Aula IX - Desigualdade x Igualdade: a verdadeira batalha religiosa do século XX

Porque a desigualdade na criação é um bem

O universo deve ser semelhante a Deus

As criaturas não podem ter toda a semelhança com Deus, mas apenas alguma parte

Quanto mais espécies criadas haja, tanto maior é a perfeição com que Deus está representado

Portanto, a desigualdade na criação é um bem

A maior desigualdade nas obras criadas manifesta uma maior capacidade do Criador

A “Ceia” de Da Vinci

O “Concilio de Trento” de Ticiano

Quanto mais o poder de Deus se manifesta criando seres diferentes, mais perfeita é a criação

As desigualdades entre os homens: uma “cascata de desprezos” ou uma “cascata de bondades”?

Um conjunto de seres finitos vale mais do que um só ser

Respostas a perguntas

Muitas criaturas desiguais representam melhor a infinitude do entendimento e do poder divinos

A obra de um grande artista deve ter excelência nas relações entre as partes, para isso é preciso que as partes sejam desiguais

Resumo das aulas anteriores

O amor à igualdade ou à desigualdade, uma questão estética-moral-religiosa – a verdadeira batalha religiosa do século XX

O anti-igualitarismo é nossa luz primordial: pontos para um exame de consciência

O valor de Santo Tomás

Porque a desigualdade na criação é um bem

Santo Tomás pergunta se convinha que houvesse várias criaturas, em vez de haver uma criatura só.

Teríamos, depois, uma segunda pergunta: havendo várias criaturas, o que seria melhor: que fossem todas iguais ou todas desiguais entre si? A esta pergunta Santo Tomás dá a resposta seguinte: a desigualdade é um bem. Analisando as respostas que dá, veremos que ele só diz que Deus fez a desigualdade no universo para que a desigualdade fosse uma perfeição no universo; mas, pelas respostas que ele dá, percebe-se que quanto maior o número de desigualdades, maior a perfeição que um determinado conjunto de coisas tem. A desigualdade figura como um bem em si na criação. E esse bem em si existindo também nas obras dos homens, é melhor do que não existir. A desigualdade em si mesma é uma perfeição.

De que maneira Santo Tomás prova isto?

De um modo geral, os argumentos estão no quadro, e vou reproduzí-los.

 

O universo deve ser semelhante a Deus

Primeiro ele mostra que a desigualdade na criação é um bem, considerando Deus como causa e o universo como efeito. Nesta relação de causa e efeito mostra que esta relação é mais perfeita havendo seres desiguais, do que sendo todos os seres iguais. Toma ele como ponto de partida um pressuposto: a criação deve ser semelhante a Deus.

Quem age, tende a plasmar sua semelhança no efeito, na medida em que o efeito comporta. Por exemplo, consideremos um professor. Tende ele a plasmar sua semelhança no efeito, que é o aluno. Tende a dar ao aluno um conhecimento, que é semelhança do conhecimento dele. E a aula será boa, isto é, a causa será eficiente, na medida em que esse efeito for semelhante à causa, ou seja, na medida em que o conhecimento adquirido pelo aluno for semelhante ao professor.

Outro exemplo: um artesão e sua obra. Concebe ele uma determinada obra. Será ela perfeita na medida em que corresponder à imagem concebida pelo artesão. Também um músico e sua composição, um engenheiro e a casa que faz. O músico tem um determinado plano de harmonia e ele compõe uma música para exprimir aquilo que lhe está no espírito. A música será tanto melhor, quanto melhor ela for a expressão da harmonia que está na cabeça do músico.

Enfim, a idéia é de que sempre que uma causa age bem, o efeito é parecido com a causa. Quanto mais perfeita é a causa, tanto mais o efeito é parecido com ela. Quanto melhor o professor, tanto melhor o efeito; quanto melhor o músico, tanto mais perfeita a harmonia, etc.

Conclusão: Deus sendo perfeitíssimo, convinha que o universo fosse perfeitíssimo. Perfeitíssimo não querendo dizer que tenha a maior perfeição possível, mas que tenha um alto grau de perfeição. Para o universo ter esse alto grau de perfeição, naturalmente era preciso que o universo fosse muito parecido com Deus, porque a perfeição do efeito está em sua semelhança com a causa.

Fica provado, portanto, que a perfeição do universo consiste em se parecer com Deus.

 

As criaturas não podem ter toda a semelhança com Deus, mas apenas alguma parte

Outro pressuposto: podemos notar entre causa e efeito duas espécies de relações: algumas vezes o efeito é da mesma espécie da causa. Por exemplo, uma chama que acende outra chama. Esta segunda chama é da mesma espécie da primeira. A segunda chama tem a semelhança perfeita da primeira. Isto porque causa e efeito sendo da mesma espécie, há uma perfeita semelhança entre a causa e o efeito. Mas quando a causa e o efeito são de espécies diferentes, não existe a mesma semelhança. Por exemplo, entre Bramante e a Basílica de São Pedro não há uma semelhança perfeita como entre uma mesa e outra. Bramante fez um plano, mas a basílica não tem a semelhança da espécie de um homem. De maneira que é uma coisa de natureza diversa. E quando a causa e o efeito são de naturezas diversas, o efeito é sempre de uma espécie inferior à causa; sendo assim, ele não pode conter todas as qualidades da causa. É claro. O inferior não pode conter todas as qualidades do superior.

 

Quanto mais espécies criadas haja, tanto maior é a perfeição com que Deus está representado

Temos, assim, dois pressupostos:

1- O universo deve ser semelhante a Deus;

2- As coisas criadas por Deus não podem ter toda a semelhança dEle, mas apenas alguma semelhança.

Admitindo isto, diz ele, todas as coisas criadas são de espécie diferente de Deus. Se são de espécie inferior a Deus, nenhuma espécie pode conter Deus, pode representar Deus inteiramente.

Por isto, quanto mais espécies criadas haja, tanto maior é a perfeição com que Deus se representa; em conseqüência, concluímos que haver várias espécies de seres representa Deus mais perfeitamente do que haver um ser só.

Diz Santo Tomás que as espécies são sempre diferentes umas das outras. Agora, o que é uma espécie?

Uma espécie, na linguagem corrente, é, por exemplo, a espécie Anjo; outra espécie: homem; outra espécie: irracional. Então, puro espírito, espírito mais matéria, matéria apenas. É claro que essas três espécies não podem ser iguais entre si. As espécies são como os números; se eu tiro uma qualidade de uma espécie, ela passa para outra espécie; se eu acrescento uma qualidade, ela também passa para outra espécie. É como o número 7: se eu tiro 1, passo para o 6; se acrescento 1, passo para o 8. Tem de haver várias espécies, e essas espécies têm de ser necessariamente desiguais. De onde se conclui que a desigualdade é um meio que existe para que o universo represente perfeitamente a Deus.

Na linha “homem”, uma comparação que possa dar uma idéia disso é, talvez, Michelangelo.

Michelangelo era capaz de construir, de esculpir e de pintar. Era, portanto, capaz de fazer obras de arte em três categorias diferentes. Ele deu uma demonstração muito mais completa de seu caráter produzindo suas obras de arte em três categorias diferentes, do que produzindo obra de arte de uma só categoria. Isto porque como nele existiam como causa todos esses predicados, numa pintura, por exemplo, ele não poderia pôr tudo quanto contém as outras formas de arte.

 

Portanto, a desigualdade na criação é um bem

Notamos que aí fica provado, dada a relação de causa e efeito que, intrinsecamente falando, a desigualdade é um bem da criação.

Ela é um bem nas coisas que Deus criou e é um bem nas coisas que o homem cria, porque são prolongamentos das obras de Deus. Dante dizia muito bem que as obras dos homens são netas de Deus. Deus é pai do homem, e o homem é pai de suas obras.

 

A maior desigualdade nas obras criadas manifesta uma maior capacidade do Criador

Vejamos o argumento seguinte: quando uma pessoa tem capacidade para muitos atos e só faz alguns desses atos, a sua capacidade não se reduz plenamente a ato, quer dizer, fica nela alguma coisa inexpressa.

Digamos, por exemplo, um homem que tem capacidade para ser um grande orador; ele faria discursos extraordinários. Mas vem uma guerra e ele leva um tiro na língua, e fica com uma capacidade oratória inexpressa. Ele tem a capacidade oratória, pode até imaginar os discursos magníficos que faria, pode até escrever esses discursos, mas não pode fazê-los, porque a capacidade ficou quase que completamente tolhida em sua expressão. A potência dele de dizer certas coisas em certas circunstâncias, se reduz a ato de um modo incompleto.

Lembra ele depois que o efeito é tanto mais perfeito quanto mais reduz a ato a potência de quem age.

Por exemplo, se eu sou pintor e tenho capacidade para pintar um quadro com expressões de fisionomia, esse quadro é menos perfeito do que se eu pinto um quadro com mais fisionomias. Porque neste último eu exprimo mais a minha capacidade pictórica, do que se eu pintasse uma só fisionomia.

 

A “Ceia” de Da Vinci

Digamos, por exemplo, a famosa “Ceia” de Leonardo da Vinci, em Milão. Nesta Ceia ele representou os doze Apóstolos, representou doze fisionomias e doze estados de espírito, doze reações temperamentais diante de uma revelação pavorosa. Pessoas que haviam abandonado tudo para seguir Nosso Senhor, trancadas numa sala num momento de confraternização, ouvem a revelação: “Um de vós vai me trair”. Aparecem logo dois sentimentos: Primeiro, quem é? Segundo, será aquele em que eu notei tal coisa?

Diante disso as reações temperamentais são vivíssimas; e ele pinta doze temperamentos colocados diante de uma mesma situação psicológica e reagindo de maneiras diversas. Ele tem capacidade para representar doze Apóstolos em doze situações diferentes. Da Vinci teve capacidade para ali pintar doze fisionomias.

Se em vez de ter pintado um quadro dizendo só assim: “São Pedro ouvindo a palavra: Tu me trairás”,  o quadro seria muito menos perfeito. Porque a capacidade que ele teve de pintar aqueles doze foi reduzida a ato; enquanto não fosse reduzida a ato, ficaria engarrafada.

   

O “Concilio de Trento” de Ticiano

Eu  tenho uma representação impressa de um quadro atribuído a Ticiano, representando o Concílio de Trento. Ele não quis tomar uma tela imensa, onde pudesse reproduzir as faces dos 400 bispos do Concílio. E, provavelmente, ele nem tinha documentação para as 400 faces. Então, ele representou todos os bispos de costas. E, de frente para o quadro, o altar, alguns livros, o fundo da Igreja. Como ele conseguiu dar movimento ao quadro? Ele pintou as 400 cabeças de costas, em posição de conversa. É algo tão fantástico, que quem vê o quadro acha natural. Não tem impressão nem de que houve um estudo para isto.

Ora, este homem que foi capaz de uma tal obra, não só de talento, como também de grande paciência, de pintar 400 cabeças, se ele tivesse pintado só um quadro: “Bispos de costas no Concílio de Trento”, não teria o quadro alcançado a imortalidade. Como pintou 400, teve ele a capacidade que tinha para aquilo mais plenamente reduzido a ato, donde vem o valor de seu quadro.

 

Quanto mais o poder de Deus se manifesta criando seres diferentes, mais perfeita é a criação

Continuando o argumento: no universo Deus tem um poder infinito; e quanto mais Deus exercitar o seu poder na criação do universo, tanto mais perfeito será o universo, pelo mesmo mecanismo.

Se Ticiano fazendo 400 cabeças consegue fazer um quadro mais perfeito do que se fizesse uma, Deus criando 400 seres faz uma coisa mais perfeita do que criando um só.

Ora, Deus não tem apenas poder de criar seres, mas tem poder de criar seres em graus diferentes; logo, quanto mais graus ele puser na criação, tanto mais ele exerce seu poder de criar graus, e tanto mais perfeita é a criação.

Donde a desigualdade é um elemento intrínseco de perfeição da criação.

 

As desigualdades entre os homens: uma “cascata de desprezos” ou uma “cascata de bondades”?

Vejam que o argumento existe para Deus, para um artista e também para um povo. Um povo que engendre um grande número de classes sociais finamente nuancées na sua organização política e social, pela mesma razão faz uma obra mais completa do que engendrando só uma classe social. Por isto, a nobreza européia, constituída de vários graus nobiliárquicos, engendrou uma coisa muito mais perfeita do que se tivesse apenas a categoria de nobres e todos fossem iguais. [ND: Página microfilmada sobre outra] ....

Conclusão: é bom que haja desigualdade para que haja alguns a quem dar. De onde desaparece exatamente aquilo que é o nervo da Revolução: a idéia de que o homem que precisa é um coitado; todo aquele que recebe um favor é um humilhado. Isto é falso. Está na economia da Providência que uns homens recebam de outros.

De onde concluímos: se vejo uma sociedade muito desigual, afirmo que é bela; cada homem imita a Deus em relação a seus inferiores.

O oposto: nas vésperas da Revolução Francesa, um escritor [Padre Sieyès], que era um revolucionário de quatro costados, escreveu um livro descrevendo a desigualdade social, para provar que ela não deveria existir, e à luz do Evangelho. E ele interpretava isto com uma expressão [...]: “Se nós analisamos o rei que se julga superior ao príncipe de sangue,  e o  príncipe de sangue que se julga superior ao príncipe comum, o qual é superior ao duque, este ao conde, etc.,  etc., nós vemos que a organização social que a França herdou do feudalismo, e que ainda existe em grande parte no momento presente, é uma cascata de desprezos”.

Notem as duas interpretações diversas: um diz que é uma cascata de desprezos; o outro diz que é uma cascata de bondades.

 

Um conjunto de seres finitos vale mais do que um só ser

Outro argumento: vamos imaginar que Deus tenha criado um mundo muito mais excelente do que este; um ser só, muito melhor do que este e, portanto, um ser que na unidade de sua essência tivesse qualidades muito maiores do que as que estão distribuídas por aí. Diz ele que este ser é um ser finito. Um ser finito é uma riqueza finita; uma riqueza finita vale sempre menos do que esta riqueza finita mais outra. De maneira que, dado um mundo mais perfeito, vale sempre mais ter mais alguma coisa além dele.

[Aparte inaudível]

Tomemos a pedra e a água. A pedra tem uma porção de qualidades próprias. Ninguém nega que a água tenha também qualidades próprias. Porém, há uma impossibilidade radical de se fazer alguma coisa que seja, ao mesmo tempo, pedra e água. No nível da existência da pedra e da água, ou bem uma coisa é pedra, ou bem é água. Mas ser pedra e água ao mesmo tempo é  impossível. Isto porque todo ser contingente só pode conter certo número de perfeições.

Imagine dois homens. Você não pode supor uma pessoa que seja, ao mesmo tempo, um grande jurista, um grande médico, um grande doutor, porque acaba não sendo nada disto. A capacidade humana é, em si mesma, limitada. Um homem pode ter um certo número de perfeições. Se fossem colocadas aí, acabariam atrapalhando. Ou bem o homem é um grande general, ou bem é um grande filósofo. Mas um grande filósofo-general é uma coisa cujos termos se contradizem.

Com Deus em relação às criaturas acontece a mesma coisa que um [raio de] luz perfeita, e uma porção de prismas. Em Deus não há a limpidez da água ou a rigidez da pedra, mas alguma coisa muito superior a isto, virtualmente, mas não atualmente.

 

Respostas a perguntas

[Aparte inaudível]

Este ser mais elevado poderia ser, por exemplo, um Serafim e um Querubim. Em cada nível da criação, em cada nível ontológico, essas perfeições tomam um modo de existência diferente, que está virtualmente no sumo bem.

[Pergunta inaudível]

Porque há certas perfeições que são uma espécie de ficha de consolação [para o] ser inferior, porque o ser superior não precisa ter aquela perfeição porque ele tem algo que é mais adequado. Este ser mais eminente não terá atualmente as perfeições que só são próprias aos seres inferiores, mas terá outras perfeições que lhe são próprias; mas terá, por sua vez, essas perfeições que [é impossível] a Deus não ter.

Por exemplo, o Anjo tem idéias distintas dele. A idéia, no Anjo, é uma perfeição para o Anjo, é uma perfeição que não se encontra da mesma forma no homem, porque a idéia, no homem, não tem um modo tão perfeito de existir como no Anjo. Os animais, mais imperfeitos, nem têm  idéia, mas têm uma perfeição que não está no Anjo, que é o instinto. Em Deus, propriamente falando, nem há idéia, porque Ele mesmo é uma grande idéia só.

Se você pôr num plano superior, a coisa sempre vai por cima. [ND: Página microfilmada sobre outra.] ....

A tese, a antítese e a síntese. Tirando o aspecto dialético disso, a coisa está certa; à medida que uma perfeição vai degradando nos níveis inferiores do ser, ela vai apresentando oposições internas, que a tornam incapaz de existir no mesmo ser. Agora, à medida que essa perfeição vai se tornando mais perfeita, ela vai admitindo em si coisas que um ser mais baixo não admite.

(Por que então Deus não pára nesse primeiro ser, e precisa continuar?)

Uma vez que a criação está no domínio do contingente, uma vez que a luz entrou no prisma, o melhor é que percorra toda a escala do prisma.

(Então, o primeiro ser não pode conter todas as qualidades de todos os outros)

Não, não pode. Uma vez que você saiu da ordem do necessário para o contingente, o melhor é a máxima multiplicação. Porque aí você entrou na ordem de coisas em que se cria [...]. Então você precisa multiplicar o máximo possível, par discriminar o máximo possível. [ND: Página microfilmada sobre outra] ....

 

Muitas criaturas desiguais representam melhor a infinitude do entendimento e do poder divinos

Diz que Deus entende muitas coisas. O entendimento plasma os seres, de acordo com o entendimento que tem desses seres; entende as coisas em si. Se Ele entende muitas coisas, convém que crie muitas coisas, para a sua potência cognoscitiva reduzir-se a ato. Por causa disto convém que haja muitas coisas no universo. Mas como ele é capaz de entender muitas coisas desiguais, convém que crie muitas coisas desiguais. As coisas desiguais representam melhor a perfeição do entendimento de Deus.

O mesmo se diz em relação  à vontade. O poder de Deus é de criar muitas coisas. Portanto, quanto mais coisas Ele crie, mais perfeitamente o poder dele se reduz a ato, mais perfeita será a criação. Mas como tem poder para criar coisa de graus diversos, convém que Ele crie de diversos graus. A diversidade de graus é uma excelência a mais no  universo.

 

A obra de um grande artista deve ter excelência nas relações entre as partes, para isso é preciso que as partes sejam desiguais

Sexto argumento: Para a obra de um grande artista convém ter uma grande perfeição. Na obra de um grande artista pode-se distinguir a perfeição de cada parte e a perfeição das relações que o artista estabelece entre as várias partes.

Por exemplo, um artista que fez o Parthenon de Atenas. Cada uma daquelas partes, digamos as colunas, são muito bonitas; cada uma das colunas é excelente. Naquela colunata temos uma primeira perfeição que está na excelência daquelas colunas. Mas temos uma segunda perfeição que não está na excelência de cada coluna, mas nas relações dessas colunas entre si, e com o todo do edifício no qual devem ser postas.

Há duas espécies de perfeições: a perfeição intrínseca a cada parte, e a perfeição das relações que unem essas partes para fazerem um todo excelente.

Por exemplo,  a música. É sabido que no piano o grande músico tem um modo de tocar a nota que difere do modo datilográfico, inexpressivo, do indivíduo que não tem chama musical. Só no modo dele tocar a nota, obtém uma vibração excelente. Então, na música devemos notar duas coisas: a beleza de cada nota e a relação das notas entre si para constituírem a melodia.

Santo Tomás diz que em todo ser devemos distinguir a excelência das partes e a excelência das relações entre as partes para formarem um todo. A excelência do todo é maior que a excelência das partes. O melhor que uma coisa tem, diz, não é a excelência de cada uma de suas partes, mas a excelência do todo, da coordenação. Para que no todo haja harmonia, é necessário que as partes sejam desiguais, porque onde há igualdade não pode haver harmonia, não pode haver a ordenação de uma coisa a outra de um modo conveniente. Portanto, para a perfeição do todo convém que as partes sejam desiguais.

De maneira que quando notamos a desigualdade num todo, não é ela em benefício dos superiores, mas é em benefício de cada uma das partes desse todo. De maneira que, praticamente, quando noto uma organização política, social, desigual, não devo pensar que essa desigualdade é um mero privilégio daqueles que estão acima, mas a desigualdade é um privilégio do todo. É do interesse do todo que haja essa desigualdade.

Portanto, esse conceito moderno de que a desigualdade de fortuna só beneficia os ricos, a desigualdade social só beneficia os nobres, a desigualdade na Igreja entre clérigos e leigos só beneficia os clérigos, é uma coisa mentirosa. É o todo da Igreja, o todo da sociedade civil que se beneficiam com isto. Também os inferiores se beneficiam com essa desigualdade.

 

Resumo das aulas anteriores

Concluindo: nestas aulas demos o seguinte:

1- Mostramos que existe um movimento universal que tende promover a igualdade e a unidade entre todas as coisas, levado por uma paixão da unidade e da igualdade e da simplicidade, que é um verdadeiro culto em certo tipo de mentalidade moderna. O simples aí entra para o primitivo; a unidade entra para a unicidade, que é uma coisa diferente.

2- Vimos que este movimento para a unidade tem implicância e antipatia com tudo quanto é desigual, diverso e complexo. É antipatia que, no fundo, é temperamental. E é uma espécie de birra pessoal. Aquilo é desigual, tem-se antipatia. Por que não simplificar? Por que não nivelar, não eliminar as diversidades?  É um movimento profundo que vem de camadas e camadas da alma humana de hoje. E note-se que do lado estético esta tendência vai até o modo de se compreender um homem. Passa de uma simplicidade para outra. É o culto da espontaneidade. Por que não ser espontâneo? É muito melhor a pessoa simples, espontânea, bondosa, etc.

Daí o tipo play-boy, simples, mecânico, espontâneo. Isto, que é um ideal estético, acaba sendo um ideal de humanismo. E acaba sendo um estilo de vida com que o indivíduo quer a organização política, social e econômica mais simples.

Muita gente é a favor da república universal por simplicidade: acaba com as guerras, acaba com diplomatas, com tratados, com relações exteriores. Põe um tacho em cima: a ONU. Daí, tudo simples. A ONU tem seus procuradores por toda parte que, afinal, governam [...] com simplicidade também, uniformiza-se tudo. E o mundo, posto num liquidificador e transformado numa substância homogênea, fica uma coisa razoável, simplificado.

Nisto também a cultura cada vez mais simples, decoração cada vez mais simples. E a simplicidade da simplicidade é a república do sufrágio universal.

 

O amor à igualdade ou à desigualdade, uma questão estética-moral-religiosa – a verdadeira batalha religiosa do século XX

Notem agora o que está em foco aqui. Não está em foco uma questão qualquer. No fundo, está em foco uma questão estética. É o amor à simplicidade ou o amor à diversidade; o  amor à igualdade ou à desigualdade.

É uma questão estética, mas que, no fundo, é uma questão religiosa e moral. E esta questão estética-moral-religiosa fazendo desta perfeição um reflexo de Deus na terra, é esta a verdadeira batalha religiosa do século XX.

Esta batalha religiosa não se dá com dogmas, com a definição, propriamente, de certas verdades, isto é, batalhando explicitamente em torno da Revelação, nem se dá entre protestantismo e catolicismo, etc. Tudo isto são batalhas que continuam, mas secundárias.

No Circo Romano havia um espetáculo em que lutavam primeiro os homens grandes. Depois, por variedade, colocavam pigmeus também lutando. Pode-se dizer que o mundo contemporâneo apresenta o mesmo aspecto: há uma luta de titãs; é este campo. Ao lado dele os anões continuam a lutar sobre catolicismo e protestantismo, sobre religião cismática, o dogma tal, espiritismo, etc. Não nego que vale a pena esmagar esses monstrinhos. Mas digo que o grande monstro de nosso tempo é essa adoração de um dogma estético-ético-religioso, que é propriamente a questão da desigualdade e da variedade; ou então, questão da uniformidade e da igualdade.

Em última análise, é isto que explica a crise religiosa do Brasil. O país todo acredita nos dogmas, e no fundo não acredita em nenhum dogma. Ele foge do espírito desses dogmas pela adoção de orientações, de estados de espírito que são completamente opostos a isto. E o apostolado dos apostolados, a meu ver, é exatamente colocar em foco este problema central, e afirmando o caráter estético-ético-religioso do problema central.

Lembro-me de uma conferência do Pe. X, jesuíta, em que ele diz que “nosso século não tem o senso das questões religiosas, mas só tem o senso das questões sociais. Foi-se o tempo em que o povo vibrava diante do Concílio de Nicéia, para saber qual era a verdadeira natureza de Jesus Cristo. Hoje o povo quer saber de questões sociais: participação nos lucros, e não natureza divina ou humana de Nosso Senhor Jesus Cristo. Portanto, é preciso descer a esse terreno e responder ao povo na ordem de seus lucros”.

Isto é tolice, porque não é por ganância que os igualitários querem a igualdade. Querem-na por uma razão ética-estética-religiosa. Têm eles ódio da desigualdade enquanto desigualdade, e eles amam a igualdade enquanto igualdade; têm ódio da diversidade enquanto diversidade, e amam a uniformidade enquanto uniformidade. E isto é uma posição religiosa e moral.

É preciso ver a questão religiosa onde o homem  do século XX a vê. Não pode vê-la em termos que o Concílio de Nicéia já resolveu. E a questão religiosa de nossos dias é esta. Os dois estandartes de hoje são os da igualdade e o da desigualdade.

Acho que nunca é muito insistir nisto, e nós, em contato com outros, [devemos] colocar a questão onde deve ser colocada. Não adianta discutir se a participação dos lucros aumenta ou não a produção. Isto é interessante, mas o importante é mostrar que isto é um aspecto colateral de uma questão.

 

O anti-igualitarismo é nossa luz primordial: pontos para um exame de consciência

Caberia também a nós uma indagação na linha do exame de consciência.

- Sempre que vemos uma desigualdade, temos a noção de que é um reflexo de Deus?

- Sempre que vemos uma diversidade harmônica, temos noção de que devemos amá-la e nela ver um reflexo de Deus?

- Sempre que notamos um indivíduo picado pela mosca do igualitarismo ou da uniformidade, pensamos que está fazendo o jogo de satanás? Mesmo quando esse indivíduo é nosso [parente], quando esse indivíduo somos nós mesmos?

É uma questão para perguntar.

Eles participam desse pecado, nós também participamos. Quem participa desse pecado é todo o mundo que é levado a condescender com esse espírito, que tem eivas deste espírito igualitário.

Ter eivas desse espírito igualitário é ter parte com o demônio. E quanto mais soubermos pegar este princípio, parafraseá-lo, desenvolvê-lo, etc., tanto mais seremos fiéis à nossa vocação.

Aqui está nossa linha e nossa luz primordial. Absolutamente,  il faut passer par là.

E também num outro ponto:

- Quando vemos alguém superior a nós, nós nos lembramos de não ter inveja? E, pelo contrário, damos graças a Deus pela superioridade daquele?

 

Resumindo:

- Focalizamos o nervo central dos problemas de nossos dias.

- Mostramos com os Anjos, com os homens, com os animais, com as plantas; porque Deus os fez desiguais, e em que sentido os fez; que bem há em que os tenha feito desiguais.

- Gostamos de desigualdade de vários degraus. Exatamente essa desigualdade representa as desigualdades numerosas, mas não muito grandes entre si; não há, por exemplo, uma sociedade organizada onde senhores e escravos.... [ ND: Página microfilmada sobre outra.]

 

O valor de Santo Tomás

...Parece-me que o Papa João XXII dizia que Santo Tomás, por si só, difundira mais luz na Igreja do que todos os outros doutores. Valeria a pena dizer que preferimos ter Santo Tomás conosco, ainda que tivéssemos todos os doutores contra, a termos todos conosco e não termos Santo Tomás. Não se trata de uma tomada de posição incidente de Santo Tomás, uma referência, um capítulo à parte em suas obras. Isto está de tal forma em seu sistema, em sua própria concepção de Deus Criador e Moderador do  universo, que negar isto é negar o próprio sistema tomista. É toda uma das bases do tomismo que rui com isto.

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