Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Conferência em Bragança Paulista
"Reforma Agrária - Questão de Consciência"
 

 

19 de agosto de 1963

 Locutor: tem a palavra o Presidente da Associação Bragantina de Imprensa, sr. William Gonzaga Cardoso:

Senhores presentes, ilustre conferencista Dr. Plinio Corrêa de Oliveira, Mons. Farah, DD. Vigário da Sé Catedral, meus senhores e minhas senhoras associados da Associação Bragantina de Imprensa, ouvintes da VYM9, Rádio Bragança. Na noite de hoje trazemos a este Clube, que tantas vezes tem cooperado com as iniciativas da associação Brasileira de Imprensa, para dirigir a palavra ao público bragantino o eminente advogado  Dr. Plinio Corrêa de Oliveira que, além de suas qualidades como católico, conhece com profundidade os problemas nacionais, especialmente aquele que se refere à reforma agrária. Em rápidas palavras desejamos apresentar o conferencista aos presentes, falando um pouco de suas obras. Além de advogado o Dr. Plinio é professor catedrático da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, tendo ainda exercido o cargo de deputado federal por São Paulo durante a Constituinte. De suas inúmeras obras literárias, encontramos o livro “Em Defesa da Ação Católica”; através do qual recebeu uma carta de louvor enviada em nome do Santo Padre Pio XII, pelo atual pontífice, então Cardeal Montini. Em 1959 escreveu o ensaio “Revolução e Contra-Revolução”, com larga repercussão no Brasil e no exterior, já editado em espanhol e francês. Porém, de todas as suas obras, a que vem demonstrar seu alto espírito de entendedor e estudioso dos problemas sociais, foi a que escreveu em 1960 quando, juntamente com o Exmo. Sr. Arcebispo de Diamantina, Dom Geraldo de Proença Sigaud, Dom Antonio de Castro Mayer, bispo de Campos, e do economista Luiz Mendonça de Freitas, lançou às vistas dos brasileiros o livro "Reforma Agrária - Questão de Consciência", obra esta que, sem dúvida alguma, trouxe novas perspectivas e diretrizes para o problema da agricultura brasileira. "Reforma Agrária - Questão de Consciência" obteve larga repercussão, não só entre nós, como ainda na França, Portugal, Argentina, Espanha e outros países, dado o seu caráter e seu estilo de estudo político social da lavoura, baseado no princípio da defesa da propriedade privada, fundamentando-se ainda em que, para que o instituto da propriedade privada realize sua função social, cumpre fortalecê-lo e prestigiá-lo, nunca debilitá-lo.

Componente do grupo internacional conhecido como "Catolicismo", colabora amiudamente no jornal do mesmo, sempre tendo em vista os princípios evangélicos e as encíclicas dos Sumos Pontífices.

Nestas rápidas palavras poderão, aqueles que nos ouvem, ter uma idéia de quem seja e quais as qualidades que norteiam o espírito do Dr. Plinio Corrêa de Oliveira. Após a explanação do ilustre conferencista, poderão os presentes debater com o mesmo, fazendo as perguntas por escrito, ou se preferirem, oralmente. Pedimos que as questões apresentadas subordinem-se ao tema da conferência, ou seja, "Reforma Agrária – Questão de Consciência". 

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Exmo. e Revdo. Mons. Farah, vigário geral, Exmo. Sr. Presidente da Associação, Revdos. Srs. sacerdotes, minhas senhoras e meus senhores.

É com muita satisfação que aceitei o amável convite dessa sociedade, para vos dirigir a palavra a respeito do tema “Reforma Agrária - Questão de Consciência”, uma vez que é sabido o peso e a importância da zona a que pertenceis, no conjunto das atividades tanto culturais quanto econômicas do Estado de São Paulo.

Estou certo que a palavra a vós dirigida pode concorrer de modo substancioso para a boa orientação da opinião nacional.

Conversando ainda há pouco com o Exmo. Sr. Bispo D. Maurício da Rocha, o grande prelado que a Providência colocou à testa de vossos destinos espirituais, e que é um dos luzeiros e uma das glórias do episcopado nacional, encarecia ele a importância da opinião e da propaganda para a orientação dos destinos dos povos, e enquanto Sua Excia. falava, eu me lembrava de como é velho o princípio da sabedoria dos séculos, já dizendo Voltaire que a opinião pública é a rainha do mundo.

Na Europa do seu tempo, em que todos os Estados eram dirigidos por cabeças coroadas, na Europa monárquica de então, para o olho político arguto desse mestre sem piedade, a verdadeira rainha do mundo era a opinião pública, mais do que aqueles que detinham os cetros e se assentavam sobre os tronos. E foi manejando a opinião pública com uma destreza extraordinária que ele conseguiu orientá-la no sentido calamitoso que sabemos.

E de lá para cá, infelizmente, parece que a arte de manobrar a opinião pública tem sido exatamente detida e monopolizada por aqueles que representam a desordem e a destruição. E compete-nos de modo particular apresentarmo-nos nos grandes debates e cenáculos em que se forma a opinião pública nacional, para enfrentar essa ação e para nessa hora torva em que o Brasil se encontra, dizer a verdade com firmeza e com nitidez, enfrentando o erro em qualquer lugar em que se encontre.

Esse erro, no que diz respeito à reforma agrária, se apresenta de modo multiforme. Não há nenhum de nós que passando pelo interior do Brasil, pelo interior desses nossos brasis tão imensos e tão diversificados, não se tem deparado alguma vez com alguma choça com alguma casa miserável, com algum trabalhador rural em condições econômicas e de saúde tristíssimas, e não tem sentido um pesar profundo, um desejo enorme de auxiliar esse infeliz.

Não há nenhum de nós que, vendo um ou outro caso concreto desse, não tenha considerado que essas situações são provavelmente freqüentes, e, pela própria freqüência dessas situações, não tenha sentido um desejo redobrado de atendê-las. É o espírito de justiça, é o espírito de caridade cristã que vivido pelo brasileiro lhe dá na alma uma ternura especial pela qual todos nós, mais talvez do que outros povos da terra, somos propensos à bondade, à assistência, ao auxílio. É o espírito de justiça que faz nascer em nós essa sensação: alguma coisa deve ser feita.

Esta tendência de auxiliar os pobres, de remediar situações realmente lamentáveis, serve de fundo de quadro para uma propaganda que, explorando a natural bondade e o natural sentimentalismo do brasileiro, leva-nos a abrir os ouvidos ao canto da sereia. E o canto da sereia nos vem exatamente sob o aspecto de uma reforma agrária baseada num fundo de quadro que é mais sentimental do que doutrinário nas impressões, nos pendores de alma que não chegam a se definir exatamente em doutrinas, mas que contém uma doutrina – e uma doutrina que se as próprias pessoas que sentem esse pendor de alma explicitassem-na, a rechaçariam – são exatamente esses pendores de alma que nos levam a aderir ao cântico da sereia, para essa velha sereia da revolução, que desde 1789 até nossos dias, vem produzindo no mundo tantos transtornos, agitações e ruínas.

É o canto que nos segreda aos ouvidos: todos os homens são absolutamente iguais, toda desigualdade é uma injustiça, não há razão pela qual um homem deva ter mais do que outro, não há razão pela qual um homem deva ser mais do que outro, não há razão que justifique que um homem herde uma fortuna sem ter trabalhado, quando outro trabalha e não ganha dinheiro ou ganha pouco dinheiro para o sustento de sua família.

Nasce, então, no fundo de nosso espírito, essa idéia: a igualdade completa... Se a igualdade completa fosse realizada entre os homens, se a igualdade econômico-social completa fosse realizada entre os homens, conseguiríamos evitar essa situação miserável, porque então, todos tinham tudo e a situação de todos estaria remediada. Por esta forma, é na igualdade que havemos de encontrar a norma de justiça que deve resolver os problemas humanos.

E imediatamente a nossa formação sentimental a esse argumento genérico acrescenta um outro argumento de índole religiosa: afinal de contas, o Cristianismo o que é senão uma prédica de igualdade? O que é senão uma doutrina que afirmando-nos que devemos ter pena e que devemos amar os outros como a nós mesmos, leva-nos a dar aos outros tanto que os outros tenham tanto quanto nós. Então, esse igualitarismo, essa tendência para a igualdade completa, começa a aparecer como sendo a própria expressão, o próprio imperativo de nossa consciência cristã.

Daí surge a idéia de que se a igualdade é o ideal da justiça, deve-se começar pela partilha das terras. Então, antes de tudo, começa-se a falar contra o latifúndio. Latifúndios imensos, proprietários que possuem quantidades de terra colossais, latifúndios que, por causa disso mesmo não podem efetivamente serem aproveitados por um só homem, enquanto pobres coitados vivem na miséria, ganhando insuficientemente. Não seria mais cristão dividir tais latifúndios? Entregar suas terras àqueles que não têm?

Há um passo a mais: depois de se ter falado assim contra o latifúndio, fala-se também contra a média propriedade. Não é razoável que aquele que trabalha a terra seja dono dela? Se isto é razoável, não seria também razoável que todos os colonos fossem proprietários? Se todos os colonos devem ser proprietários, não deve haver média propriedade. Porque se todo colono deve ser proprietário, o médio proprietário, que só consegue cultivar suas terras por meio de colonos, de arrendatários ou de parceiros, mas não consegue cultivá-las com seu braço e o de sua família, também não deve existir.

E depois de termos sonhado com uma partilha dos latifúndios, pelo mesmo princípio, acaba-se sonhando com a igualdade que não nos leva a achar que não deve haver patrões ou empregados, nem ricos nem pobres, nem grandes nem pequenos. Pelo mesmo princípio da igualdade nega-se a média propriedade, ficando apenas a pequena propriedade.

Então, o agro-reformismo, embalado pelo canto da sereia do igualitarismo, transforma-se no sonho de um Brasil todo dividido em pequenas propriedades, e que elas sejam cultivadas diretamente pelo braço do pequeno proprietário e de sua família. Um imenso número de pequenas propriedades que realizam aquele ideal de justiça que se despertou em nós ao considerarmos tantos poços de miséria que existem no campo.

Esse agro-reformismo que, em última análise, redunda em comunismo, esse agro-reformismo tão sentimental, tão suave para um devaneio, calça-se depois por alguns argumentos de ordem concreta, de ordem material que, à primeira vista, parecem irresistíveis.

Por exemplo, diz-se que a agricultura no Brasil deveria produzir muito mais; que ela representa o fator pobre da economia nacional. Como fator pobre há uma responsabilidade, ou melhor, uma causa para que esse fator seja pobre. Esta causa só pode estar em nossa estrutura agrária. Se a agricultura não produz tanto quanto quereríamos, é por causa de nossa estrutura agrária, e se a estrutura agrária é responsável por isto, é preciso mudá-la. É preciso fragmentar as terras, acabar com as grandes propriedades.

Outros acrescentam que é preciso acabar com as médias propriedades para que a terra produzindo mais atenda às necessidades de todo mundo. Acrescenta-se depois que o Brasil está com uma explosão demográfica tremenda. A população cresce enormemente. A atual produção agrícola brasileira já não será suficiente para daqui a 10 anos, razão pela qual é preciso produzir muito mais. E como é a pequena propriedade que produz mais, e como são a grande e a média propriedades que produzem menos, é preciso acabar com estas últimas, para que a terra, produzindo mais, atenda as necessidade de todo mundo, evitando uma verdadeira catástrofe de fome no Brasil.

Então, as idéias agro-reformistas de caráter socializante e comunista se nos apresentam de modo resumido como acabo de expor. É claro que o agro-reformismo não vem só, e que quem tem essas tendências a respeito da reforma agrária, tem as mesmas tendências nos outros campos da economia.

O agro-reformista dessa espécie, quando pensa em problemas urbanos acaba sendo igualitário também, e a mesma tendência, os mesmos raciocínios de ordem econômica que o levam a desejar a igualdade das propriedades rurais, quando reflete sobre os problemas urbanos, levam-nos a desejar a igualdade de todas as habitações; e a igualdade de todas as relações jurídicas que estão ligadas à propriedade urbana é contra o inquilinato e tem a tendência de considerar o proprietário um parasita e um homem inútil que não tem razão de ser dentro da economia, e que o locatário deveria ser o verdadeiro dono.

Mais ainda, quando ele pensa em indústria, pensa numa participação dos operários nos lucros, e na organização da empresa de tal maneira que se estabeleça uma co-propriedade obrigatória dos operários, estabelecendo verdadeiramente uma situação em que o operário acaba sendo o verdadeiro dono da empresa, empurrando o patrão cada vez mais de lado. E quando o agro-reformista pensa a respeito dos estabelecimentos comerciais pensa num comércio completamente dirigido pelo Estado, em que os grandes, os médios e os pequenos estabelecimentos comerciais acabam caindo debaixo da batuta do governo, em que o comerciante acaba sendo posto de lado e o Estado dirige diretamente todo o comércio, de tal maneira que desaparece essa dualidade comerciante-comerciário, estabelece-se uma igualdade onde havia uma desigualdade, e assim se estabelece a justiça.

O agro-reformismo socialista não pode deixar de ser visto por nós apenas como uma posição agro-reformista, mas como a vitória ou a afirmação, no terreno dos problemas agrícolas, de uma mentalidade que forçosamente se aplica a outros terrenos também. Porque um princípio, quando vale para um terreno, é verdadeiro para todos os campos em que ele logicamente possa ser aplicado. O agro-reformismo não nos aparece como um problema apenas agrário, mas se nos defronta como um problema com o qual Cuba teve que lutar também.

É verdade que essa igualdade deve existir nos termos em que os agro-reformistas a sonham? É verdade que os homens são iguais no sentido e para os efeitos com que imaginam os agro-reformistas? É bem verdade, então, que a igualdade no campo deve existir?

Se ela deve existir, deve existir não só nas fazendas, como no comércio; não só no comércio, como na indústria; não só na indústria, como na locação. Ela deve existir em todas as relações ligadas à propriedade, e devemos chegar ao regime que é absolutamente o regime comunista. E é por causa disso que vimos Fidel Castro fazer sucessivamente as várias reformas em Cuba a uma cadência muito rápida, começando pela reforma agrária, passando para a reforma urbana, comercial, industrial, para comunistizar completamente Cuba.

A primeira noção a ser fixada é que o problema da reforma agrária não é apenas agrário. Ele é a aplicação, em matéria agrária, de um princípio válido para toda organização social. A aplicação desse princípio à organização social tem como corolário necessário a bolchevização do país, o que redunda em dizer que a aprovação de uma reforma agrária radical representa o 1º passo para a bolchevização do país.

Eu disse de uma reforma agrária radical. Vós me perguntareis: e uma reforma agrária moderada? Eu vos direi que a respeito de reforma agrária moderada é preciso distinguir e saber exatamente o que as palavras "reforma e agrária" podem significar.

Na linguagem comum, “reforma agrária” significa a aplicação do princípio cubano fidel-castrista ao terreno agrário. Mas se formos analisar bem as palavras, vamos notar que “reforma agrária” é uma expressão que contém duas noções: a noção de agrário e a noção de reforma.

A noção de agrário nos dá a idéia de campo: ager, em latim, é campo. Agrário é aquilo que se relaciona com campo. A noção de reforma o que contém? É uma palavra que está no vocabulário de todos os dias. Quando uma das senhoras diz que reforma um vestido, isto significa que o vestido existe, tem uma forma boa, mas que precisa ser re-adaptada, ser melhorada em algum ponto.

A reforma de um vestido, de um chapéu, de um prédio, de uma repartição pública ou de uma empresa privada, sempre traz consigo esta idéia: 1º de algo que existe; 2º a forma disso que existe é boa; 3º ela não é boa inteiramente, mas acidentalmente, precisa ser re-adaptada; é preciso ser alterada de maneira a ser melhorada à vista de circunstâncias novas.

Então, a expressão “reforma”, que é ao mesmo tempo o contrário da destruição absoluta, é também o contrário da conservação integral. Quem reforma um prédio não vai demolir o prédio, mas conservá-lo; quem reforma um vestido não vai destruí-lo, mas melhorá-lo em seu modo de ser; quem reforma a estrutura agrária, não vai demoli-la, mas quer conservá-la, embora modificando-a acidentalmente em algo que precisa ser melhorado.

Dentro dessa concepção, a idéia da reforma agrária tanto pode ser uma idéia socialista quanto pode ser uma idéia católica e perfeitamente aceitável.

O que pode distinguir a reforma agrária socialista da que não é? Obedeceria à idéia de uma reforma agrária cristã e moderada, uma reforma que visasse os seguintes objetivos:

1 - A melhoria das condições dos salários dos trabalhadores rurais, de maneira tal que o salário rural tivesse os predicados que a doutrina católica exige para que o salário se conforme com o pensamento da Igreja. O salário deve ser, antes de tudo, mínimo, isto é, dever ser suficiente para a vida do trabalhador rural, ou melhor, para a subsistência do trabalhador rural.

2 – O salário dever ser familiar, isto é, deve ser bastante vultuoso para que o chefe de família possa manter-se e a toda sua família. A esposa, os filhos menores de idade, as filhas solteiras enquanto não podem trabalhar, devem ser mantidos pelo chefe de família. E numa família bem organizada, em que as pessoas habitam num lar, esse salário dever ser bastante para evitar a dispersão das pessoas, para evitar que o lar se desagregue, indo todo mundo trabalhar. O operário tem o direito a ter o lar habitado o dia inteiro.

3 - Além disso, o salário deve ser justo. Salário justo se entende como aquele que é proporcionado à qualidade do trabalho do operário. De maneira que se há um operário de trabalho excelente, porque seu trabalho rende mais e vale mais, ele deve ganhar mais do que ganha o operário que tem salário apenas familiar e mínimo.

Com a conjugação dessas três circunstâncias, entende a Igreja que o salário deve ser tal que o trabalhador rural possa não só viver dignamente como homem, isto é, não só ter o pão necessário, mas também uma alimentação digna e capaz de manter sua saúde; não só uma casa onde não chova em cima dele, mas uma casa decorosa onde ele possa viver dignamente; mas, além disso, entende a Igreja que a família operária parcimoniosa - constituída de homens verdadeiramente ativos e empreendedores - deve ganhar bastante para poder acumular uma economia que seja uma reserva para a família nos dias difíceis. Com esta economia, em determinado momento, ao menos as famílias mais bem sucedidas, mais ágeis, mais dotadas, devem poder ganhar o necessário para ascender à condição de pequenos proprietários.

Assim, portanto, há uma tendência a que a classe trabalhadora vá progredindo em sua situação, não só chegando a um nível digno, razoável e humano, mas conseguindo mesmo ascender à propriedade. Porque, sem ser contrária à grande ou à média propriedade, a Igreja vê com bons olhos - e sobretudo num país onde há terras imensas inaproveitadas – que haja uma ascensão a condição de pequenos proprietários daqueles que não são proprietários.

Mais ainda: essa ascensão não deve ser necessariamente para a propriedade rural, mas pode ser, por exemplo, a aplicação do pé de meia do trabalhador em títulos, ações, apólices, etc., tudo que possa permitir à família de possuir algo e, portanto, de poder enfrentar o infortúnio dos dias que podem vir, não só com o apoio tantas vezes duvidoso das caixas de aposentadorias e pensões, mas com o apoio muito mais palpável, muito mais rico e mais seguro da iniciativa individual.

Portanto, do ponto de vista operário, um agro-reformismo verdadeiramente católico nada tem de contrário ao trabalhador rural, e seria monstruoso que tivesse. Mas, de outro lado, se favorece o trabalhador rural, a Igreja não patrocina a luta de classes e nunca admitiria um doutrina que, sob pretexto de favorecer o trabalhador rural, afirmasse a ilegitimidade da propriedade e justificasse a avançada ou investida do trabalhador rural contra o proprietário. Pelo contrário, a Igreja afirma que a propriedade é legítima - tanto a propriedade agrícola quanto a urbana, o estabelecimento comercial e o industrial - sendo direitos legítimos e conformes à Lei de Deus.

Esses direitos devem coexistir harmonicamente com os direitos dos operários, e se é verdade que o patrão deve reconhecer os direitos do trabalhador, não é menos verdade que o trabalhador deve reconhecer os direitos do patrão; e numa economia bem organizada, deve haver meios para que patrão e trabalhador vivam cada qual na sua situação, cada qual na sua categoria, florescendo sob as vistas maternais da Igreja, para a grandeza da sociedade civil.

Assim sendo, as idéias de reivindicações operárias que forem voltadas para a destruição da classe patronal não podem ser aceitas.

O que pensa a Igreja a respeito da propriedade? Acabei de dizer que Ela pensa que a propriedade é legítima. Mas, que argumentação apresenta a Igreja para afirmar a legitimidade da propriedade? É preciso compreender bem esta argumentação para entender o que está em jogo quando se fala de reforma agrária.

Começo com um exemplo muito rudimentar. Tomai um pássaro que está voando, ou tomai um animal que está correndo pelo campo. Considerai estes dois seres e vereis que neles, como em todos os seres vivos, estabelece-se um princípio: em cada ser vivo há uma unidade pela qual esse ser tem, ao mesmo tempo, necessidades naturais e tem os meios de satisfazer suas necessidades naturais.

Vede, por exemplo, um beija-flor. Observai o brilho de suas penas, a agilidade de seu vôo. Ele voa rápido, direto, pousa na flor e fica vibrando, fazendo-nos admirar a cintilação das jóias que estão em suas penas, enquanto com o bico muito fino ele penetra até o âmago da flor e daí retira o necessário para se nutrir.

O que há de ordem nesse beija-flor? Ele tem apetite, mas ao mesmo tempo a Providência lhe deu uma visão muito nítida de onde saciar seu apetite: deu-lhe um vôo ágil, um bico comprido para colher o alimento na profundidade da flor, onde pode ser encontrado. E tudo isso tem uma correlação maravilhosa. Ele tem fome, mas tem os meios de saciar sua fome. Em cada ser o meio de satisfazer as necessidades é correlacionado com a própria estrutura do ser: satisfação e necessidade que estão ligados pela própria unidade do ser. O organismo é um todo completo e ele vive de seus próprios recursos para manter-se.

Este princípio universal aplicado ao homem sobe de ponta. Em primeiro lugar, ele existe no homem. Todos nós somos dotados de necessidades, mas a cada um de nós, individualmente, a Providência deu os meios para saciar ou satisfazer as próprias necessidades. De maneira que quando temos um ser - seja ele o mais possante e o mais produtivo, como seja o mais débil e fraco dos seres - há uma unidade nesse ser, seja ele de um gênio como de um miserável, que faz com que esse ser tenha meios pessoais para satisfazer suas necessidades.

E aquilo que é um princípio de ordem universal no animal, passa a ser um princípio de ordem moral, ou de ordem jurídica, no homem. O homem tem o direito de dispor de seus próprios recursos para satisfazer as suas próprias necessidades.

Esse direito vem da unidade do ser, de que já falei, mas se exprime nos seguintes termos: (essa alternativa é fundamental para compreendermos o âmago da questão que se debate no problema agro-reformista) se é verdade que eu, como homem por natureza, sou dono de mim mesmo; se é verdade que cada homem é dono de si próprio, é verdade que cada homem é dono dos recursos de si mesmo. E, se isto é verdade, é verdade que tudo aquilo que o homem emprega com seus recursos destina-se primeiro a ele e depois, secundariamente, aos outros.

Se eu sou dono de mim, se eu sou dono de meus braços, serei capaz de me manter pelo trabalho de meus braços, e o fruto desse trabalho pertence a mim, e a mais ninguém, e deve satisfazer as minhas necessidades pessoais antes de satisfazer as de outrem, porque sou dono dos meus braços. Se eu sou dono do meu ser, é verdade que o fruto que meus braços produzem é meu também, porque quem tem a causa tem o efeito, e eu tenho a propriedade do produto de meu trabalho. Isto é próprio, é meu, e é meu porque eu sou meu, sou dono de mim mesmo.

Se eu fosse um escravo, se eu não fosse dono de mim mesmo, se eu fosse propriedade do Estado, se eu fosse propriedade de um senhor de escravos, então meu trabalho seria do Estado ou do senhor. Mas a Doutrina Católica ensina que os homens não nascem escravos e que por sua própria natureza eles não são escravos nem de um senhor, nem do Estado.

Por minha própria natureza, o produto do trabalho de meus braços me pertence. Se eu viesse a afirmar que o produto de meu trabalho não é meu, acabaria afirmando que eu não sou meu e, neste caso, afirmaria que sou escravo. De maneira que, em última análise, quem nega a propriedade do homem sobre o produto do seu trabalho, nega a propriedade do homem sobre si mesmo e, parecendo lutar contra a escravidão, ele de fato faz uma afirmação de escravidão e no fundo ele é um escravocrata.

Vejamos mais algumas aplicações desse princípio. Por exemplo: tomemos um praiano sentado na praia (o exemplo foi-me contado por um pregador capuchinho). Repentinamente, sua mulher, que trabalhava ao longe, grita-lhe que vá buscar o almoço. Ele toma um barco, vai, pesca alguns peixes e traz. Pode-se dizer que o peixe que ele pescou não é dele? O peixe dentro d’água é de ninguém. O homem pesca-o e leva-o para casa. O homem tem direito de propriedade sobre o peixe? É claro que tem. O peixe é de ninguém, mas foi feito por Deus para ser comido pelos homens. E não é do Estado, mesmo que houvesse uma lei que determinasse isto, porque o homem tem o direito próprio de se manter com o trabalho de seus braços.

O homem tem o direito também sobre um capital? É evidente. Suponhamos o nosso homem que pesca o almoço e o jantar e leva para a mulher. Um dia nasce uma criança e ele, fumando seu cigarro de palha, pensa que gostaria que seu filho fosse mais do que ele, que aquela criança tivesse uma saúde melhor, que tivesse uma capacidade maior de trabalho. E ele decide não mais pescar apenas para comer, mas também para vender na cidade e economizar para seu filho quando crescer.

Pergunta-se: isto é ou não é justo? É mais do que justo. Ele não é obrigado a arranjar mais do que o necessário para comer. Se ele arranja, é com o trabalho que é dele e ele tem o direito de não consumir e guardar, porque é dono de si e de seu trabalho.

Vejam que a raiz está sempre dentro dessa idéia de que o homem é dono de si mesmo.

Os senhores me dirão: para quando ele ficar velho, sim; mas para seu filho, não, ele não deve economizar. O filho não trabalhou, não produziu economicamente. Por que esse filho que tem um pai trabalhador há de ser mais feliz do que um outro que não tem um pai trabalhador? Por que ambos não têm o mesmo ponto de partida?

Diz o Evangelho que nós devemos amar uns aos outros, que devemos amar ao próximo como a nós mesmos. Se devo amar ao próximo como a mim mesmo, é porque ele é próximo. Mas é evidente que nem todos são igualmente próximos a mim. E se há pessoas que me são próximas porque são brasileiras, porque encontrei na rua, porque nasceram na mesma cidade, há outras que me são próximas por razões muito diferentes: é que elas pertencem à minha família e estão ligadas a mim pelos laços de sangue, porque são carne da minha carne e sangue do meu sangue.

E se eu negasse que o filho é mais próximo do pai do que os outros, se eu negasse que o irmão é mais próximo do irmão do que os outros, eu teria negado a família. O pai tem um direito pessoal sobre seus filhos porque ele os gerou; porque a mãe gerou o filho ela tem um direito especial sobre ele; ela trouxe à vida aquele ser pela obra de Deus: é um prolongamento de sua própria existência.

Porque eles geraram, porque eles são os pais, eles têm uma obrigação especial para com aquela criança; só uma pessoa inteiramente desalmada ousaria negar a existência dessa obrigação especial. E se eles têm essa obrigação especial, têm direitos especiais, porque o direito e a obrigação são correlatos.

Realmente, como disse bem o Papa Pio XII numa de suas inspiradas alocuções à nobreza romana, esta igualdade originária de todos os seres é um fato imposto sobre todos os berços para abençoá-los, não se inclina sobre todos para os igualar. Deus deu a uns pais excelentes, permitiu que outros pais não fossem excelentes; deu a uns pais capacíssimos, permitiu que outros pais fossem muito menos capazes, por maior que fosse sua boa vontade ("As desigualdades sociais, inclusive as ligadas ao nascimento, são inevitáveis. A natureza benigna e a bênção de Deus à Humanidade iluminam e protegem os berços, osculam-nos, porém não os nivelam" - alocução de Pio XII à Nobreza e ao Patriciado Romano de 1942 - cfr. "Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana", Parte I, Capítulo V, n. 4).

Nasce daí uma desigualdades à qual não se deve ser indiferente - nos termos que vou expor daqui a pouco – mas uma desigualdade cuja legitimidade não se pode contestar. Porque, se eu disser que não tenho o direito de favorecer meu filho com os recursos de minha inteligência e de meu braço, digo ou que o filho é um estranho para mim - o que é uma monstruosidade - ou que não sou dono de mim mesmo. De qualquer modo nega-se a autonomia e a dignidade da pessoa humana, nega-se a autenticidade e a legitimidade da instituição da família.

Os senhores perguntarão a que isto conduz. Isto conduz à legitimidade da propriedade privada, e conduz à afirmação de que o grande e médio proprietário têm o seu papel, tanto quanto o pequeno proprietário, no conjunto da estrutura rural de um país. Auferiram essas propriedades legitimamente, desenvolveram essas propriedades às vezes pelo trabalho de gerações, às vezes pela sagacidade de um homem a quem Deus deu um senso especial. O trabalho humano é em certas circunstâncias largamente abençoado por Deus.

Lembro-me de uma anedota a esse respeito. Conta-se que um bispo foi visitar um proprietário rural. O proprietário lhe dizia que quando lá chegara só havia chão íngreme, e que lá ele construíra uma bela casa. O bispo disse-lhe: "Graças a Deus, meu filho!" E o agricultor acedeu com isso. Depois, voltou-se e mostrou o cafezal, dizendo que nada era quando lá chegara e que ele conseguiu um belo cafezal. O bispo diz-lhe: "Graças a Deus, meu filho!" E ele também: "Graças a Deus". Mais adiante mostra ao bispo um açude que formara para toda espécie de.... O bispo disse-lhe: "Graças a Deus, meu filho!" Ele perdeu a paciência e disse: "Sr. Bispo, se V. Excia. soubesse como isto estava feio quando Deus estava aqui sozinho!..."

A anedota tem qualquer coisa de irreverente, mas tem algo de verdade. Deus quer que as coisas que Ele criou sejam completadas e tornadas úteis pelo trabalho humano. E se um homem com uma capacidade especial chega a um lugar e de um ermo tira algo de utilíssimo, empregou ali a grande capacidade que Deus lhe deu. Ele é dono de sua capacidade e é dono do fruto dessa capacidade. Ele se tornou justamente um grande proprietário e ninguém tem nada que dizer contra isso. Se o fizer, acaba negando o direito do homem ao produto de seu trabalho, à propriedade de si mesmo.

A esse respeito devo assinalar um argumento muito interessante de Leão XIII. Lembra Leão XIII que o direito do trabalhador ao seu salário e o direito do proprietário à sua terra fundam-se no mesmo fato e são um mesmo direito. Negar um é negar o outro. Se o homem é dono porque tem o direito sobre si mesmo e por isto é dono de seu salário, também o homem que pega alguma coisa e economiza do seu salário é dono de sua economia, do seu capital. Tornou-se capitalista, um proprietário, pelo mesmo princípio da propriedade do homem sobre si mesmo.

Portanto, atacar a propriedade sem atacar o trabalho é um absurdo. Os que atacam o direito do proprietário atacam o direito do trabalhador. Os que afirmam que o Estado é dono da propriedade, afirmam que o Estado é dono do trabalho. Isto porque - dizia Leão XIII uma expressão cheia de pitoresco e muito verdadeira - se considerarmos bem as coisas, o trabalho não é senão salário condensado; é o salário de quem trabalhou muito e que se condensou e produziu o capital, produziu os proprietários. Tudo tem como ponto de partida a propriedade do homem sobre si próprio.

Passo à uma outra ordem de considerações. Vós me direis: "Está certo, mas há um país onde um grande proprietário tem terras que não são aproveitadas, e há muita gente que precisa ser proprietária para explorar essas terras para manter a coletividade. O que se faz?"

A resposta é simples: expropria-se a terra e paga-se ao proprietário uma justa indenização. Porque, realmente, diz Leão XIII, a propriedade tem uma função social. Quando um proprietário não usa suas terras e elas não são necessárias ao bem comum, ninguém tem o direito de censurá-lo por isso. A Igreja mesma ensina que isto é o que distingue o homem do animal na ordem política: o animal vai usando das coisas que encontra, mas apropriar, mesmo que não seja para usar, é digno e próprio do homem.

Mas, como Deus fez a terra para todos os homens se manterem, um homem não pode reter a terra de maneira a ser nocivo à coletividade. Isto de forma tal, que quando um homem retém a terra, digamos, por preguiça, por indolência ou para caçar, e há gente que sofre fome porque aquela terra não é cultivada, o direito à vida daqueles vale mais do que o direito de propriedade desse. Nesse caso uma desapropriação se justifica. Mas esta justificação, que é lícita e que deve ser justa, dá-se só e unicamente no caso em que o não uso dessas terras seja irremediavelmente nocivo ao bem comum.

E por que falo em irremediavelmente? Imaginai que tivéssemos aqui no Brasil um potentado, um príncipe que fosse dono de três quartas partes do território nacional, não usando a quase totalidade dessas terras. Vós não achais que seria legítimo, uma vez que a população do Brasil está crescendo, desapropriar parte dessas terras necessárias ao progresso do Brasil? Entregar essas terras a cooperativas, a iniciativas particulares, ao Estado, para que ele também ajudasse os particulares a aproveitá-las? Todos nós achamos que sim, e achamos que seria um insensato o homem que pensasse o contrário.

Pois esse príncipe existe no Brasil e chama-se República dos Estados Unidos do Brasil, proprietária de mais de três quartos do território nacional e não o explora, e quer fazer uma lei caindo em cima dos proprietários que não exploram. Pergunto: como isto pode ser legítimo?

1º) Quem tem é o Estado e o que é do Estado é de todos os brasileiros, e o Estado é obrigado a dar se os brasileiros têm necessidade. Ele tem o direito de arrancar de outro que tem muito menos, em vez de dar do que é dele? Tem ele o direito de prejudicar a um particular, em vez de dar aquilo que é do povo mesmo? Os bens do Estado não são os bens do povo? E se ele tem terras gratuitas, por que razão vai comprar, por mais barato que seja, terras de outros? Numa época de despesa, de inflação, de orgia econômica em que tudo levaria à parcimônia, não se compreende que uma pessoa aja assim.

Imaginem um diretor de indústria ou comércio que apresenta o balanço ao proprietário e nota que a firma está gravemente deficitária - o proprietário geme - e no mês seguinte compra enorme quantidade de estoque. O proprietário vai chamá-lo e perguntar como ele aumentou a aplicação da firma, quando estavam com pouco dinheiro, e vai colocá-lo na rua. É o que cabe fazer quando um estadista qualquer, seja de que partido ou de que posição for, diante de um Estado deficitário fala em comprar terras, quando as terras estão sobrando.

Disse-me na Câmara um deputado, de modo pitoresco, que o problema de terra no Brasil não é um problema de joão-sem-terra, mas de terra-sem-joão. Realmente, temos sobra de terra e falta de gente.

Perguntou-me um francês muito competente com quem conversei, se de fato havia aqui quem pensasse seriamente em reforma agrária. Quando lhe disse que havia, respondeu-me: "O que pensariam os japoneses, que estão como que dependurados em suas ilhas, fazendo cortes em montanhas para obter terras, quando vissem que o Estado, no Brasil, deixa de lado suas terras, para tirar de particulares?"

O Estado é o grande latifundiário que tira do pequeno latifundiário. O japonês diria ao brasileiro se preferimos fazer uma revolução social a aproveitarmos as terras que temos. Somos os descendentes dos bandeirantes, que fizeram a expansão agrícola do Brasil, mas agora estamos amarrados no asfalto, sem coragem de fazer o que nossos maiores fizeram: enfrentar o sertão. Arrancamos mesmo a integridade nacional com isso.

Alguém dirá que as terras são muito rudes para serem enfrentadas. Se os portugueses do tempo de Cabral assim pensassem, nada teriam feito. Não havia só uma terra rude, mas um imenso oceano a enfrentar. Somos semelhantes ao filho preguiçoso de pai trabalhador que não é capaz de repetir a epopéia do pai, e quer viver do que é do pai?

Os senhores dirão: É herança. Eu respondo: Certo, mas então conforme-se com sua pobreza, produto de sua indigência, e não queira tirar de outros. Se o Brasil fosse um país pequeno como a Bélgica, se fosse uma ilha, esse raciocínio teria cabimento. Mas num país com nossas condições geográficas, esse raciocínio não passa de uma brincadeira.

Dir-me-ão agora: "Como ponho a questão da desigualdade? Então, não é verdade que todos os homens são iguais? O que ensina a Doutrina Católica a esse respeito?"

Entre os homens existe uma fundamental igualdade e, ao mesmo tempo, uma desigualdade acidental. Essa igualdade e essa desigualdade têm o seu papel na ordem política, na ordem econômica, na ordem social.

No que consiste a igualdade fundamental? Todos nós temos determinados direitos que nos cabem porque somos homens: o direito à vida é um deles, o direito à escolha de uma profissão é outro, o direito do conhecimento da verdadeira religião, sobretudo, é um direito eminente; o direito a orientar sua vida segundo os ditames da moral e dentro da lei livremente. Esses direitos, sendo direitos do homem porque é homem, são direitos de todos os homens, e nesses direitos todos os homens são iguais e qualquer desigualdade é injustiça.

Por exemplo: supondo que o homem mais capaz de hoje seja Winston Churchill, não posso dizer que o direito dele à vida seja mais absoluto do que o direito de uma criança que acaba de nascer e que nenhuma prova deu de sua capacidade, porque Churchill e a criança são homens e, sendo homens, têm direitos iguais.

Entretanto, não podemos dizer que essa igualdade vá tão longe quanto imaginam alguns, porque se Deus nos criou todos homens, deu-nos, entretanto, qualidades e aptidões imensamente diferentes.

Ele pode ter dado uma voz esplêndida a uma pessoa e, portanto, a capacidade de cantar, de atrair e empolgar auditórios inteiros e ganhar grandes fortunas. Ele pode ter dado ao irmão desse cantor uma grande limitação intelectual, uma voz rouca, feia, desagradável, um olhar estrábico, um jeito esquisito de andar. Os dois vão trabalhar, o cantor ganha rios de dinheiro, o irmão fica na bilheteria recebendo os bilhetes e ganha o suficiente, o natural, o lógico, o razoável, proporcionado ao que Deus lhe deu.

Se os senhores acharem que é injustiça, eu direi que é de Deus, dos homens não é, porque essa desigualdade está na natureza e é mesmo um dos elementos de ordem, perfeição e beleza da natureza. Ambos ganham o que têm direito.

O que é o fundamental dessa desigualdade? É o direito que o cantor tem à sua própria laringe. Mais uma vez voltamos ao princípio do direito que o homem tem ao seu próprio ser. Ele tem direito a cantar e tem direito ao produto desse canto.

A desigualdade entre os homens aparece como verdadeira e legítima quando fundada na virtude, porque a virtude é geradora de superioridade, é geradora de produção, é geradora de vantagens e Deus, que pune o homem que anda mal e premia o homem que anda bem, não pune apenas no Céu ou no inferno, mas pune já nesta terra. De maneira que é razoável e justo que essa desigualdade exista.

Será justa a desigualdade das classes sociais? É evidente que é justa. Se Deus deu a um homem a capacidade de ser um grande cirurgião e de salvar uma porção de vidas, ele entra numa escola de Medicina, brilha e depois é procurado por todo mundo. A função de médico e cirurgião tem uma dignidade intrínseca maior do que a do trabalhador manual, porque o espírito é mais digno do que a matéria e as obras do espírito são mais dignas de respeito do que as obras da matéria.

Notai que isto não equivale a dizer que o trabalho manual é indigno. O trabalho manual é digno porque está de acordo com a ordem da natureza; é digno porque o próprio Filho de Deus encarnado, Nosso Senhor Jesus Cristo, fez-se trabalhador manual, era conhecido como o Filho do Carpinteiro, e o trabalho manual recebeu com isto uma dignidade especial.

Mas, considerado o trabalho intelectual e o trabalho manual, o intelectual é certamente superior ao manual, porque a alma é mais do que o corpo, e o espírito é mais do que a matéria, porque o espírito, ou melhor, as obras do espírito são mais benfazejas para todos do que as obras da matéria.

Veja-se o mundo de estudo que o cirurgião que corta um doente e salva uma vida fez para estabelecer o seu diagnóstico. Ele abre o doente e encontra o diagnóstico confirmado; com mão maravilhosa evita cortes que seriam fatais, faz uma operação dificílima. Fecha o doente, é uma vida que está salva.

Quem concorreu mais para salvar aquela vida, o médico ou o carpinteiro que fez a parte de madeira da mesa sobre a qual a operação se realizou? Ambos concorreram e ambos tiveram um concurso digno de respeito. Mas quem mais contribuiu para a finalidade da mesa, da sala e de tudo, que era salvar o doente, foi o médico.

Portanto, há uma hierarquia de profissões que estabelece categorias profissionais ou classes dentro da sociedade, e esta hierarquia é legítima. Esta hierarquia eleva o homem, o médico, o engenheiro, o advogado, o industrial, o jornalista, o agrônomo ou esta hierarquia eleva também a sua família?

O estado natural do homem é.... e por a família. O homem naturalmente está ligado à família como aos membros de seu corpo: onde ele está, está a família. O homem é a cabeça da família e onde está a cabeça está o corpo. E a dignidade que toca o homem, toca naturalmente a sua esposa, que - como diz a Bíblia: “serão dois numa só carne” - é considerada um todo com ele. E o Direito Romano punha na promessa da esposa ao marido esta afirmação: “ubi tu Gaio, ego Gaia”. Toda honra, todo mérito que cabe a ele, ela tem uma nobilíssima participação.

Se isto é verdade, não é verdade que onde estão o esposo e a esposa estão os filhos? E não é verdade que os filhos recebem algo da dignidade de seus pais?

Os senhores dirão que ninguém tem direito a algo se não trabalhou, e ninguém é algo porque é filho de papai. Na aparência é muito bonito; na realidade, perfeitamente errado. Se é verdade que é justo que o homem herde a fortuna de seus pais, é justo que herde a honra e a ilustração do nome de seu pai.

Os senhores tomem uma criança que fez uma travessura qualquer à beira de um lago e está prestes a se perder. Um homem que está perto arrisca sua vida, vai ao encalço da criança e a salva. Pergunta-se: este homem não tem um título de gratidão? Tem. Só da criança? Do pai também. Não há pai ou mãe que não se sentisse grato, talvez mais do que fosse feito por si mesmo. A gratidão passa do filho para o pai. Pela ordem natural das coisas, o bem feito ao filho toca ao pai também.

De outro lado, o contrário também é verdade. Imaginem um bombeiro que salva uma criança de um incêndio, mas, ao mesmo tempo, perece no incêndio. O bombeiro morre e deixa filhos. A pessoa salva não é obrigada a uma dívida especial de gratidão para com os filhos do bombeiro? Todo mundo admite que sim. Se ele tem dívida para com esse bombeiro, pelo filho do bombeiro ele deve fazer o que o bombeiro faria se estivesse vivo.

Pelo próprio princípio da continuidade entre pai e filho, a gratidão se herda. A gratidão a que o pai fez jus, o filho tem direito também. Esse princípio entre indivíduos, todos admitem.

Alguns estarão pensando por que estou lhes tomando o precioso tempo falando a respeito de coisa tão banal. Se esse princípio de gratidão existe para o indivíduo entre indivíduos, existe também do Estado para com o indivíduo. É por causa disso que o Estado, em todos os tempos, manifestou-se grato pela descendência dos homens que faziam algo de notável por ele.

Por exemplo, na guerra civil espanhola, um último descendente de Cristóvão Colombo, que era duque, ia ser fuzilado pelos comunistas pelo simples fato de ser duque. Guerra de classes. Como era o único descendente de Cristóvão Colombo sobre a terra, todas as repúblicas latino-americanas mandaram uma mensagem ao governo comunista pedindo que poupassem o descendente de Colombo, para que sua descendência não cessasse de existir.

Agiram bem ou não? Quem não acolheria uma tal sugestão com uma salva de palmas, se o fato fosse agora? Será que alguém diria: Colombo descobriu a América, mas a mim tanto se me dá a descendência dele? Creio que todos percebem ser isto um absurdo.

Aqui no Brasil mesmo, o Estado republicano várias vezes tem votado subsídios para auxiliar descendentes de grandes servidores do Brasil no Império e na República, que caíram na indigência. Votou-se subsídios para a filha de Campos Sales, para o descendente do Duque de Caxias. Isto nada mais é do que a hereditariedade da gratidão.

Então, não é justo que o Estado cerque com honras e distinções oficiais aqueles que são filhos de pessoas que prestaram um grande benefício à sociedade? Isto é tão justo, que aqueles dos senhores que não concordassem comigo ficariam presos a uma única resposta ou objeção: "Está certo, mas e quem não merece, ou melhor, mas se ele não merece?"

A expressão é ambígua. Há dois modos de não merecer: um modo é não ser um outro Duque de Caxias, ser um homem comum, embora digno e honrado; outro modo é ser um homem indigno de um grande homem. Como se procede nesses casos?

No terreno da gratidão particular, tomemos o caso do bombeiro. O bombeiro morre e o filho cresce e eu me nego a ajudá-lo porque exijo que ele dê primeiro prova de coragem como o pai. Isto não é certo: ele é um homem comum, um homem digno; a coragem foi de seu pai, prolonga-se no filho, mas não é preciso que ele seja também um grande corajoso. Se ele tiver uma coragem comum, uma compostura comum, por causa do pai farei por ele o que puder.

Transporto para o terreno das classes sociais: é legítimo que haja classes sociais em que os filhos, que não têm a ilustração de seus maiores, mas que vivem com dignidade e carregam com honestidade sua tradição, levem consigo algo desse prêmio.

Por outro lado, há o celerado. Chega-se ao que foi salvo pelo bombeiro e procura matá-lo: acabou a gratidão. Assim também o filho de um grande homem a quem o Estado é grato, mas se ele faz algo contra o Estado naturalmente a gratidão desaparece. Do fato dessa gratidão se prolongar aos herdeiros e dar origem a uma certa categoria social, não decorre de nenhum modo a fixação dos parasitas, dos inúteis.

A História nos mostra que os parasitas e os inúteis não duram. Em geral, o que acontece é que as instituições parasitárias, as classes parasitárias desaparecem. Há estudos feitos a esse respeito que mostram que quando as famílias começam a decair, podem durar uma ou duas gerações e depois se espatifam. Há um velho ditado português que pinta esse processo assim: pai rico, filho nobre, neto pobre. O pai foi rico, o filho enobreceu, o neto, se não estava à altura, se não trabalhou, se não teve vida digna, se esbanjou, dá um play-boy e fica pobre. Há um desgaste natural nessas coisas.

Alguém dirá que a sociedade assim constituída favorece a impossibilidade do acesso do homem modesto a uma condição superior. Eu acabo de sustentar o contrário. Mostrei que um homem, por mais modesto que seja, quando trabalha e fica rico tem direito ao fruto de seu trabalho, e quando faz alguma coisa de bom para o Estado, tem direito à gratidão do Estado e tem direito a um prestígio geral que se prolonga com a família.

Uma elite fechada na qual nunca se entra é como água estagnada. A elite tem que ser como a água de uma piscina: renova-se lentamente, mas sempre, sempre entrando gente nova e saindo gente podre. Sem isto não há verdadeira elite. Isto não tem que ver com o princípio de castas, onde não entram novos elementos.

Posto isto, os senhores poderão objetar se não é contra a índole da Civilização Cristã toda essa desigualdade. Direi que isto é proporcionalmente da índole da Civilização Cristã. O que quer dizer a palavra "proporcionado"? No terreno econômico, vimos o que ela quer dizer: para todos deve haver condições de vida digna, justa, com capacidade de progresso. Uma vez feito esse progresso, é justo que haja desigualdade na medida em que não prive os outros das condições dignas que merecem. Há, portanto, uma proporção entre a fartura do trabalhador manual e a fartura daquele que capitaliza, de tal maneira que o capital nunca pode ser tão grande que retire ao trabalhador manual as possibilidades de se manter nas condições enumeradas.

Isto é claro no terreno econômico, mas o homem não vive só de pão, embora hoje muitas vezes se pense o contrário. O homem também deseja respeito, consideração. Nos tempos anteriores à Civilização Cristã, a situação era tal que o homem não era tratado como homem.

Lembro-me que li a carta de um agente comercial escrita para seu soberano, um dos faraós do Egito. Diz ele: "Senhor, deus (e dá um dos nomes de um deus egípcio), fulano de tal, teu servidor, indigno de beijar os seus pés, indigno de beijar as patas de teu cavalo, beija o pó onde as patas do teu cavalo tocaram"... É especificamente uma aberração!

Um homem é um homem e não deve reconhecer no faraó um deus, porque o faraó é outro homem e os dois, enquanto homens, são iguais. Beijar a pata do cavalo [do faraó] já seria absurdo, mas prestar-se a engolir poeira das patas do cavalo é inconcebível. As coisas eram mais ou menos assim em todo o Oriente antigo.

Vindo Nosso Senhor Jesus Cristo as coisas começaram a mudar. Na era da Civilização Cristã, todas essas formas desapareceram. A história nos conta que Luiz XIV, o Rei Sol, era um rei que passando diante de qualquer pessoa do sexo feminino, ainda que fosse sua lavadeira, tirava cortesmente o chapéu para cumprimentá-la.

Era uma imensa transformação na história do mundo, que afirmava o seguinte princípio: "Rei, lembra-te de que se és rei - ou se és um potentado - lembra-te que continuas a ser igualmente um homem. Assim, não desprezes tua própria carne: aceita uma prova de respeito, mas saiba respeitar nos outros uma dignidade fundamentalmente igual à tua".

Há um rito belíssimo na coroação dos papas: o papa entra na basílica de São Pedro cercado por toda a pompa de liturgia católica, mas um dignitário vaticano vai tomando estopas e queimando diante dele e dizendo: “Santíssime Pape, sic transit gloria mundi - Padre santíssimo, assim passa a glória do mundo”. Passa tudo quanto é acidental, uma coisa fica: a dignidade humana, a dignidade do cristão, o valor da virtude. É isto que os homens devem ter sempre presente. Essa igualdade fundamental ao lado de uma desigualdade acidental.

Essa circunstância nos leva a ver que reforma agrária é baseada numa ideologia com tônus incompatíveis com a dignidade humana, porque é fundamentalmente um sonho de igualdade que é o contrário da Doutrina Católica e que é o contrário da verdadeira dignidade do homem, da propriedade do homem sobre si mesmo, do direito do homem sobre si mesmo, de maneira que, aceitando a doutrina comunista - ou a socialista, que está para a comunista como o cor-de-rosa está para o vermelho - na realidade, não é apenas porque os comunistas são ferozes que o homem fica escravo, mas ainda que fossem pacíficos, cordatos e corteses, o homem seria escravo; porque o homem, sendo dono de si mesmo, tende a ser proprietário: não tendo o direito de ser proprietário é escravo.

É por instituição e por natureza que o socialismo e o comunismo visam a escravização de todos os homens. Essa campanha, portanto, iniciada no livro “Reforma Agrária, Questão de Consciência” visa muito mais do que preservar uma forma econômica que nos parece boa, mas é muito mais do que isto: é para preservar nossa dignidade de homens e de cristãos, a nossa liberdade de homens e de cristãos, é para preservar um Brasil que tem essa forma de liberdade, da qual disse Rui Barbosa que o amor à liberdade – e eu diria à legítima liberdade, a liberdade cristã – é uma coisa tão grande que fica até acima do amor à própria pátria.

 É por amar a pátria, é para servi-la que procuramos resguardar algo que é tudo para nós, que é a liberdade dentro das sendas da Civilização Cristã, é o ideal cristão do País. Por isto foi escrito o livro “Reforma Agrária - Questão de Consciência”.

 

Perguntas e respostas

 

Perg.: Va. Sa. citou que o país possui três quartos das terras devolutas que deveriam ser distribuídas. Va. Sa. considerou as dificuldades dos meios de escoamento dos produtos, assistência técnica, jurídica, sanitária e financeira nesses pontos do país, isto é, Acre, Amazonas, Goiás etc.?

Resposta: Fernão Dias Paes não considerou, Cabral não considerou... E se eles só tivessem feito as bandeiras e o descobrimento com assistência médica, hospitalar, dentária e com todas as formas de conforto, o Brasil não existiria. Não é no “mole” que as coisas se fazem. As grandes coisas se fazem com grandes sacrifícios.

Eu disse que é real o direito a uma partilha de terras, desde que haja uma necessidade para subsistência, uma necessidade para a vida. Eu não disse que isto é real para fazer comércio, para exportar e escoar. Se a pessoa quer isto, viva perto da orla das terras aproveitáveis e forneça para os centros mais próximos. Os centros mais próximos terão um superávit que .... adiante. Assim, os saldos caminham.

Não é necessário ir de uma vez para o fundo do Amazonas para mandar banana ou milho de avião para os centros que têm necessidade. Nunca isto se fez assim e em todos os tempos se deu o fenômeno do povoamento. O povoamento dá-se quando uma zona está superpovoada e não se faz um revolução social a punhal e bomba, a ferro e fogo para arrancar o que é dos outros, mas enfrenta-se a dura condição de ir para adiante.

Pergunto agora eu outra coisa: o meu interlocutor considerou se as dificuldades que ele citou existem? Ele me perguntou se eu considerei. Dei a minha resposta. Mas não seria obrigado a considerar. Poderia fazer a seguinte pergunta: o Estado, antes de retirar as terras dos outros, que estudos fez para ver se era possível remediar esses males? Onde estão esses estudos? Antes de se entrar no que é dos outros, deve-se provar que se tem um título para isto. A questão é vaga: é bem capaz que seja difícil. Com um “é bem capaz” se resolve qualquer coisa? Contra um fato incerto, não prevalece um direito certo? O direito do proprietário é certo, e essa impossibilidade é incerta enquanto não for dada a prova. Compete aos agro-reformistas provarem.

 

Perg.: Va. Sa. citou o peixeiro vendendo peixes para garantir o sustento futuro do filho. Esse exemplo explica o domínio econômico de truste?

Resposta: Não. É, pelo contrário, em nome desse exemplo que se condena o truste. A propriedade privada não deve ser considerada igual ao abuso da propriedade privada. Porque se formos considerar qualquer coisa igual ao seu abuso, chegamos às maiores aberrações.

Um interlocutor passa-me um bilhete: "O senhor já pensou no abuso dos pais que espancam os filhos?" Não. O abuso do pátrio poder é distinto do pátrio poder. Devemos agir contra o abuso, não podemos agir contra o uso. É como um cirurgião plástico que resolve fazer campanha contra o nariz, porque uma sua cliente tem um nariz descomunal. O nariz anormal não é motivo para se extirpar todos os narizes. A superpropriedade não é motivo para a eliminação de todas as propriedades. Mais ainda: é em nome do direito de propriedade que somos contra o truste.

Quando falei do peixe, falei exatamente contra algo que poderia ser o truste do peixe: um instituto que dizendo que o peixe é nosso fizesse o monopólio do peixe para o Estado, de maneira que ninguém pudesse pescar, ou uma empresa particular que absorvesse todas as pequenas empresas e acabasse com a pessoa, seria contra o direito do pescador de pegar o peixe. A super-propriedade é condenável pelas mesmas razões pela quais se condena o comunismo.

 

Perg.: Va. Sa. citou que o homem é dono de si mesmo e do trabalho que produz. Concordo. Porém, uma herança é fruto do trabalho?

Resposta: Fruto do trabalho do pai...

 

Perg.: Na definição de “próximo” dada por Va. Sa., gostaria de ser melhor esclarecido.

Resposta: A noção de próximo envolve uma noção de distância. Vamos tomar a noção no sentido físico, em que ela é intuitiva, e aplicá-la ao sentido moral. No sentido físico ela pressupõe a noção de distância. Dado que as coisas não são as mesmas, mas são diferentes, entre duas coisas materiais diferentes há sempre uma distância. Entre o copo e o microfone há uma distância. A distância pode ser maior ou menor; e quanto maior, mais a noção de proximidade torna-se tênue; quanto menor a distância, maior a proximidade. As coisas muito pouco distantes são as mais próximas.

Aplicando às relações entre os homens. Todo homem é um próximo do outro em que sentido? No sentido de que é um ser que não pode ser alheio ao outro, não pode ser indiferente ao outro, que não pode dizer que nada tem a ver com o outro.

Entre o Pão-de-Açucar e essa garrafa de Lindóia nada há de comum. Entre um homem e outro homem nunca há uma distância dessas, porque têm a mesma natureza. Além disso, foram criados pelo mesmo Deus e, portanto, são todos irmãos; e depois, porque foram remidos pelo Sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor Jesus Cristo e elevados à ordem sobrenatural. Portanto, de algum modo, todos os homens são próximos.

Mas, se isto é verdade, todos os homens não são igualmente próximos. Por exemplo, um estranho que passa por mim pela rua e um aluno que eu tenha tido na Universidade não são para mim igualmente próximos. O aluno é uma inteligência que eu ajudei a abrir, que eu ajudei a formar, que tem dentro de seu espírito algo do meu próprio espírito. Como posso considerá-lo tão distante de mim quanto um anônimo que passa pela rua? Há uma proximidade maior de aluno e professor do que entre dois homens simplesmente.

Um brasileiro e um kurdo são próximos porque são homens. Mas é claro que um brasileiro é mais próximo de outro brasileiro, é claro que um paulista é mais próximo de outro paulista, é claro que um bragantino é mais próximo de outro bragantino. É natural que em Bragança mesmo haja graus de proximidade neles, o maior é que está na família.

Na família, pela ordem biológica natural das coisas, o maior é entre o pai e o filho. O filho é quase o pai e a mãe, e é claro que é supremamente próximo, enquanto o sobrinho, por exemplo, é menos próximo; o irmão é menos próximo do que o pai em relação ao filho. O esposo e a esposa, por um vínculo que está na ordem natural das coisas - vínculo jurídico-moral - acabam sendo um só ser e se fundem por essa forma.

A proximidade aqui é co-naturalidade. Na medida em que se tem a mesma natureza, nessa medida se é próximo. Tenho .... a mesma natureza com os homens, mas tenho uma união natural maior com aquele que nasceu dos mesmos pais que eu. Isto seria proximidade.

 

Perg.: Os portugueses levaram séculos para colonizar a terça parte do Brasil. Não acha o nobre conferencista que nas nossas atuais condições técnicas e econômicas levaríamos pelo menos 30 anos para cultivar a outra parte? Isso não é muito tempo para se esperar?

Resposta: Eu seria levado a dizer o seguinte: o argumento tem de curioso que quanto mais os meios técnicos aumentam, tanto menos a gente pode esperar. Dir-se-ia que a técnica existe para não se esperar facilitar a coisa. Os portugueses levaram quatro séculos, nós levaríamos 30 anos. Será que não podemos mesmo esperar esses 30 anos? Qual é o perigo iminente que está aí? No que consiste ele? Vamos sofrer fome daqui a 30 anos?

Eu queria que o governo publicasse um livro executivo – como é a demonstração contida na segunda parte de “Reforma Agrária - Questão de Consciência” – e provasse que esse perigo existe. Uma vez isto provado, faça-se uma reforma agrária. Ou melhor, não era o caso de fazer uma reforma agrária no Brasil inteiro, mas era o caso de perguntar se uma reforma agrária resolve isto e provar que resolve. Neste caso era ainda preciso demonstrar em que medida deveria ser feita para resolver, porque não pode ir além da medida do necessário. Isto exige trabalho, exige estudo, não pode ser feito com frases vagas, com demagogia de praça pública...

A respeito do livro “Reforma Agrária - Questão de Consciência”, quero dizer que ele foi atacado dos dois lados: do lado doutrinário e do lado econômico. Do lado doutrinário, afirmou-se que não era essa a doutrina da Igreja; do lado econômico, dizia-se que as conclusões econômicas do livro não eram certas. Do lado doutrinário saíram dois ataques somente: um de uma personalidade cujo nome declino muito respeitosamente, do senhor arcebispo de Goiânia, que fez um ligeiro ataque dizendo que víamos socialismo em tudo. Não é uma refutação, mas uma restrição.

Outro foi do escritor Gustavo Corção, que escreveu três artigos caudalosos no “Estado de S. Paulo”, dizendo que o livro estava completamente errado do ponto de vista da Doutrina Católica. Eu refutei com três artigos no “Diário de São Paulo” e dei como título aos artigos: “Reforma Agrária, Questão de Consciência, o livro que o senhor Gustavo Corção não leu”. Ele ficou quieto.

O senhor bispo de Campos refutou também o artigo do senhor bispo de Goiânia, que também ficou quieto e nunca saiu artigo fundamentado pretendendo provar com argumentos que o livro verdadeiramente tem algo que não seja a mais pura Doutrina Católica.

Do lado econômico, temos desafiado de todos os modos as pessoas a que publiquem uma refutação séria. Notem que digo que não publiquem uma negação, negar é fácil, dar uma prova é muito diferente. E essa prova até agora não saiu.

Outro dia fui convidado a fazer uma conferência numa Universidade rural e ali se levantaram vários jovens um pouco impressionados pela urgência do “Brasil Urgente”, e por outras misérias do gênero, e começaram a espocar com afirmações. Uma delas é que o fazendeiro não pode pagar o ordenado ao trabalhador porque o fazendeiro ganha tão pouco, por causa da estrutura rural, que nem dá para isso. Diziam-me: "O senhor prove o contrário". Eu disse que eles é que provassem, dado que a afirmação era deles...

 

Perg.: O deputado esquerdista Paulo de Tarso, Ministro da Educação, afirma que a Mater et Magistra fala em socialização. É certa essa interpretação?

Resposta: O senhor presidente, quando teve a gentileza de me presentear, disse que sou um dos colaboradores do Catolicismo, jornal que se publica em Campos, mas que circula em todos os meios católicos cultos do Brasil, e que é editado sob a égide do senhor bispo de Campos, D. Antonio de Castro Mayer. Esse jornal publicou uma tradução da Mater et Magistra feita por uma comissão de latinistas com todo cuidado. Foi traduzida diretamente do latim do único exemplar oficial que existe, que é a Actae Apostolicae Sedis. O jornal Catolicismo publicou com uma introdução, cujo autor fui eu.

A palavra “socialização” não existe na encíclica Mater et Magistra, mas existe em suas traduções. É uma palavra nova, de sentido ainda não bem definido, que se deriva não de socialismo, mas de sociedade. Na Mater et Magistra, o que o Papa aconselha é que se incentive as sociedades particulares de pesca, agricultura, música, sociedades religiosas etc. Isto foi traduzido com a palavra “socialização”. Esta palavra, portanto, não está no texto, e não foi empregada com o sentido de socialismo, mas de sociedade. Ainda que figurasse no texto, não provava nenhuma conivência com o socialismo.

 

Perg.: Se o Brasil tem uma população agrícola de 40 milhões de indivíduos e se o governo pretende que existam 10 milhões de proprietários, como serão exploradas as propriedades? Não faltarão braços?

Resposta: As estatísticas do governo são sempre muito discutíveis, funcionando sempre à la “Lloyd” e à la “Central do Brasil”. Se quisermos fazer uma reforma agrária séria, a primeira coisa a fazer é uma reforma das estatísticas, montar um sistema estatístico sério para tirar a verdade a limpo. Quase não se pode dar resposta às estatísticas oficiais, cujas conclusões são meio absurdas, de fato.

 

Perg.: É verdade que atualmente no Brasil duas mil crianças morrem de fome por dia?

Resposta: Admitamos que isto seja assim, pois o senhor já me viu pôr em dúvida, genericamente, as estatísticas. Admitindo isto, seria preciso provar que a culpa disto cabe realmente à agricultura. Provado que cabe à agricultura, seria preciso provar que cabe à estrutura rural e que não cabe a outros defeitos, como seja, por exemplo, às perdas de gêneros alimentícios de toda ordem, que se dão por culpa da iniciativa oficial. Haveria toda uma prova a fazer, que não está feita.

 

Perg.: O que diria o senhor a respeito da reforma agrária do projeto Milton Campos.

Resposta: Esta pergunta seria bem respondida pelo comentário que publicaram recentemente nos jornais os autores de “Reforma Agrária - Questão de Consciência”. Nesse comunicado mostramos que há dois pontos particularmente injustos no substitutivo que tomou o nome do projeto Milton Campos. Esses pontos são: primeiro, o caráter expropriatório da reforma agrária. As terras são desapropriadas por motivos não justos e a preço claramente não justo, que é o chamado custo histórico. Mas, o que me parece mais grave é que a reforma agrária Milton Campos inclui a seguinte disposição: a partir do momento da aprovação da lei, nenhum fazendeiro poderá desmembrar ou incorporar glebas sem licença da SUPRA e não pode adotar uma cultura nova, ou modificar sua cultura sem licença da SUPRA.

Ora, a SUPRA é um organismo moloch a funcionar em Brasília, com sedes nos estados e repartições nos municípios, e com requerimentos para pedir qualquer coisa. De maneira que se amanhã o agricultor quiser plantar milho em vez de plantar outra coisa, tem que requerer, pedir, nomear um procurador etc, estampilhar, reconhecer firma. Isto vai à Brasília para obter aprovação. Quando essa chegar, já passou a ocasião. Então, ele vai requerer para fazer outra coisa.

O senhor percebe que é uma verdadeira ditadura econômica que se inaugura por essa forma, porque tudo dependerá da SUPRA, e esta dependerá de outrem. O Brasil será mais escravo nessa ocasião do que se fosse na ditadura política. Mas, ainda mais injusto é isto de considerar o fazendeiro como um menor de idade, um ente acretinado que não sabe o que tem de plantar.

No Brasil há duas categorias de pessoas: os grandes técnicos da SUPRA que sabendo ler, sabem tudo; depois, há os pobres parias que nada sabem. O resto é transformar a agricultura numa “Central do Brasil”. Hoje o Estado diz que os fazendeiros são ignorantes e que a SUPRA sabe tudo. Amanhã dirá que os comerciantes, os industriais, também o são. Em suma, o soviete supremo brasileiro saberá tudo. Os vis escravos em baixo, que tratem de cavar a vida debaixo da chibata.

 

Perg.: (inaudível)

Resposta: A objeção é muito bem feita, e é uma das muitas que se pode fazer contra uma reforma agrária socialista. Eu tive o plano temerário de trazer para cá uma espécie de vista panorâmica da reforma agrária. Por isto, sem perceber, fiz uma das mais longas conferências de minha vida. Raramente falo mais do que 45 minutos. Mas poderia fazer não uma conferência, mas uma série de conferências refutando a reforma agrária e não teria terminado o meu assunto. Os abusos e os absurdos se refutam por meio de enciclopédias.

 

Perg.: Se o livro “Reforma Agrária - Questão de Consciência” apresenta algum tipo de reforma agrária positiva para ser aplicado no Brasil.

Resposta: Apresenta e até bem longa. Não dei dela senão indicações sumárias, porque receava alongar a conferência, que já foi longa. O livro apresenta um programa que considero completo, porque dá indicações em vários pontos essenciais, quer dizer, do lado da produção, do lado do transporte, do lado do consumo, do lado da vida do trabalho rural, de sua remuneração, do lado da aquisição de propriedades novas, do lado da situação do fazendeiro e, inclusive, mostrando em vários pontos que também da parte do fazendeiro tem havido culpa.

Por exemplo, um fazendeiro de asfalto, perpetuamente ausente da fazenda, que quando lá vai não toma um contato vivo com seus colonos, mas um contato distante, que às vezes causa má impressão pela sua extravagância, para não dizer outra coisa. Tudo isto é lamentável.

Mas este programa não é completo debaixo de um ponto de vista: o livro toma uma posição de muita reserva com relação a muita programação e muito planejamento. Não devemos tanto favorecer planejamentos, quanto favorecer a iniciativa privada para que ela aja livremente.

O senhor tome, por exemplo, um colégio que quisesse fazer alunos perfeitos. O aluno sai da aula em passo de parada de soldado prussiano, olhando para o lado direito e depois para o esquerdo e em seguida para frente; pára para brincar um brinquedo dirigido, estuda dirigido; voltam todos as páginas à mesma hora, fazendo tudo do mesmo jeito. Seria um absurdo psicológico, porque a personalidade humana não se expandiria e não produziria, se tivéssemos em vista a produção.

O homem produz tirando de si; a principal força de produção do homem está no homem. Isto está na Mater et Magistra, que diz que o melhor meio para cada homem resolver sua situação é ele próprio. Apresentamos um planejamento completo e apresentamos a sugestão de - por meio de estatísticas a serem melhor planejadas, por meio de uma realidade que difere de Estado a Estado a ser mais bem conhecida - aplicar-se não um plano do Estado fazer tudo ao particular menor de idade, mas um plano para que o particular possa fazer tudo e o Estado faça o que o particular não possa fazer.

 

Perg.: (O microfone não consegue captar a pergunta)

Resposta: Se for uma reforma agrária socialista, garanto-lhe que não. Se há uma coisa de que estamos bem livres é de superprodução. O mundo está cheio de repúblicas socialistas, soviéticas, sub-soviéticas, arqui-soviéticas, pára-soviéticas que fazem tudo, exceto produzir. Produzem política e isto muito bem. Se for uma reforma agrária boa, digo-lhe que ela poderá produzir demais se não for acompanhada de uma outra reforma que se prende um pouco ao princípio que eu enunciava agora, sem entrar em demais pormenores: é o princípio de subsidiariedade.

João XXIII mostra na Mater et Magistra que tudo quanto o homem pode fazer por si, a família não deve fazer por ele. Se um homem em condições precárias de inferioridade precisa que a família o ajude mais do que o normal, a família deve ajudar. Mas a família deve ajudar não lhe dando pão, mas fazendo com que ele possa em breve só precisar dela como um homem normal precisa.

O mesmo se diz do município em relação à família: deve fazer para a família tudo quanto uma família normal não pode fazer por si. Por exemplo, uma família normal não pode manter uma rede de águas e esgotos numa cidade, isto devendo ser feito pelo município. Mas quando uma família é carente de recursos, o município deve agir não para manter aquela família numa perpétua mendicância, mas para que ela saia da condição de mendicância e produza.

O mesmo se diz do Estado em relação ao município, e da União em relação ao Estado. Cada entidade superior é subsidiária das entidades inferiores.

Quanto ao café, o mal está na desorganização e desunião da classe agrícola. Se ela fosse capaz de se reunir, faria por si o que o Estado não precisava fazer. A limitação do café teria sido feita por uma grande cooperativa de fazendeiros que então teria sabido o que o Estado lhe ocultava, isto é, que não havia escoamento para o café armazenado em excesso. O que o particular não pode fazer por si, o Estado pode fazer bem feito. É por isto que vejo com simpatia o movimento cooperativista que exprime algo de iniciativa individual que se forma e desenvolve na classe agrícola.

 

Perg.: Poderia o nobre conferencista dar a sua opinião sobre o plano de ação da “Aliança para o Progresso”?

Resposta: Em primeiro lugar, o plano é imenso. Em segundo lugar, funda-se sobre um enorme conglomerado de pressupostos misturados, verdadeiros e errados, mas sobretudo de ignorância dos fatos.

O documento é baseado numa exposição de motivos e calculado como um plano único para a América Latina. Essa exposição de motivos aponta uma série de causas comuns à América Latina. Ora, fazer uma exposição desse porte a respeito do Brasil já é a mais anticientífica das coisas, porque o Brasil é um continente, e aquilo que se pode dizer do Rio Grande do Sul de nenhum modo se pode dizer do Ceará; e o que se diz de São Paulo de nenhum modo se pode dizer do Acre; e o que se diz de Minas talvez não se possa dizer de cada região de Minas, de tal maneira essas coisas são diversificadas num país em pleno crescimento, que tem, como o Brasil, as irregularidades de crescimento do adolescente.

O adolescente cresce irregularmente, às vezes não combinando partes de seu corpo com outras partes do mesmo corpo. O Brasil cresce irregularmente: de um lado muito crescido, de outro não. Por isto não se vai dizer que ele é subdesenvolvido.

 


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