enveredando. Eram os continuadores espirituais daqueles que não tinham querido deixar a aldeia magnífica e a riqueza inapreciável do panorama daquela zona alpestre.

De outro lado, outros começaram a ficar com inveja: “Que são esses tipos? Que são esses 4 irmãos? Que pensam eles que são? São mais do que nós por quê? Eu não tolero que eles pensem que são mais inteligentes do que eu; ou que pensem que são mais capazes do que eu; ou que pensem que são mais virtuosos do que eu. Eu não admito que ninguém seja mais do que eu. E se eu não conseguir ser mais do que eles, nos estudos eu não progrido muito, mas sou muito inteligente. Os outros não notam, porque eu tenho preguiça de mostrar, mas quando eu resolver mostrar a minha inteligência, vou deixar esses homens na rabeira. Mas, por enquanto, eu, de fato, não sou tão inteligente quanto eles; também não sou tão capaz de agir como eles. Também eu gosto de me divertir um pouco; mas um dia eu vou dar um tranco em mim mesmo, parar com essas diversões e trabalhar sério, e vou deixar esses miseráveis completamente de lado, completamente no chão... Esse tal que faz umas conversas magníficas e todo mundo se reúne porque a palavra dele é de mel, ele é um bobo! Quando eu começar a conversar e contar o que tenho na minha cabeça... Por enquanto eu não conto por que não acabei de pensar bem o que tenho na cabeça. Eu tenho o tempo muito tomado com esporte, vou muito ao cinema, vejo muita televisão, estou tomando um pouco de coca e me vêm umas fumaças na cabeça; dir-se-ia que fico um pouco emburrecido com isso. Eu largo isso daqui a alguns anos. E um dia vou ser mais do que eles. Se eu não for mais do que eles, quero derrubá-los, porque não admito que ninguém seja mais do que eu. Eu tenho que ser o primeiro!

Muitos pensavam assim. Se não tinham coragem de dizer isso uns para os outros, entretanto tinham a coragem de tecer um conjunto de inimizadas contra aqueles, de difamações contra aqueles. E o colégio rachou, cindiu-se em dois grupos de alunos completamente diferentes, representando duas concepções da vida, duas civilizações.

Essa divisão, à medida que os meninos ficavam homens, entravam para a Universidade, essa divisão se acentuou e desde algum tempo se propagou por toda a cidade.

Alguns começaram a dizer: “O que fazemos aqui? Bem-aventurado o tempo em que vivíamos diante do nosso panorama e diante do nosso Deus; éramos menos ricos, mas tínhamos mais saúde; vivíamos no ar puro e não na natureza poluída; éramos calmos, tranquilos, e não neuropatas. Nossos prazeres não tiravam o sono, nosso sono não nos tirava a vontade de trabalhar. Tudo era conforme os apelos de nossa natureza e, sobretudo havia horizonte para nossa alma. Esse horizonte estava na beleza do panorama e, sobretudo, na fé que nos congregava naquela capelinha. Ah! as fotografias que trouxemos de lá! Ah! as saudades do que os mais velhos nos contam! Ah! os tempos passados que não voltam mais, mas que servem de padrão para a normalidade da vida do homem! Nós precisamos mudar a nossa organização, senão nós afundamos dentro do caos, da desordem e da trepidação!

Os outros, pelo contrário, diziam:

“Venha a nós o caos, venha a nós o que você chama de desordem. A vida não é contemplação; a vida é sensação, a vida é trepidação. É gostoso chegar ao fim do dia tendo vibrado tanto que a gente tem que tomar um remédio pesado para dormir. É gostoso acordar de manhã de um sono tão profundo que parece que se vem das entranhas da noite, e se toma um excitante para partir como uma locomotiva vida adentro. A vida é surpresa, a vida é tensão, a vida é matéria, é gozo. Vocês são uns bobos”.

A incompatibilidade tornou-se tão grande que um outro êxodo se tornou necessário. E os habitantes nostálgicos da aldeia, os habitantes de alma contemplativa disseram:

A sua ilha não nos convém mais. Nós vamos àquela ilha distante, ilha desocupada, onde vamos organizar uma vida à nossa maneira. Não organizada perto da primeira queda d’água para montar eletricidade; mas organizada junto à baía mais bonita, onde os mares são mais esplêndidos; o fundo das florestas mais magníficas, onde a natureza é mais bela. Trabalharemos para viver e viver fartamente. Mas nossa vida não vai ser para o trabalho. O trabalho vai ser para nossa vida. Trabalharemos para viver, mas não viveremos para trabalhar. Teremos horas vagas de contemplação, de vida de família, de lazer e, sobretudo, de oração.

Faremos uma vida bem organizada em que nos sentiremos em ordem e medida, e onde cuidaremos muito mais da virtude do que da cultura, muito mais da cultura do que da riqueza material, porque o homem é mais espírito do que matéria. Teremos a virtude dirigindo a nossa vida; teremos uma organização segundo a qual todo mundo viverá segundo a lei de Deus; os que governam e os que são governados; o esposo e a esposa, os pais e os filhos, os mestres e os alunos, os generais e os soldados; tudo viverá de acordo com a Lei de Deus. Não seremos tão ricos como vocês, não seremos tão poderosos como vocês, mas um dia vocês verão que o poder de vocês é fraqueza, que a riqueza de vocês é lama, que o prazer de vocês é angústia. Sigam seu erro só. Nós vamos embora!”. E assim fizeram.

Os da ilha primeira davam risada: “Aqueles caipiras! Organizando uma vidoca naquela ilha. Ninguém trabalha 10 horas por dia, 12, 15 horas, para acumular dinheiro. Os Bancos têm movimento pequeno. Eles parecem que vivem mais para comer do que para se tornar uma grande massa econômica! E vivem tranquilos, gorduchões, satisfeitos. Rezam como uns beatos. Deve ser ‘pau’ aquele lugar”.

Outro diz: - Você foi?Ah! fui. Da vontade de dormir, não vale a pena. Alguém pergunta: - E os hospitais?Ah! são a maior vergonha da ilha. Ninguém adoece. - E os acidentados?Ah! cada um que dirige tem cuidado com a própria vida e a do outro. Lá quase não dá acidente. O pronto-socorro dá conta de tudo. E é quem escorrega em casca de banana que se machuca. Não tem graça nenhuma...

Passam-se os anos, cada um seguindo o seu caminho. Um belo dia, na ilha dos arranha-céus desce alguém, uns homens com um jeito esquisito, não dizendo como chamam, sem passaporte, frequentando botequins, levando dinheiro não se sabe de onde, indo para as casas de prostituição, conversando ali longamente. São agitadores comunistas que chegam, e que começam a pregar a agitação. E a agitação em nome do princípio que tinha levado a cidade a combater aqueles bons irmãos da boa influência, aqueles irmãos privilegiados fundadores da ilha do bem. Era o princípio da igualdade completa. Vocês se lembram? Eles se revoltaram contra aqueles irmãos; não admitam que ninguém fosse mais do que eles; odiavam os irmãos que eram mais do que eles; expulsaram os irmãos, mandaram para uma outra ilha. Depois eles ficaram riquíssimos.

(Dizem os agitadores) Vocês o que são? Você, ascensorista; você, engraxate; você, encanador; você é rico como seu patrão? Você é rico como o banqueiro? Você, criada de quarto, você, camareira de hotel, você ganha tanto quanto sua patroa, ou quanto o hóspede rico para quem você trabalha? Se eles acharam que aqueles irmãos privilegiados era injusto que fossem mais do que eles, por que não é injusto vocês serem menos do que eles? Levantem-se! Revoltem-se! Agitem-se!

E a agitação pegou como fogo naquela cidade...

E os inimigos daqueles irmãos da paz, da ordem, do bem, daqueles irmãos da benção, daqueles irmãos fruto da oração do velho vigário, os inimigos deles, os ricaços dessa geração começaram a se sentir inquietos, agitados. E disseram:

Lutar, nós não lutamos, porque podemos morrer logo e temos medo de morrer. Vamos começar fazer concessões, vamos ceder para ver se abrandamos esses homens.

Concede uma coisa e o agitador comunista diz: Está vendo? Eles cederam porque você deu um rugido. Dê cinco rugidos que eles cedem mais!

Cinco rugidos "populares". Os ricaços, apavorados, dão cinco vezes mais. As agitações se multiplicam.

Agora exijam mais leis liberais, com possibilidade de mais imoralidade, de mais corrupção. Comecem a andar nus! Comecem a vaiar quem não anda nu. Comecem a entrar em todos os lugares, a se servir de tudo; agitem tudo!

O poviléu seguiu. E os donos da riqueza material cederam mais uma vez.

Um belo dia eles se encontraram numa tal miséria, numa tal angústia, que pensaram: Vamos morar na ilha em frente. Quem sabe se aí encontramos, pelo menos aquele bom sossego e aquela boa paz que tivemos a loucura de recusar.

Mandaram um emissário. Os comunistas também mandaram emissários, para revoltar o povo na ilha do bem. Mas na ilha do bem estava todo mundo tranquilo. E quando os comunistas começaram a agitação, o pessoal da ilha retrucou:

Vocês são loucos? Não sabem que basta que cada um tenha o suficiente para viver dignamente, fartamente com sua família, é razoável, que haja desigualdade? Nós nos alegramos em ver que outros são mais do que nós. Porque eles nos ajudam a nos aperfeiçoar, nos ajudam a subir! São nossos guias, que Deus nos deu para executar os planos dEle! Nós os amamos como eles nos amam, nossa ilha não é a ilha do ódio, do caos, da corrupção. Vão embora!

E eles tiveram que sair sob uma vaia popular.

Mais tarde chega outro navio da ilha do caos, da ilha da modernidade, e desce uma série de pessoas. Vestidas supermodernas: cabelamas esquisitas, trajes os mais extravagantes, descem em massa. Agitados, dando risada, pedindo para falar com o prefeito.

- Que é isso? Que agitação é essa? Aqui não cabe nada disso!

- Como não cabe! Viemos trazer dinheiro para vocês, prosperidade! Sacos de dinheiro! Estamos abandonando aquela ilha, porque há ali uns problemas, mas nem vale a pena contar quais são, porque leva muito tempo. Mas viemos morar com vocês.

- Vocês, morarem aqui?! Trazer aqui aquele fermento que preparou a entrada dos comunistas? Fora com vocês! Vão morar em qualquer outra parte do mundo! Vocês trazem consigo um fermento de morte. Nós não queremos!

Ao cabo de algum tempo, aquela ilha se esboroava. Era um imenso campo de concentração, em torno do qual se estabelecia uma cortina de ferro. E entre um ou outro que se via varrendo uma ruela, varrendo a praia, varrendo uma rua perto de um subúrbio de alguma cidade, via-se alguns dos ricaços, via-se o filho de algum daqueles favorável a deixar a aldeia, por ser adepto da agitação do mundo moderno. O comunismo tomou conta de tudo numa ilha, mas não tomou conta de nada na outra.

Então deu-se o choque. Mas na ilha do bem se sabia que o homem vive para Deus. E receberam os comunistas de lança em riste. Não tinham o armamento nem a técnica que os comunistas tinham. Mas tinham a coragem que os comunistas não tinham. Em cada árvore, um guerrilheiro; atrás de cada janela fechada, preparado um homem, com tiros, ou pedras, água quente, ou móveis para jogar em cima de quem passasse. Terreno devastado diante da invasão comunista.

Os comunistas foram embora praguejando e dizendo: Com esses, ninguém pode!

E alguém respondeu:

Sim, porque eles amam os bens espirituais. Amam certamente os bens materiais, mas só para ter tempo e meios para amar os bens espirituais. E nos bens espirituais, amam mais a fé; estão dispostos a arriscar a vida contra vocês. E vocês, que são corajosos frente aos covardes, são covardes frente aos corajosos. Rua com vocês!

E os comunistas tiveram também que sair...

Meus caros, os senhores são os continuadores espirituais daqueles que, no mundo brasileiro feito de tradição lusa, e de tantas outras tradições que aqui aportaram no século passado, de tantos outros países desde o norte da Europa, até o Oriente Próximo e Extremo Oriente, vós todos trouxestes convosco algumas tradições que representam um passado diferente dos dias de hoje.

Muitos trouxeram a fé católica, apostólica, romana, que é o maior tesouro e o maior recurso do país. Unindo-vos, sois os que representam o bem, a tradição, a família e a propriedade; representam sobretudo a fé; os que querem uma civilização em que a alma vale mais do que o corpo, e a fé é reconhecida como a alma da alma. Civilização de homens sensatos, que não vivem para as alegrias da terra, mas na esperança das alegrias do Céu e que, por isso, recebem na terra, com a paz de Deus, no Reino de Deus, o cêntuplo que Ele prometeu aos que O seguem com toda a alma.

Ide e defendei-vos contra as insídias dos filhos da “cidade da terra”, dos que vão atrás do gozo, do dinheiro, do trabalho transformado num ídolo e numa mania, de prazer transformado numa fonte contínua de imoralidade. Porque eles representam o mal que tem que ser derrotado; eles criam a atmosfera dentro da qual o comunismo se desenvolve tanto que parece até irresistível.

O comunismo não é irresistível se encontrar homens como vós para resistir a ele! Homens que confiam em Nossa Senhora! E que sabem que é que é graças a Nossa Senhora Rainha, no Reino de Maria e pelo Reino de Maria, que o comunismo sofrerá a derrota humilhante que, por menos numerosos que sejamos, lhe daremos! Porque Nossa Senhora é apresentada e é a Imaculada Conceição que, com Seu calcanhar, esmaga a cabeça da serpente!


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