Plinio Corrêa de Oliveira
Renascença
Parte III
Reunião Extra, realizada em 1966, s/d (fim) |
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* Para podermos penetrar no fundo da modificação psicológica que a Renascença trouxe à alma humana, é preciso compreender a noção de transcendência Para podermos penetrar no fundo da modificação psicológica que a Renascença trouxe à alma humana, precisamos analisar, desde logo, a noção de transcendência. Tomemos, inicialmente, para sermos mais claros, alguns exemplos. Imaginemos uma partícula de granito tão pequena, que possa o seu tamanho ser comparado a um grão de poeira e admitamos, por hipótese, que o Pão de Açúcar seja também constituído inteiramente de granito. Qual seria a relação existente entre esse fragmento mínimo de granito e o Pão de Açúcar? A relação é a de uma coisa ínfima em face de uma outra da mesma natureza, mas numa desproporção quantitativa esmagadora. A massa de granito existente no Pão de Açúcar é imensa; a que existe na partícula, insignificante. Como quantidade a desproporção é colossal, porém, como qualidade não há desproporção alguma, pois ambos são constituídos da mesma matéria. Há uma diferença enorme, mas ela não é transcendental, pois não situa o Pão de Açúcar num nível qualificativo diferente do nível da pequena partícula. Assim, dentro dessa ordem de coisas, a transcendência é aquela superioridade especial que tem uma coisa sobre a outra, pelo fato de ser intrinsecamente de uma qualidade totalmente diversa. Mesmo entre seres que se transcendem uns aos outros de um modo radical, existem determinadas analogias. Uma planta, qualquer que ela seja, transcende à pedra, que é de natureza mineral. Suponhamos, por exemplo, um legume, o repolho, e tomemos a mais preciosa das pedras, um brilhante. Por maior que seja o valor do brilhante, é bem evidente que repolho, qualitativamente, vale mais. O repolho é um ser vegetal, com vida, e o brilhante é um mineral inerte. Como uma planta transcende a um ser mineral, um animal transcende a planta, e o homem, animal racional, transcende ao simples animal. Podemos, entretanto, encontrar em todas as categorias determinadas analogias. Ao lado da pureza de um cristal existe a pureza do lírio, que, como ser, transcende o cristal. Do mesmo modo podemos considerar a pureza da pomba que, por ser animal, transcende o lírio. E, finalmente, há a pureza de um homem, que, como ser, transcende a pomba. Analogicamente pois, encontramos a noção de pureza aplicável a vários seres. Da mesma forma com relação à noção de distinção. Com efeito, a distinção de uma pérola é análoga, mas de uma outra natureza, à distinção de uma rosa. A distinção da rosa, todavia é diferente e inferior à distinção do faisão, que é um ser superior. E, superior ainda à do faisão, temos a distinção de uma princesa. A distinção é também um conceito que analogicamente se aplica a seres de categorias diversas. Se um cristal fosse capaz de pensar poderia ele imaginar a existência de um ser de uma natureza superior à sua? Seria capaz de conhecer a pureza do lírio? Ele compreenderia o que tem de semelhante a este, mas deslumbrar-se-ia com a pureza do lírio, porque comparada com a dele, é uma pureza qualitativamente muito superior. Do mesmo modo se o lírio fosse capaz de pensar. Conhecendo ele a pureza da pomba, se entusiasmaria. Assim também se a pomba pudesse pensar, ao conhecer a pureza de uma alma humana, como por exemplo, a de uma Santa Maria Goretti, entusiasmar-se-ia ainda muito mais. Qual a explicação disso? É que a mesma pureza que ela possui está realizada num ser de categoria superior, de um modo mais eminente, mais pleno, muito mais brilhante, próprio a uma outra esfera de realidade. * É próprio do homem conhecer o que é transcendente Ora, o homem é de todos esses seres o único capaz de pensar, tendo capacidade para através do pensamento chegar a compreender, em primeiro lugar, a sua transcendência em relação a todos os seres que estão abaixo dele, e em segundo lugar, também a possibilidade da existência de uma ordem de seres que transcende a ele mesmo e que lhe seja muito superior. Dessa forma ele compreende a ideia de um Deus em quem todas as qualidades, todas as perfeições, todas as excelências possam existir de um modo personificado, perfeito e absoluto. A alma humana, portanto, tem essa qualidade. A consideração dos seres que estão em torno de nós pode nos causar um certo prazer, mas o simples fato de podermos imaginar uma ordem de seres mais perfeita do que essa que vemos, acende em nossa alma uma apetência muito grande por essa realidade transcendente. Isto é próprio do homem. Imaginemos para exemplificar o que afirmamos, crianças que estejam brincando com um trenzinho de ferro muito bonito. Horas se passam naquele divertimento. Mas surge alguma outra criança, que diz conhecer um outro menino, possuidor de um trenzinho igual, mas que, ao mover-se a locomotiva, bate um sino. Imediatamente o trenzinho com que há pouco as crianças brincavam maravilhadas, fica sem graça. Há um outro melhor e daí aparece logo o desejo de possuí-lo. Ora, da mesma forma, basta concebermos uma ordem de realidade mais alta do que a em que estamos, para se acender em nós um apetite por essa mesma ordem. Assim é que no homem existe uma espécie de sede insaciável de algo ainda mais perfeito, mais alto, mais transcendente. Ele é capaz de vislumbrar pela inteligência outros mundos, outras realidades, outras perfeições, outros firmamentos, que normalmente não tem diante de si. * Misticismo católico, panteísmo e satanismo Isto que a inteligência ou o estudo revelam, nós sentimos muitas vezes quando nos concentramos diante de certos panoramas da natureza e os contemplamos. Usando aqui uma linguagem especial, que é defeituosa, mas que serve para exprimir o que queremos, poderíamos tomar a palavra misticismo, não no sentido preciso em que a Igreja o emprega, mas no sentido da linguagem corrente. Chamaríamos então de misticismo, ou de tendência mística do espírito, a existência no homem desse apetite de alguma coisa que está além da ordem visível e além da ordem natural. Este misticismo se manifesta nas almas de três modos principais: o misticismo católico – o misticismo por excelência – o panteísmo e o satanista. No satanista, o homem decepcionado e degradado pelos vícios, mas procurando de qualquer maneira contacto com realidades mais vivas e mais interessantes do que as dessa terra, entra em contacto com o mundo das sombras, do pecado, da mentira e às vezes da fraude. O misticismo panteísta aparece muito claramente em Wagner. Em suas músicas há um fundo de orquestração, combinado com uma espécie de jatos sonoros que constroem toda uma ordem de grandeza e de força, que passa repentinamente do extremo vigor, para a delicadeza mais terna, mais extremada. Logo após vem a alegria, e a seguir uma melancolia pesada. Na base de sua música, Wagner não explora sentimentos puramente naturais, mas forças existentes, porém não muito aparentes, na natureza. O misticismo católico, que é o único verdadeiro, sacia completamente a nossa alma, porque nos fornece, a respeito da outra vida, por meio da Revelação, ensinamentos que satisfazem completamente ao nosso espírito. Apresenta-nos além disso um quadro de nosso destino, de nossa finalidade última, que também é inteiramente feito para a natureza humana. Sugere-nos uma ideia da santidade, da perfeição, uma ideia de todas as realidades inteiramente satisfatórias para nós. Mas, há algo mais importante. Todas essas realidades transcendentes, que nos outros sistemas ameaçam ficar um pouco no terreno do vago, do impalpável, na doutrina católica se personificam. Tudo quanto o homem pode imaginar de uma ordem transcendente mais bela, superior, mais extraordinária, mais perfeita, na doutrina católica, por assim dizer, transluz, na pessoa adorável de Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, em quem todas as perfeições imagináveis residem por excelência e em cujo vulto humano temos como que uma espécie de conduto sensível, para perceber perfeições e maravilhas que de nenhum outro modo o homem poderia perceber. Além de Jesus Cristo, temos a Igreja Católica, Sua esposa Mística. Qualquer de nós terá isto sentido quando, por exemplo numa igreja, construída num estilo genuinamente católico, se ouve no recinto sagrado o som de um belo órgão; o culto católico, ordenado e sóbrio, aí se desenrola em toda a sua pompa e esplendor. Sentimos, em torno de nós, o calor da piedade de todos os fiéis reunidos, que sobe aos céus. Esse conjunto de coisas transporta o nosso espírito para muito além das realidades terrestres. E então, como não se trata de mentiras abomináveis como o misticismo satânico ou erros condenados como o panteísmo, mas da verdade plena, o homem que tem a felicidade de ter a Fé, se entrega a isso sem limites. Como uma pessoa sedenta que finalmente chega à abundância plena de todas as águas, assim o fiel católico ao contemplar as belezas insondáveis da Esposa Mística de Cristo: é só fartar-se, porque aquela é a água verdadeira de que Nosso Senhor falou no Evangelho. A Idade Média foi, no sentido que demos à palavra misticismo, uma época eminentemente mística. Sobretudo do verdadeiro misticismo, que é o católico, mas também do misticismo diabólico. As explosões de satanismo, na época medieval, são muito freqüentes e palpáveis. Toda a concepção do homem daquele tempo era como que banhada pela ideia de uma outra vida e de uma ordem superior à ordem natural, que mais ou menos dominava toda a sua vida e a ordenava. * A Renascença é a ausência quase completa de qualquer misticismo. O homem é naturalista e corta a tendência para o transcendental Com a decadência da civilização medieval, sobrevém o primeiro marco do processo revolucionário: a Pseudo-Reforma e o Renascimento. Iremos estudar aqui, mais detidamente, a mudança de mentalidade que sofreu o homem medieval, com o advento dos princípios renascentistas. Toda concepção do homem medieval, como já vimos, estava baseada na ideia da existência de uma outra vida e de uma ordem de coisas superior. Mas o que propriamente caracteriza a Renascença é a ausência quase completa de qualquer misticismo, sobretudo em confronto com a Idade Média. Ao invés de procurar sempre uma ordem transcendental, vendo todas as coisas à luz de um anelo para essa ordem, o homem renascentista apenas compreende aquilo que ele pode ver e sentir de um modo natural. Esta tendência do homem para o transcendental, corta-se. Ele não quer mais saber de uma ordem transcendente, ficando estritamente dentro do terreno da natureza. Retrato fiel de homens que concebiam a existência de uma ordem de coisas superior, aparece em quadros de Fra Angélico, que é, pelo seu espírito, caracterizadamente um pintor medieval. Ele representa em suas pinturas pessoas imbuídas de uma luz, de uma claridade, de uma leveza, que não encontramos na vida real e que nos falam de uma ordem transcendente. Outros exemplos são as figuras esculpidas nos portais das catedrais medievais. Mesmo em cenas representando pessoas que trabalham percebe-se que são homens com o espírito povoado por ideias de uma ordem superior, o que lhes confere dignidade, equilíbrio, recolhimento e uma total preponderância da alma sobre a matéria. Nas obras de arte do Renascimento vamos encontrar algo muito diverso. Tudo nos fala apenas desta vida e desta natureza. Ao representarem um fundo de quadro paisagístico, a cena é pura e simplesmente a descrição da natureza. Descrição por vezes muito fiel, pouco interpretada, mas em que nada nos fala de outras coisas, nem de outras realidades. É apenas aquilo, a natureza e nada mais. Se analisarmos uma figura humana, como uma Madona de Rafael, constataremos o mesmo fenômeno: ela personifica uma senhora muito amena, dotada de um excelente gênio, de costumes muito puros, de um trato agradável, porém, não temos a impressão de um ser celeste. A pintura nos dá a ideia de uma esplêndida pessoa desta terra. No Moisés de Miguel Ângelo vamos encontrar o mesmo fenômeno. A escultura nos apresenta um possante italiano, inteligente e capaz, com um desdobramento enorme de personalidade. Mas, nada nos faz sentir o Moisés da Bíblia, o homem que banhou seus olhos numa claridade sobrenatural e que teve contato com uma ordem que transcende o homem. * A posição puramente naturalista do homem renascentista teve, como conseqüência, um desejo desenfreado de gozar a vida, mas de todos os modos e por todos os poros Ainda quando pintavam ou representavam cenas sobrenaturais, os renascentistas não espelhavam senão a natureza. Esta posição tem, necessariamente, um reflexo. Quando o homem se coloca nesta atmosfera, excluindo completamente o transcendente, os valores sobrenaturais e a vida eterna, de duas uma: ou a vida se torna para ele insuportavelmente penosa ou ele se engolfa inteiramente nos prazeres. A ideia de um fim satisfaz por completo a alma humana e a anima a fazer coisas desagradáveis. Deixando o homem de crer nessa finalidade última, certamente descamba para a imoralidade. Se só a natureza que nos rodeia existe, chegamos forçosamente à conclusão de que a única coisa que ela apresenta de sólido, de agradável, são os sentidos. Trata-se, portanto, de gozá-los ao máximo, já que inexiste outra ordem de realidade. Assim, esta posição puramente naturalista do homem renascentista teve, como conseqüência, um desejo desenfreado de gozar a vida, mas de todos os modos e por todos os poros. E é este mais um dos traços que encontramos tão marcados na Renascença. Na realização desse desejo desenfreado encontramos caudais diferentes. Há vários modos de gozar a vida. As pessoas alegres, dotadas de bom humor, fazem-no de pandeiro na mão. As melancólicas e tristonhas realizam este desejo através de uma vida em que o choro e as lamentações têm importante papel. É, aliás, um modo muito do gosto do temperamento brasileiro. Há, portanto, ao lado da maneira foliã de gozar a vida, a escola chorosa, daqueles que se comprazem na consideração xaroposa e indefinível de dores, que ele próprio desenvolve. Esta maneira pode chegar, às vezes, até o trágico, pois há quem goste de fazer da vida um grande drama. Encontramos o gosto pelo drama, na Renascença, não só no caráter um tanto soturno de Miguel Ângelo, mais ainda no trágico decidido de Leonardo da Vinci, onde se vê, mesmo, aparecerem as primeiras labaredas do inferno. Ao lado disto, existe um outro filão, pouco freqüente na Renascença, mas muito característico do século XIX, que se compraz na vida de todos os dias. É o burguês, que goza a vida capitalizando lucros, engordando em todas as juntas e superfícies de seu ser, empilhando sacos de ouro, e à noite, dormindo em camas de madeira, com grandes edredons e linho esplêndido, tendo ao lado do criado-mudo, a vela e o gorro, como nos apresenta a litografia do século XIX. Ele vive o quotidiano, não quer saber de romantismo. Não se deixa levar nem por tristezas, nem por alegrias muito extremadas, pois o que ele goza é a vida de todos os dias, o normal, o lucro, o prazer do bom senso puramente naturalista. Na Renascença, porém, o tipo mais freqüente é o do homem que goza a vida através da alegria cortezã, ao som do violino, do alaúde, e mais tarde, do cravo. O esplendor da vida alegre é que o atrai. * Restos da tradição medieval a serviço do naturalismo renascentista: entre eles, o apreço pela inteligência Para o renascentista o gozar a vida supõe, antes de tudo, inteligência. Ele não conceberia o gozá-la com uma bebida qualquer, à maneira hollywoodiana. Por uma tradição medieval, ele ainda é inteligente. E a inteligência, que já foi desligada de suas fontes – pois sem misticismo não há inteligência –, vive ainda mais ou menos como uma trepadeira, a quem cortada a base, durante algum tempo continua ainda a ter vida e até a desabrochar alguns botões, antes de fenecer completamente. Pela estrutura da Renascença e da alma do homem daquele tempo circula ainda alguma seiva. por isso ele é inteligente, e compreende a superior satisfação que se encontra no pensar, entendido no sentido pleno e robusto da palavra. Não se trata deste pensamento hodierno que mais se parece com a respiração de um doente. Com efeito, assim como há modos diferentes de respirar, há distintas maneiras de pensar. Um velho agonizante numa Santa Casa de Misericórdia, respira. Mas é um fio apenas de oxigênio que lhe entra pelos pulmões, metabolismo já difícil e prestes a acabar. Assim é o pensamento moderno. Não conseguindo parar de pensar o homem do século XX apenas intui. Com um certo esforço, surge, às vezes, um lampejo e dirá, então, que teve um palpite. São fiozinhos de pensamento, nos pulmões doentes de seu cérebro; são os últimos restos da inteligência humana que ainda funcionam. Na Renascença o pensar era um pensar de pulmões cheios. Gostava-se de julgar, analisar e comparar. Hoje, raros são os que analisam, e quase inexistentes os que comparam. E quantos possuem o cerne do pensamento, o juízo? Ao contrário, o homem moderno não julga, prefere concordar, tudo aceitando. * Começa a decadência: o homem não mais pensa para encontrar a verdade, mas pensa pelo prazer de fazer brilhantes raciocínios, à busca de bonitos panoramas da vida intelectual Se, porém, o homem renascentista ainda gostava de pensar, era porque tinha uma velocidade imprimida pela Idade Média. Ele entendia, contudo, o pensamento como uma fonte de diversão. Nisto é que começa a decadência. Não mais se pensa para encontrar a verdade, mas pelo prazer de fazer brilhantes raciocínios, de dizer bonitas frases, de fazer agradáveis excursões por uma ordem de coisas mais elevada. Por isso, o intelectual renascentista não é mais um guia que leva os homens para o conhecimento da verdade, mas um cicerone que os conduz a ver bonitos panoramas da vida intelectual. Começa assim a florescer não mais o gosto das ideias claras e bem ordenadas, como na escolástica, mas o dos autores avulsos e das belas frases. Era muito bonito conhecer-se frases soltas. Como conseqüência surge o "belo espírito", que não era o homem sábio, conhecedor da verdade, mas o espírito rutilante, que enriquecera a sua alma no conhecimento de determinadas coisas. Este "belo espírito" já não tinha mais o desejo sério de conhecer a verdade. Em conseqüência da concepção naturalista de vida do homem renascentista, o cultivo dos valores da inteligência constituía para ele um ponto de honra. É preciso notar, contudo, que os efeitos desta concepção de vida não se restringiam apenas ao espírito. * Fisicamente, também, o renascentista devia ser um homem perfeito Fisicamente também, o renascentista devia ser um homem perfeito. Não se admite um herói renascentista doente. Francisco I, com dor de dente ou nevralgia, não seria Francisco I. Ele precisa ter saúde de ferro, contextura física esplêndida, ser ótimo caçador, correr horas, abater javalis como quem mata formigas, saltar do cavalo, encontrar uma dama, fazer uma reverência e cantar um madrigal; logo após passar por uma ânfora antiga e improvisar um verso a este respeito; banquetear-se, levantar da mesa e ir dançar como se nada tivesse comido; e, à noite, dormir um sono tranqüilo como se não tivesse tido durante o dia excitação alguma. Eis o tipo clássico do renascentista. E, muitos, eles os tiveram assim. Quase todos os reis de França, por exemplo: grandes caçadores, guerreiros exímios, esplêndidos bailarinos, ótimos conhecedores de toda espécie de literatura e, em suas horas vagas, reis também. Que vigor de personalidade isto supunha! Quão diferente, em nossos dias, o tipo que absorve uma bebida qualquer no estilo hollywood! Fisicamente alto – a pediatria esmerou-se por fazer dele o quanto possível uma torre –, robusto – sem ser gordo, pois que o esporte retifica este inconveniente –, perfeitamente bem constituído, bem vitaminizado, mas, por um mistério que caberá aos biólogos decifrarem, cansa-se e se enerva facilmente. Se, por um lado, ele é muito exuberante para a vida física, a vida mental o encontra bem mais anêmico e raquítico. Dir-se-ia que o corpo roubou qualquer coisa à alma, e algo de muito necessário. O renascentista, ao contrário, é um tipo brilhante, inteligente, conversador, que tem, na vida, uma obrigação de riso permanente. Há diferentes modos de rir e poder-se-ia, mesmo, fazer a História através do riso. Há o riso discreto, o riso vulgar, a gargalhada boçal. O do homem da Renascença deveria ser um riso olímpico, riso prateado, cheio de orgulho e de condescendência que sai dos lábios como uma música e repercute agradavelmente pelos lustres e pelos espelhos, sem cair até o chão. Disto estão repletos os quadros que a Renascença nos legou: uma atitude superior, sobranceira, desdenhosa e otimista em relação à vida, ao lado de uma forma de prazer que reflete gozo desta terra. Os salões tomam cada vez mais aspectos festivos e, em lugar de passarem com a Renascença, atingirão o seu paroxismo no rococó. Tais homens não podiam compreender uma superfície lisa. Cada milímetro tinha de ser aproveitado: anjinhos, cupidos, flores, frutos, cornucópias. Não se conhecem mais as linhas retas; as curvas imperam. Por seu lado, as cores são cada vez mais delicadas, e, no rococó, surgem os cor-de-rosa muito delicados, os azuis quase brancos, os verdes cor de água. A par disso a atitude do homem é, em relação à vida, sempre mais festiva, mais alegre e lampeira. Nisto nota-se o que há de mais característico na alma renascentista. Naturalmente, em meio da tudo isto, vai deixando de existir a ideia de santidade. Todos os homens, porém, têm coisas que eles reputam como ideais. E os tipos representativos da sociedade, em lugar de serem santos, passam a ser pessoas dotadas daquilo que o renascentista chamava de "virtude", e que o homem dos séculos. XVII e XVIII veio a chamar de "honestidade". A virtude, como eles a entendiam, não se encontra mais no homem bom, que caminha para a sua verdadeira finalidade, mas naquele que é capaz de ganhar as grandes corridas da vida. * A superação quantitativa sucede à noção de transcendência: reflexos na política renascentista e aparecimento do nacionalismo Admirável, na Renascença, é o homem muito inteligente, agradável, alegre, em extremo brilhante e que possui a arte da conversa. Se é rei, exige-se que seja um bon-viveur, o primeiro organizador do ballet perpétuo da vida do seu reino; deve ser bem falso, dominador e bem severo, mas paradoxalmente, indulgente para com certos vícios. Esta a figura do rei perfeito. Havia disto a versão feminina, a rainha perfeita: majestosa, bela, distinta, inteligente, faceira e vaidosa. Não se exigia dela que fosse tratar dos pobres, como o fazia Santa Isabel da Hungria, nem que fosse boa dona de casa, o que era ofício da criadagem. Bastava que fosse um perfeito bibelô de salão. O mesmo deveria dar-se, a seu modo, em todos os graus da estrutura social. Este modo de ser tem uma repercussão política curiosa. Se se toma como princípio que o homem completo é o possante, o dominador, todo o rei, para ser perfeito, necessariamente deve pôr toda a sua glória na guerra, que se apresenta, para o renascentista, não como um desastre, mas um modo de realizar este ideal. Portanto, a guerra não será mais um ato que pode envolver pecado (a guerra justa é virtude; a injusta é pecado), mas uma brilhante aventura e quase um ato social onde, levado pelo otimismo, está-se mais ou menos certo que não se morrerá. O rei não seria digno do cargo se não caminhasse para a batalha certo da vitória. Por isso, ele vai à guerra, levando a corte, as senhoras, baixelas de ouro, prataria, toalhas de seda e rendas, e até orquestra. Então, quando ele realiza um grande cerco, todas as senhoras, esposas e noivas dos oficiais, vão apreciar de uma certa distância os belos feitos. As batalhas tomam o aspecto de uma bonita cavalgada, em que o rei mostra-se olímpico ganhando a guerra. Se a vencer, merecerá a honra. Se a perde, a desonra. Se a guerra é justa, é do que não se cogita, pois o feito brilhante é o que interessa. Nasceu, então, o militarismo e o nacionalismo. A ideia da autêntica fraternidade entre as nações cristãs desaparece. * Em termos de política interna, esse mesmo espírito não concebe respeito nem admiração pelos mais fracos Em termos de política interna, esse mesmo espírito tem outras manifestações. Neste tempo de admiração do homem olímpico, não se concebe respeito nem admiração pelos mais fracos. O rei olímpico não se sente obrigado a defender os direitos dos súditos. Pelo contrário, o próprio dele é ser o homem que consegue esmagar todos os outros. Se há grandes senhores no seu reino, precisa esmagá-los para provar que é poderoso. Se há cidades ou corporações autônomas, precisa reduzi-las à escravidão para provar que é um triunfador. Se há restos de liberdade, ele extingui-los-á para mostrar que seu poder é colossal. E, enquanto ele domina, todos o admiram. * Do estado de espírito olímpico brotou o absolutismo e veio o ocaso da sociedade orgânica medieval. E com isto, a igualdade Deste estado de espírito olímpico, devia brotar necessariamente o absolutismo e originar-se o ocaso da sociedade orgânica medieval. Na justaposição destes vários elementos, surge ainda uma outra constatação. Isto não conduz apenas à destruição da liberdade, mas à igualdade também. Pois o homem olímpico detesta toda hierarquia que existe abaixo dele, e é levado, em conseqüência, a destruí-la, nivelando tudo. E por isto, Luiz XIV, que, embora tenha sido posterior à Renascença, a encarna em muitos dos seus aspectos, teve, segundo nos conta Saint-Simon, a preocupação constante de nunca dar grandes cargos públicos a nobres, mas só a plebeus. A razão dada era que se nomeasse um nobre para um cargo público, este não dependeria muito do rei, pois com o cargo ou sem o cargo ele era um nobre. Mas se nomeasse um plebeu, a dependência seria total, pois, sem o cargo público, este não era nada. * Conclusão Olimpismo, naturalismo, complacência para consigo mesmo; no plano político totalitarismo, nacionalismo exacerbado e espírito beligerante, eis algumas características marcantes do espírito da Renascença. A partir da Renascença, outras épocas históricas, com suas características específicas, foram-se sucedendo, até os nossos dias. As manifestações do espírito peculiar a cada uma dessa fases históricas, entretanto, tem um denominador comum: a volúpia pelo gozo da vida, e a perda do senso da transcendência, que fez a glória da Idade Média e que a Humanidade, sob o influxo da Revolução, não tem feito senão calcar aos pés. |