Aula III - A Justificação da desigualdade segundo Santo Tomás de Aquino

Resumo das aulas anteriores

O que é este igualitarismo aos olhos da Religião?

A desigualdade é um bem: odiar a desigualdade é querer o contrário de Deus

Por que odiar aquilo que é semelhante a Deus é o mesmo que odiar a Deus?

Uma argumentação baseada, fundamentalmente, em Santo Tomás de Aquino

A importância de Santo Tomás de Aquino

Atualização do terceiro sofisma: a igualdade no ponto de partida

Atualização do Primeiro erro

Atualização do Segundo erro

A desigualdade é um grande bem

No que consiste o refletir as perfeições de Deus

Resumo da argumentação

 

Resumo das aulas anteriores

Em nossa última aula notamos como estamos diante de uma bem planejada revolução igualitária que visa a transformação de tudo quanto no universo é transformável, para estabelecer nestas coisas a igualdade.

Além disso, visa a apresentação ao homem de vários aspectos do universo que não são transformaveis pela ação do homem, de tal maneira que ele perca a consciência da desigualdade existente, e em todas as coisas tenha ele a ilusão de ver a igualdade.

Trata-se de [...] por uma propaganda e por uma insistência nesses pontos, tanto quanto possível, dar ao homem uma visão panorâmica [igualitária] do universo. Pelo menos fazer com que o fato irremediável das igualdades e desigualdades existentes no universo não entrem na cultura do homem, e não sirvam de ponto de partida para o homem fazer nenhuma reflexão. E  então o homem fica colocado num panorama que, em última análise, é um panorama igualitário.

Tive, então, ocasião de mostrar que se a humanidade, em nossos dias, visa em todos os pontos a igualdade, se ela quer que todas as coisas sejam iguais, em última análise, em todas as coisas ela considera a igualdade como valor supremo. E é da igualdade que ela gosta mais do que tudo e acima de todas as coisas. E então podemos dizer que ela tem uma verdadeira adoração pela igualdade, tem um verdadeiro mito da igualdade, ela vive para a igualdade.

 

O que é este igualitarismo aos olhos da Religião?

Podemos, então, legitimamente perguntar: esta igualdade o que é aos olhos da Religião?

Temos  aqui a tese revolucionária: em  todas as coisas, o maior bem que elas podem atingir é serem iguais entre si, e tudo ser igual a tudo. Desta tese revolucionária devemos perguntar o que  pensa a Igreja.

Então, a respeito disto eu enuncio a tese e depois demonstro que é assim que pensa  a Igreja Católica.

 

A desigualdade é um bem: odiar a desigualdade é querer o contrário de Deus

A tese da Igreja é a seguinte: não é verdade  que a igualdade seja um bem. Pelo contrário, é verdade que a desigualdade é um bem.

Deus criando o universo, criou-o na desigualdade, para que na desigualdade melhor se configurasse a semelhança de Deus. O universo consegue exatamente suas melhores expressões da semelhança de Deus pela desigualdade.

Odiar a desigualdade é odiar, portanto, aquilo que há de mais semelhante a Deus no universo. Odiar a semelhança de Deus é odiar o próprio Deus. Portanto, querer a igualdade como valor supremo é querer o contrário de Deus.

Explanação da prova

Resolvi enunciar esta tese de outra forma, para que a respeito dela não houvesse dúvida nenhuma.

1- A Igreja afirma o seguinte: Deus criou o universo com desigualdades, e com desigualdades enormes. O autor dessas desigualdades é Deus.

2- Segunda tese da Igreja: estas desigualdades não existem em conseqüência do pecado original, não existem como uma punição, não existem como uma espécie de desfiguração que foi introduzida no universo  pelo mal e pelo pecado. Pelo contrário, a desigualdade existe como uma qualidade excelente do universo. Existe, exatamente, como um requinte de perfeição do universo.

3- Terceiro ponto: por que requinte de perfeição do universo? Pelas provas que S. Tomás de Aquino dá especialmente na Suma contra os gentios (Livro II, cap. 45). É pela desigualdade que Deus se manifesta melhor aos homens. É exatamente porque existe a desigualdade no universo que mais brilha aos olhos dos homens a semelhança do universo com Deus. E é por causa disto que a desigualdade representa um bem, em si mesma. É porque é a melhor semelhança com Deus.

E, por causa disto ainda, chegamos à conclusão de que querer destruir no universo a desigualdade é  querer destruir o que ele tem de mais alto, o que ele tem de mais excelente, o que ele tem de mais deiforme (eu me atrevo dizer), em que o aspecto de Deus melhor se reflete.

Ora, odiar aquilo em que Deus mais se reflete é odiar o próprio Deus. Por esta forma, é uma coisa inteiramente evidente [que a Revolução Igualitária] é contra Deus.

Por que odiar aquilo que é semelhante a Deus é o mesmo que odiar a Deus?

Suponham que eu decorasse uma sala, ou que eu escrevesse um artigo, que eu formasse o espírito de um rapaz. Alguém, em contato com esta sala, diz: “É antipática”. Lendo o artigo, diz: “É [antipático] o artigo”. Vendo o rapaz [...]: “Abomino este rapaz”. Este alguém tomou alguns aspectos que refletem minha mentalidade, e odiou estas coisas. Evidentemente esse alguém me odiou. Não é possível que este alguém  não me odeie, odiando tudo aquilo que tem alguma semelhança comigo, que tem uma projeção de mim.

Ora, a desigualdade é o melhor meio para se refletir a imagem de Deus. Logo, odiar a desigualdade, é odiar a Deus.

Uma argumentação baseada, fundamentalmente, em Santo Tomás de Aquino

Para vermos qual é o mecanismo desta demonstração, eu preciso lembrar que encontramos esparsos pelos documentos pontifícios muitos trechos a respeito da questão da igualdade e da desigualdade. Leão XIII tem trechos excelentes. São Pio X tem alguns trechos; vários outros papas tem trechos muito bons. Mas seria preciso fazer uma espécie de coletânea de textos pontifícios sobre a desigualdade, para que com estes textos em mão se possa demonstrar que a desigualdade é conforme a doutrina católica, e que a igualdade não é uma coisa que deva ser procurada.

Infelizmente não tivemos ainda o pesquisador paciente e imensamente eficiente para nós, que fosse capaz de coletar esses textos todos. Assim, minha demonstração é baseada toda ela em Santo Tomás de Aquino, o que é de um grande valor, porque sabemos que a adoção da filosofia de Santo Tomás não é inteiramente facultativa ao católico. Sabemos que, pelo contrário, em virtude da Encíclica Aeterni Patris [4-8-1879] de Leão XIII, o católico deve ser tomista. E há provas de apoio da Igreja a Santo Tomás de Aquino tão impressionantes, que vale a pena darmos alguns desses dados para compreendermos, do ponto de vista da doutrina católica, o quanto vale isto.

A importância de Santo Tomás de Aquino

Falando para um tal auditório, sei que é inteiramente supérfluo afirmar a importância de Santo Tomás de Aquino. Mas, infelizmente, há muitos católicos que não vêem Santo Tomás de Aquino com os olhos com que nós o vemos, e que discutem Santo Tomás como algo que é perfeitamente discutível. De maneira que como nós vamos nos enfrentar com tais católicos, acho interessante dar aqui alguns dados para mencionarmos, se acharem que nos baseamos num  doutor cuja opinião é respeitável, mas que é tão susceptível de ser contestado como a de qualquer outra pessoa.

1o) É o único Doutor da Igreja que foi elogiado em documentos oficiais por nada menos do que 69 papas. Queira-se dizer o que se quiser sobre o fato de que os papas não são infalíveis quando não se exprimem ex cathedra, o elogio de 69 papas, para um católico, representa muita coisa.

2o) A Encíclica Studiorum ducem [29-6-1923] de Pio XI, sobre Santo Tomás de Aquino, lembra que no Concílio de Trento, que se deu no século XVI para refutar os erros protestantes – um dos maiores Concílios que houve em todos os tempos –, sobre o altar do Concílio, onde se achavam os livros para consulta dos padres conciliares, só havia duas obras: a Bíblia e a Suma Teológica. Ora, para que um Concílio coloque esta obra ao lado da Bíblia, num altar, como fonte de consulta, como fonte de ensinamento infalível da Igreja, vale alguma coisa mais do que “x”.

3o) O Código de Direito Canônico elaborado por um santo, São Pio X, e promulgado por Bento XV, com autoridade de Papa, recomenda que nos seminários o ensino oficial seja feito de acordo com o método e a doutrina de Santo Tomás de Aquino. Quer dizer, para a formação de seus clérigos é a orientação que a Igreja determina.

4o) Ainda ele tem a autoridade (que muitos santos também têm) de Doutor da Igreja, mas elevado a esta categoria por outro santo, que foi São Pio V, em 1567.

5o) Alguns elogios feitos a ele pelos papas. Por exemplo, João XXII, século XIV, declarou o seguinte: “A doutrina dele é, por si mesma, miraculosa, porque excede a capacidade do homem levar o seu acerto tão longe quanto ele levou”. “Ele sozinho iluminou mais a Igreja do que todos os outros doutores juntos”.

Na Encíclica Aeternis Patris, de Leão XIII, o Papa diz a respeito dele o seguinte: “Ele é comparável ao sol, porque reaquece o mundo com o esplendor de sua virtude, e o enche com a irradiação de sua doutrina”.

Santo Inácio de Loyola, nas regras sentire cum Ecclesia, aponta como indício de espírito católico o fato da pessoa seguir a filosofia escolástica. Quer dizer, é um Doutor tal que pensar como ele é indício do espírito católico; discordar dele é, portanto, falta de espírito católico. E isto é dito pela figura máxima do espírito católico, que é Santo Inácio, que brilhou na questão do senso católico, assim como Santa Teresa brilhou no assunto da oração, etc.

Pio XII deu-lhe o título de “o doutor comum da Igreja inteira”. Quer dizer, Doutor de todos para tudo.

Por fim, na obra de Pio XII as referências a Santo Tomás de Aquino são incontáveis.

Portanto, trata-se de uma autoridade incontestável.

Isto tudo estabelecido, vamos entrar em nossa matéria.

O sistema de discussão tomista

Como Santo Tomás prova isto que eu acabo de dizer, e como se prova que a doutrina da Igreja é a doutrina de Santo Tomás? Essa excelência da desigualdade como sendo o melhor reflexo de Deus na criação?

Para sabermos isto, devemos proceder de acordo com o método de Santo Tomás.

Na Suma, todas as vezes que formula uma questão: ele pergunta por que tal coisa é de tal jeito? Por exemplo, se todas as coisas devem ser iguais, ou se a desigualdade provém do pecado. E, em geral, ele dá a doutrina errada antes. Parece, por exemplo, que a desigualdade provém do pecado. Por quê? Ele dá alguns argumentos. E acrescenta: entretanto, pode-se dizer que a desigualdade não provém do pecado. É a tese dele. E dá alguns argumentos. Depois passa ele para o corpo da demonstração e prova a tese verdadeira. Numa espécie de epílogo ele rebate os argumentos falsos, analisa sumariamente algum argumento que deu e conclui a exposição do assunto.

Primeiro erro: “Um Deus sumamente bom só pode fazer seres sumamente bons, e não seres desiguais

Santo Tomás, na  Summa contra Gentiles , começa por dar as razões pelas quais parece que as coisas devem ser  iguais. E essas razões acabam atingindo também a raiz do igualitarismo de nossos dias. Em última análise elas são as raízes do igualitarismo de nossos dias.

Ele começa por dizer: “parece que toda igualdade é um bem”. E dá o seguinte argumento: “porque Deus, sendo sumamente bom, age mal fazendo as coisas inferiores, que não seriam dignas dEle e nem seriam sumamente boas”.

Vamos imaginar que eu tenho um colar de pérolas com cinco pérolas de tamanhos desiguais. Pergunta-se: Deus é o autor dessas desigualdades? Ou, segundo uma tese dos maniqueus, essas desigualdades seriam obra do demônio? Deus criou todas as coisas boas e  o demônio as tornou desiguais, ou o pecado as tornou desiguais?

Então, a tese a favor da igualdade seria a seguinte: “Tudo o que Deus faz é sumamente bom; e quem é sumamente bom só pode fazer coisas sumamente boas. Ora, quando as coisas são desiguais, algumas não são sumamente boas, porque do contrário não seriam desiguais. Logo, Deus não pode ter feito as coisas desiguais”.

Segundo erro: uma mesma causa sempre produz os mesmos efeitos; logo toda  a criação que saiu de Deus, deve ser igual

Outro argumento de Santo Tomás de Aquino é o seguinte: “Segundo Aristóteles, o efeito da unidade é a igualdade. É claro. Numa causa una o efeito é sempre igual. Por exemplo, água. A água num laboratório produz sempre as mesmas reações. Isto porque a causa é uma. Ela produz, portanto, sempre um efeito igual. Se a causa fosse variável, evidentemente que os efeitos também o seriam. Mas sendo uma causa una, simples, sempre igual  a si mesma, o efeito por ela produzido tem que ser sempre igual. Ora, diz ele, Deus é uno; logo, o efeito dEle tem que ser sempre igual. E não se pode compreender que Deus faça coisas desiguais.

Explicando ainda mais, diz Aristóteles: a coisa sendo una, o ser uno produz naturalmente efeitos iguais. Deus, sendo uno, deveria ter produzido efeitos iguais.

Terceiro erro: Deus não poderia ter dado atributos desiguais sem causa alguma a criaturas que ainda não existiam

Outra coisa que ele diz: “Só se dá coisas desiguais a seres desiguais”. Por exemplo, se eu tenho três pessoas para distribuir comida; são pessoas que têm necessidades físicas desiguais, eu dou a elas quantidades desiguais de comida. Se eu tenho três soldados com méritos diferentes, eu dou a eles três condecorações desiguais. Se tenho três alunos com provas diversas, dou a eles notas desiguais. Porque a seres desiguais se dão coisas desiguais.

Diz ele: “Antes dos seres serem criados não podiam ser desiguais. Logo, Deus não podia ter dado a esses seres uma sorte desigual, atributos desiguais, etc.”.

Imaginem Deus antes de ter criado os seres. Ele imagina um Luiz, um Adolpho e um Plinio; e Ele imagina de dotar desigualmente esses seres, aquinhoando esplendidamente o Luiz e o Adolpho e desaquinhoando o Plinio. Bem, Deus fez uma injustiça com isto. E por que? Porque que Ele desse ao Adolpho e ao Luiz mais do que a mim depois de nós existirmos, compreende-se. Eles mereceram mais e eu mereci menos. Mas antes de termos existido, eles não podem ter merecido mais do que eu. E Deus fez uma coisa injusta. Porque se a desigualdade se dá como uma consequëncia de méritos ou de castigos, os homens, antes de  serem criados, não tinham méritos. Deus não podia fazer o plano de dar mais ou menos antes de criá-los e deles terem pecado.

Esses são os três argumentos que Santo Tomás de Aquino apresenta para justificar a igualdade entre os seres.

Atualização do terceiro sofisma: a igualdade no ponto de partida

Vamos analisar agora o mais fácil desses argumentos, que é o terceiro: Deus dá a seres desiguais coisas desiguais. Mas quando os seres são iguais, Deus não lhes pode dar coisas desiguais. Haveria uma injustiça.

Esta opinião existe hoje sob que forma? Na idéia de que todo homem, por sua natureza, é de uma igualdade completa em relação aos outros. Esta é a lei da natureza. A natureza cria todos os homens inteiramente iguais. Uma desigualdade no ponto de partida é uma injustiça na ordem das coisas. Todos devem ser iguais. Apenas depois, em razão dos méritos ou deméritos, é que os homens devem se diferenciar. Exatamente é essa a tão famosa opinião corrente hoje. O ponto de partida deve ser o mesmo para todos os homens na vida.

Isso vai frontalmente contra a doutrina católica, mas é precisamente o mesmo argumento falso, expresso por exemplo na Declaração dos Direitos do Homem da Revolução Francesa [...] e que “todos os homens nascem livres e iguais”. E isto é exposto e repetido como se fosse uma justiça da natureza. E coisa curiosa: os clérigos com assento na Constituinte, ou na Assembléia da Revolução [Francesa] não souberam refutar com base em Santo Tomás. Isto porque Santo Tomás já estava desmoralizado naquele tempo.

Mais ainda. Sabemos que a constituição norte-americana teve a ajudá-la mãos eclesiásticas, que consignaram esse princípio (*).

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(*) Em seu "Auto-retrato filosófico" (1994), o Prof. Plinio explaina sobre o assunto em questão e nos pareceu útil aqui transcrever:

Os princípios de 1789: tendência para a liberdade e igualdade completas 

A tese igualitária exprimiu-se na Declaração dos Direitos do Homem - magna carta da Revolução Francesa e da era histórica por esta inaugurada — em toda a sua nudez: ”Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos” . É claro que este princípio é suscetível de uma boa interpretação. Fundamentalmente, isto é, considerados em sua natureza, os homens realmente são iguais. É apenas pelos acidentes que são desiguais. Por outro lado, sendo dotados de uma alma espiritual, e portanto de inteligência e vontade, são eles fundamentalmente livres. Os limites dessa liberdade estão apenas na lei natural e divina e no poder das diversas autoridades espirituais e temporais às quais os homens devem sujeitar-se.

Que em todos os tempos tenha havido autoridades que violaram a fundamental igualdade e a fundamental liberdade do homem, ninguém o pode negar. Que ao longo da História se notaram, em contrapartida, sucessivos movimentos de defesa em face dos excessos da autoridade, procurando contê-la em seus justos limites, é evidente. Que tais movimentos, enquanto circunscritos a esse objetivo, só merecem aplauso, também é inquestionável. A igualdade e a liberdade — retamente entendidas — podiam ser lembradas utilmente no século XVIII, como em qualquer outra época.

É bem certo que em 1789, entre os revolucionários das primeiras horas, havia pessoas que não desejavam senão uma justa contenção do Poder Público, e entendiam a igualdade e a liberdade promulgadas pela Declaração dos Direitos do Homem no seu sentido mais favorável.

Mas o texto da famosa Declaração era por demais genérico: afirmava a igualdade e a liberdade sem lhes mencionar qualquer restrição. Isso propiciava uma interpretação lata e desfavorável: uma igualdade e uma liberdade absolutas e onímodas.

Bem entendido, esta interpretação é a que correspondia ao espírito da Revolução nascente. Ao longo do seu curso, foi ela alijando todos aqueles de seus partidários que não comungavam nesse espírito. A caça aos nobres e aos clérigos foi seguida pela caça aos burgueses. Só o trabalhador manual devia subsistir.

Caído o Terror, a burguesia, desejosa de eliminar por toda a Europa as antigas classes privilegiadas, continuou a afirmar os imortais princípios de 1789. Ela o fazia de modo ambíguo e imprudente, não duvidando em suscitar nas massas populares a tendência para a igualdade e a liberdade completas, a fim de obter o apoio delas na luta contra a realeza, a aristocracia e o clero.

Esta imprudência facilitou em larga medida a eclosão do próprio movimento que haveria de pôr em xeque o poder da burguesia.

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Por outro lado, há algo mais fundo, que é o seguinte: há uma espécie de igualitarismo católico que consiste em achar que há uma injustiça em considerar que alguém seja inferior a nós, porque Deus, Pai de todos, ama a todos igualmente. E a gente afirmar uma desigualdade é ir contra a intenção de Deus, é imaginar um Deus  não igualitário. Sendo todos os homens iguais perante Deus, e Deus os amando infinitamente, afirmar-se alguma desigualdade é insultar a ordem posta por Deus, é agir contra o espírito de Deus. Por exemplo, o Evangelho: Jesus Cristo veio pregar a igualdade entre os homens. E alguém que se insurja contra o princípio de igualdade tem um procedimento anti-evangélico.

É exatamente contra essa idéia que Santo Tomás fala. É uma idéia muito moderna.

Atualização do Primeiro erro

Passando para o primeiro argumento, fácil também de refutar: “Deus é sumamente bom e Ele, portanto, não pode fazer coisas que não sejam igualmente boas, porque sua obra só pode ser sumamente boa”.

Qual é uma das formulações correntes desse argumento falso? Consiste no seguinte: considerar que todo homem inferior ao outro é um homem que está num estado de vergonha e de humilhação. E que por isto é um pobre coitado. A caridade de Deus, então, nos pediria que nós tratássemos bem e amássemos esse homem, porque a desigualdade é um estado mau, uma inferioridade, um estado ruim. Isto implica exatamente em afirmar que todos os homens desiguais estão num estado defeituoso, há qualquer coisa de defeituoso na situação dos homens inferiores. Implica em achar, portanto, que Deus fez alguma coisa defeituosa, e fez uma ordem de coisas em que os homens são desiguais. Isto é muito comum no gesto de ter pena do homem inferior a ele.

Dou um exemplo: digamos que estou numa faculdade dando aula para alunos. Se eu sou caridoso, não devo fazer sentir aos meus alunos que sou superior a eles. Porque eu fazer sentir isto é fazer lembrar a eles uma coisa que lhes dói legitimamente. O fato de um homem ser inferior é como que uma chaga, como que um defeito.

Se isto é verdade, Deus não cria coisas defeituosas. Assim, não poderia criar tal situação. Logo, a desigualdade não vem de Deus, mas do demônio, do pecado, do homem, etc. E isto de ter pena do inferior é como o substractum do liberalismo, do igualitarismo.

Atualização do Segundo erro

A atualização do segundo argumento vem muito numa espécie de adoração da simplicidade e da uniformidade em todas as coisas que são humanas, como se elas fossem a única perfeição que elas devem ter. Então, por exemplo, numa ordem de coisas muito hierarquizada, muito complexa, uma implicância com aquilo porque é muito complexo. A coisa, na medida em que é simples e fácil, é perfeita. E viria logo o espírito das duas coisas. O espírito de simplicidade ensinado no Evangelho por Nosso Senhor – o ápice da moral – contraria a complexidade e as coisas difíceis.

Em última análise, Deus é infinitamente simples, é grande demais para se preocupar com essas ninharias.

A desigualdade é um grande bem

Demos até agora os argumentos contrários. Vamos provar agora, segundo Santo Tomás, que a desigualdade é um grande bem.

O fundo do argumento dele é que a desigualdade reflete a glória de Deus, que reflete as perfeições de Deus melhor do que a igualdade. Que o universo deve refletir as perfeições de Deus para glorificar a Deus.

“O universo existe para a maior glória de Deus”. Ele dá glória a Deus, refletindo suas perfeições; reflete as perfeições de Deus de melhor modo pela desigualdade; portanto, é por meio da desigualdade que ele dá maior glória a Deus e alcança  seu fim.

No que consiste o refletir as perfeições de Deus

Em primeiro lugar vamos ver mais claramente no que consiste refletir as perfeições de Deus.

O que é que se chama propriamente a glória? Não encontrei ainda nenhuma definição dessa palavra que me satisfizesse inteiramente, embora se possa considerar que a glória é o esplendor, a manifestação das qualidades supremas de alguém. Pode-se dizer que a glória tem dois aspectos: a glória intrínseca e a glória extrínseca.

Exemplo característico da glória intrínseca temos, nesta terra, em Nosso Senhor Jesus Cristo. Quem vê o Santo Sudário de Turim e contempla a face de Nosso Senhor, nota ali uma majestade que está nEle e que Lhe vem de si mesmo; e que todas as injúrias, todas as mesquinharias, todas as bofetadas e escarros não poderiam diminuir. Exatamente o que está em seu semblante é uma grande afirmação de uma superioridade infinita, que é imanente nEle e que não depende absolutamente de nada. Ele é superior porque é superior. Os outros vejam ou não vejam, isto transpareça a ou não Ele é superior. Sua glória é intrínseca.

O que chamaríamos de glória extrínseca? Poderíamos chamar assim a glória enquanto se manifesta, e não enquanto existe. Então, a glória extrínseca de Nosso Senhor seria patente no alto do Tabor, quando se manifestou aos três apóstolos; a glória dEle se manifestou no Domingo de Ramos. A população toda de Jerusalém cantava a sua glória. Quer dizer, aquele seu esplendor interno se tornava extrínseco aos outros.

Assim como existe uma glória extrínseca e intrínseca em Nosso Senhor , existe uma glória intrínseca em Deus, que é a sua infinita superioridade; mas existe uma glória extrínseca no fato das criaturas darem glória a Ele. É uma glória que vem de fora.

É claro que Deus não precisa da glória extrínseca, a glória intrínseca Lhe basta. Mas uma vez que as criaturas existem, devem dar glória a Ele. E a razão de ser das criaturas é esta.

Por que razão se pode dizer que o motivo de ser das criaturas é este?

Santo  Tomás mostra bem que Deus criando o universo, só poderia criar o universo por amor de Si mesmo, e que o fim de sua ação só poderia ser Ele mesmo. E a razão de ser de todas as criaturas é Sua glória. Então, nossa razão de ser é a glória de Deus.

Por que razão a nossa semelhança com Deus dá glória a Deus? Isto  pode ser visto da seguinte maneira: tanto uma obra é melhor, tanto mais ela dá glória àquele que a fez. Por exemplo, alguém faz um relógio. Quanto melhor o relógio, tanto maior o relojoeiro. Deus é a própria perfeição. Se as criaturas quiserem ser muito boas, têm necessariamente que imitar a Deus. Ele é o autor de toda perfeição, é a própria perfeição, e tudo aquilo que é muito bom tem que imitar a Deus. Logo, todas as criaturas, para darem glória a Deus sendo muito boas, têm que imitá-Lo.

 

Resumo da argumentação

A argumentação, portanto, é esta: só se dá glória a Deus sendo-se excelente; só se pode ser excelente imitando a Deus. Logo, só se dá glória a Deus imitando-O.

Do ponto de vista do homem isto pode ser visto também de outro modo. Nós todos somos destinados a nos salvar, dar glória a Deus nos salvando. Ora, todas as coisas que existem no universo, existem para ajudar a nossa salvação. Portanto, quanto mais as coisas que nos cercam forem semelhantes a Deus, tanto mais nos ajudam em nossa salvação.

De qualquer maneira, a semelhança do universo com Deus é condição para se dar glória a Deus. Trata-se agora de saber por que a desigualdade dá mais glória a Deus do que a igualdade.

* * *

(Para o presente estudo, sugerimos a leitura do livro “Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana”, Editora Civilização, Porto, 1993, especialmente os DOCUMENTOS V – A doutrina da Igreja sobre as desigualdades sociais, pag. 293 a 301)

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