Plinio Corrêa de Oliveira

 

Eça de Queiroz:

importância dos ambientes e costumes - 2

A filosofia dos trajes na História da humanidade

 

 

 

Reunião de 25 de junho de 1970

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A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.

Eça de Queiroz: importância dos ambientes e costumes - 1 (segundo ele, o estilo Realista é um “auxiliar poderoso da ciência revolucionária”)

Comentários a um escrito de Eça de Queiroz (Fradique Mendes, Cartas Inéditas, n. XIX, a E. Sturmm, alfaiate)

Este trabalho literário [do Eça] tem até uma contradição muito grande - em determinado ponto eu talvez aponte -, mas tem esse lado interessante: ele afirma a importância do aspecto “ambientes e costumes” no curso da História da humanidade. E enquanto tal é uma confirmação muito grande de uma posição que nós costumamos  tomar e que é de valorizar muito os fenômenos que estão na linha da tendência, conservando na sua margem - sem os eliminar nem de longe - os fenômenos que estão na linha propriamente das idéias e das opiniões [cfr. Revolução e Contra-Revolução, Parte I, Capítulo V - As Três Profundidades da Revolução: Nas tendências, nas idéias, nos fatos].

Há dois comentários para fazer [a respeito do texto que será lido]: o acima dito, e o truque de Eça, a concessão de Eça à Revolução para fazer circular seus escritos. Ele tem um famoso trecho, que infelizmente eu não guardei, em que fala do público português de seu tempo e mostra que sem alguma coisa que seja palhaçada, macacada ou emporcalhada, as melhores peças literárias não tem valor. De onde então, explica, põe essas coisas para fazer circular. E teve uma frase que era mais ou menos esta: o português de hoje não passa de um francês mal falado. E, para fazer aceitar este pensamento, acrescentou o seguinte: em baixo calão. O "baixo calão", dizia ele, não acrescentava nada ao pensamento, mas era o que dava uma espécie de leveza, de nível muito baixo, ao seu dito. De onde, afirmava maliciosamente, até do púlpito já tinha ouvido citar sua frase.

Acrescentava ainda que se fosse apenas uma moeda bem cunhada, com uma medalha e com pensamento acertado, não teria circulação. Mas tendo uma molecada pendurada, o artigo tomava circulação.

[Início da leitura do texto de Eça]

"Meu bom Sturmm, a sua sobrecasaca é perfeitamente insensata. Ali a tenho, arejando à janela, às costas de uma cadeira. E assenta tão bem nestas costas de pau como assentaria nas do comandante das Guardas Municipais, nas do Patriarca, nas de um piloto da barra, ou nas de um filósofo, se houvesse nestes reinos".

O Patriarca, por exemplo, é uma irreverência a la molecada, pois se refere ao Patriarca de Lisboa. Os Srs. estão vendo que colocar o Patriarca de Lisboa,  que é um dos mais altos dignitários da Igreja, que tinha direito de entrar em sedia gestatória na Catedral de Lisboa, usando algo que é vagamente parecido com a tiara, os Srs. compreendem que falar dele junto com o comandante da Guarda Municipal e o piloto... os senhores estão vendo como produz um riso vulgar.

"Quero pois severamente dizer-lhe que ela não possui individualidade. Se você, bom Sturmm, fosse apenas um algibebe [vendedor de ternos já prontos], embrulhando a multidão em pano sedan para tapar a nudez, eu não faria à sua obra esta crítica tão alta e exigente. Mas você é alemão, e de Konisgberg cidade metafísica. A sua tesoura tem parentesco com a pena de Emanuel Kant, e legitimamente me surpreende que você não a use com a mesma sagacidade psicológica.

"Não ignora V., decerto, que ao lado da filosofia da história e de outras filosofias, há ainda mais uma, importante e vasta, que se chama a filosofia do vestuário; e menos ignora, decerto, que aí se aprende, entre tanta coisa profunda, esta, de superior profundidade: que o casaco está para o homem como a palavra está para a idéia".

Os Srs. estão vendo como está bem apresentada a questão.

"Ora, para que serve a palavra, Sturmm? Para tornar a idéia perceptível e transmissível nas relações humanas - como o casaco serve para tornar o homem apresentável e viável através das ocupações sociais".

Muito, muito bem apanhado!

"Mas é a palavra empregada sempre em rigorosa concordância de valor com a idéia? Não, meu Sturmm. Quando a idéia é aborrecida e trivial, ateia-se, revestindo-a de palavras gordas e aparatosas - como as que se usam na política. Quando a idéia é grosseira ou bestial, embeleza-se e poetiza-se,  recobrindo-se de palavras macias, afagantes, canoras - como todas as que se usam nos romances".

Vejam como ele percebe bem o lado grosseiro e trivial do romantismo. Com toda delicadeza e água com açúcar do romantismo, que ele emprega também nas coisas dele, ele percebe a bestialidade que está por detrás. Como ele liquida todo palavreado igualitário e parlamentar do tempo dele; ele dá uma pincelada e liquida.

"Por outro lado, escolhem-se palavras de uma retumbância especial para reforçar a veemência da idéia - como nos rasgos à Mirabeau - ou rebuscam-se as que pela estranheza plástica ajuntam uma sensação física à emoção intelectual - como nos versos de Baudelaire".

O francês ele não critica; ele coloca acima. Mirabeau e Baudelaire... nesses não se toca.

"Temos pois que a palavra opera sobre a idéia, ou disfarçando-a ou acentuando-a. Vai–me você seguindo, perspicaz Sturmm? Tudo isso se aplica exatamente às conexões do casaco  com o homem. Para que talham certos alfaiates ingleses sobrecasacas longas, retas e rígidas, com um debrum de austeridade e ressudando virtude por todas as costuras?"

Debrum é uma fita de seda que vem ao longo da gola e vai para baixo. E que dá à casimira inglesa escura uma nota de solidez. O debrum pede um monóculo, e pelo menos um chapéu coco, quando não uma cartola. É próprio para um comendador e daí para cima, Câmara dos Lordes, etc.

"Para esconder a velhacaria de quem as vestem".

Aquele tempo era o auge da velhacaria inglesa, da expansão por meio de velhacarias e violências do império colonial inglês.

"Você encontra essas sobrecasacas em Londres, nos meetings religiosos, nas sociedades promotoras da moralização dos pequenos patagônicos e nos romances de Dickens. (...)  Disfarçando-o ou acentuando-o, o casaco deve ser a expressão visível do caráter ou do tipo que cada um pretende representar entre os seus concidadãos".

Notem bem: não é o que representa necessariamente; está distinguido muito bem. Mas do que pretende representar. É o anúncio do que o sujeito quer ser e de que, dentro da roupa, mais ou menos ele se esforçará de ser como puder.

"Quem lhe encomenda pois um casaco, digno Sturmm, encomenda-lhe na realidade um prospecto".

Os Srs. viram que pensamento bem feito!

"E nem precisa um alfaiate que aprofundou a sua arte de receber a confissão do freguês. As ligeiras recomendações que escapam, inquietas e tímidas, na hora atribulada da «prova», bastam para que ele compreenda o uso social a que o cliente destina a sua farpela... Assim, se um cavalheiro de luvas pretas, com um luneta de ouro entalada entre dois botões do colete, que move os passos com lentidão e reflexão, e, ao entrar, pousou sobre a mesa um número do Jornal do Economista, lhe diz, num tom de mansa reprovação, ao provar o casaco: “Está curto e justo de cinta”, você deve logo deduzir que ele deseja aquelas abas bem fornidas, flutuantes, que demonstram abundância de princípios, circunspecção, amor sólido da ordem e conhecimento miúdo das pautas da Alfândega".

É o conservador burguês do tempo da monarquia decadente, perfeitamente descrito. É o nouveau-riche que fez dinheiro com importações, com coisas de alfândegas e quer dar ares de sério, bem posto na vida, graduado, etc., mas que de fato só entende da alfândega. É a imitação do aristocrata.

"Vai você penetrando, meu bom Sturmm? Ora, que lhe murmurei eu, no meu mau alemão, ao provar a sobrecasaca infausta? Esta fugidia indicação: “Que cinja bem!” Isto bastava para você entender que eu desejava, através desta veste, mostrar-me a Lisboa, onde a ia usar, sinceramente como sou - reservado, cingido comigo mesmo, frio, céptico, inacessível aos pedidos de meias libras... E, no entanto, que me manda você, Sturmm, num embrulho de papel pardo? Você manda-me a sobrecasaca que talha bem para toda a gente em Portugal, desgraçadamente: a sobrecasaca do conselheiro! Digo «desgraçadamente» porque vestindo-nos todos pelo mesmo molde, você leva-nos todos a ter o mesmo sentir e a ter o mesmo pensar".

Aqui está a frase! Porque ele vai levantando a demonstração dele de modo velado, e arrastando o leitor de princípios a princípios, sem que o leitor perceba. Ele vai velando, falando, de repente lança um ponto: que a roupa é o prospecto do indivíduo. Mais adiante ele faz uma afirmação mais profunda: é uma espécie de libré que externa o que o sujeito pensa mas ao mesmo tempo modela o que ele deve pensar.

Aqui está o fundo da filosofia que ele quer dar. Mas com muita arte, com muita lábia, parecendo brincar, ele vai semeando a idéia sem que o indivíduo, [mesmo] muito destro, perceba que está havendo uma demonstração. Pensa que vai indo de "blague" em "blague", de brincadeira em brincadeira. De fato ele está fazendo uma obra, se os Srs. quiserem, de transbordo ideológico inadvertido [vide a obra "Baldeação ideológica inadvertida e Diálogo"]. Porque não é uma demonstração rigorosa,  mas é a criação de um estado de espírito. E na ponta da seringa entra a injeção. E idéia certa, aliás, porque ele tem razão no que está dizendo.

"Nada influencia mais profundamente o sentir do homem do que a fatiota que o cobre".

Aí, naturalmente, está um pouco exagerado. Mas os Srs. vêem até onde ele leva este princípio, e às vezes é. Há casos em que isto é assim.

"O mais ríspido profeta, se enverga uma casaca e ata ao pescoço um laço branco, tende logo a sentir o encanto das (damas) e da valsa. E o mais extraviado mundano, dentro de uma robe de chambre, sente apetites de serão  doméstico e de carinhos ao fogão. Maior ainda se afirma a influência do vestuário sobre  pensar. Não é possível conceber um sistema filosófico com os pés entalados em escarpins de baile, e um jaquetão de veludo preto forrado a cetim azul leva inevitavelmente a idéias conservadoras".

Sala São Luís Grignion, na então sede do Conselho Nacional da TFP brasileira, hoje sede do Instituto Plinio Corrêa de Oliveira

Razão pela qual exatamente a Revolução faz a mudança de trajes. Há aqui uma afirmação muito fraca: que o indivíduo não pode fazer filosofia com os pés metidos num sapato de alta categoria não é verdade. Pelo contrário, quanto mais alta a categoria das coisas em que o homem está, mais ele se sente levado a alturas de pensamento. Isso é uma coisa evidente. Se um de nós tivesse que escrever um artigo bem feito em um ambiente vulgar ou na "sala São Luís Grignion" da sede da Rua Maranhão, o artigo sai muito mais bem feito em tal sala. Esta observação dele é fraquíssima.

"Você, pondo no dorso de toda a sociedade essa casaca de conselheiro - lisa, insípida, rotineira, pesabunda -, está simplesmente criando um país de conselheiros! Dentro desta contenção banalizadora e achatante o poeta perde a fantasia..."

Os Srs. estão vendo como ele velhacamente põe a idéia niveladora, como  fala contra a estandardização sem dizer. Porque banalizador e achatante é bem o nivelador. Ele não quer se mostrar anti-igualitário; ele tem medo de se mostrar anti-igualitário. Mas ele solta entredentes seu pensamento.

"Dentro desta concepção banalisadora e achatante o poeta perde a fantasia, o dandi perde a vivacidade, o militar perde a coragem, o jornalista perde a veia, o crítico perde a sagacidade, o padre perde a fé. Perdendo cada um o relevo e a saliência própria, fica tudo reduzido a esse cepo moral que se chama o conselheiro! A sua tesoura está assim mesquinhamente aparando a originalidade do país!"

Vejam que frase bem feita! O traje standard apara a originalidade do país. Que filípica maravilhosa contra as fábricas de roupas padronizadas e contra a supressão, o prodigioso processo de despersonalização que existe na supressão, que vai se dando nos alfaiates, para só ficarem fabricantes de roupas feitas. É exatamente o homem em série que precedeu a roupa em série mas cuja despersonalização é agravada pela roupa em série.

Luís de Camões. Gravura em cobre de Fernando Gomes. É o único retrato do poeta reproduzido do natural

"Você corta, em cada casaca, a mortalha de um temperamento".

Vejam que frase magistral!

"E se Camões ainda vivesse - e você o vestisse - tínhamos em lugar dos Sonetos, artigos do Comércio do Porto".

  É uma obra-prima, não é? Mas que termina com um dito baixa de nível, numa gargalhada popularesca: é o Comércio do Porto... A toda hora os Srs. vêem aparecer por aqui coisas popularescas. "Carinhos ao fogão"... A toda hora, junto com um pensamento elevado, os Srs. percebem um pé de pato ou um pé de sapo que aparece, mas que não entra sem um certo sabor de Portugal daquele tempo e que de outro lado ajuda o leitor superficial, trivial, ajuda o leitor a carregar mais ou menos o sério do artigo, que sem isto o leitor revolucionário não carregaria. Não sei se está claro isto ou não.

A meu ver, é uma magistral lição de "ambientes e costumes".


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