Plinio Corrêa de Oliveira

 

Comentários ao

"Tratado da verdadeira devoção

a Nossa Senhora"

 

Capítulo I, artigo 1

 

 

 

1951, Conferência

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A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio, em 1951, para os futuros sócios-fundadores da TFP brasileira.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.

Cópia da Virgen del Apocalipsis, Escuela quitenha, Equador, sec. XVI 

CAPÍTULO I 

NECESSIDADE DA DEVOÇÃO À SANTÍSSIMA VIRGEM

Este capítulo foi escrito para demonstrar que a devoção à Santíssima Virgem é necessária. Procuremos explicar a tese de São Luís Grignion. Ele quer demonstrar que, sem uma devoção a Maria Santíssima - mas uma devoção proporcionada às grandezas que acabamos de ver na introdução - não existe vida espiritual possível, pois a vida espiritual exige esta forma de devoção a Maria Santíssima. 

Atraio a atenção para o fato de que a demonstração que ele faz dessa tese é muito exata, mas não é muito explícita à primeira vista. É preciso ler o capítulo com muita atenção, para se compreender onde ele quer chegar. Para tratar da necessidade da devoção a Nossa Senhora ele faz um preâmbulo, e depois desenvolve propriamente a demonstração. Nesse preâmbulo São Luís Grignion estabelece qual é o alcance da palavra “necessidade”. 

Não se trata de dizer que Deus precise absolutamente de Nossa Senhora para salvar as almas; sendo onipotente e sendo perfeito, Ele não necessita de ninguém. Assim, poderia Ele ter criado uma situação em que Nossa Senhora não existisse e as almas também se salvassem, pois Ele está acima de tudo. A necessidade de Nossa Senhora na vida espiritual é de outro gênero. Uma vez que Deus A criou, dando-lhe, por um ato libérrimo de Sua vontade, determinadas perfeições e atribuições, entre as quais a mediação universal, a devoção a Ela é necessária. Em outras palavras, a Igreja Católica não sustenta que Deus precise de Nossa Senhora, mas que Deus quis que Ela fosse necessária à nossa salvação. Ele liberrimamente assim o quis, e estabeleceu uma situação em que Ela se tornou necessária. 

Na demonstração desta tese, São Luís Grignion supõe uma série de noções que é preciso lembrar, porque ele não as enuncia explicitamente. Neste particular ele se parece com São Paulo. O Apóstolo vai dizendo as coisas umas após as outras, deixando até algumas frases sem ligação com as anteriores; há em suas epístolas alguns pontos que confundem o espírito. O próprio São Pedro diz, numa de suas epístolas, que São Paulo é difícil de entender. Assim, também São Luís Grignion supõe como conhecidos certos pressupostos que é preciso lembrar, para se ter inteiramente claro o fio de seu raciocínio.  

Estátua de São Luís Maria Grignion de Montfort, que se encontra na Basílica de São Pedro, em Roma

ARTIGO I 

PRIMEIRO PRINCÍPIO: Deus quis servir-se de Maria na Encarnação

Importância da Encarnação 

A demonstração que São Luís Grignion faz da necessidade da devoção a Nossa Senhora está baseada no papel que Ela teve na Encarnação. Vamos, antes de tudo, impostar bem a questão. 

A primeira tese que é preciso lembrar é a da suma importância da Encarnação na obra da Criação. Os teólogos discutem entre si um ponto a este respeito. Dizem alguns que a Encarnação não se teria dado se o homem não tivesse pecado, e outros dizem que ela ter-se-ia dado, ainda que o homem não tivesse pecado. Daí concluem os primeiros que, embora tendo sido um mal, o pecado original importou em uma vantagem para o homem, e é por isso que a Liturgia canta no Sábado Santo "O felix culpa" - ó culpa feliz, que nos mereceu um tal Salvador. Sem o pecado original, não teríamos tido a felicidade de ter o Salvador. 

De um modo ou de outro, quer se admita uma ou outra tese, devemos reconhecer que a Encarnação do Verbo não é um episódio entre outros da História da Humanidade, mas é, como a Redenção, um episódio culminante. Sendo Deus Aquele que é, exceção feita da geração do Verbo e da processão do Espírito Santo, nunca se passou nada que, de longe, pudesse ser tão importante como a Encarnação do Verbo. É um fato relacionado com a própria natureza divina, e tudo o que diz respeito a Deus é incomparavelmente mais importante do que tudo que diga respeito ao homem. A Encarnação de Deus transcende a tudo em importância. 

Santa Casa de Loreto, onde teve lugar a Encarnaçao. Nesse Santuário, São Luis Grignion passou 15 dias, poucos anos antes de escrever o "Tratado"

Papel de Nossa Senhora na Encarnação 

Por esse motivo o papel de Nossa Senhora na Encarnação situa bem o papel d'Ela em todos os planos divinos, e precisamente no que eles têm de mais importante e de mais fundamental. 

Achamos admirável, por exemplo, Nosso Senhor ter escolhido Constantino para tirar a Igreja das catacumbas. Mas o que é isto, perto de ter escolhido Nossa Senhora para n'Ela ser gerado o Salvador? Absolutamente nada. Nós admiramos muito Anchieta, porque ele evangelizou o Brasil. Mas o que é evangelizar um país, em comparação com o cooperar na Encarnação do Verbo? Nada! 

Digamos que se tratasse de salvar o mundo de sua crise atual e de restabelecer o reino de Cristo, e suponhamos que Nosso Senhor escolhesse um só homem para essa tarefa. Nós acharíamos esta missão algo de formidável, e com razão. Mas o que seria isto, em comparação com a missão de Nossa Senhora? Nada! Ela situa-se num plano que está fora de comparação com a missão histórica de qualquer homem, inclusive com a de São Pedro, por incrível que pareça, apesar de ter sido ele o primeiro Papa. O papel de Maria está fora de comparação com o papel de São Pedro. 

A respeito de Nossa Senhora, sempre se é obrigado a repetir a expressão "fora de comparação", porque Ela faz estalar todo vocabulário humano. Há uma tal desproporção entre Ela e todas as criaturas, que a única coisa segura que se pode dizer é que é fora de comparação. 

Lembradas essas noções, devemos concluir que estudar a participação de Nossa Senhora na Encarnação é estudar o Seu papel no acontecimento mais importante de todos os tempos. E qual foi esse papel? São Luís Grignion responde, analisando a participação das três Pessoas da Santíssima Trindade na Encarnação - o papel do Padre, do Filho e do Espírito Santo - e depois a cooperação de Nossa Senhora com o Padre, com o Filho e com o Espírito Santo. 

A COOPERAÇÃO DE NOSSA SENHORA COM O PADRE ETERNO 

Conforme a linguagem das Escrituras, Nosso Senhor foi mandado ao mundo pelo Padre Eterno para salvar os homens. O Antigo Testamento, numa das suas profecias, diz de Nosso Senhor: "Eis que venho, como está escrito de mim no rolo do livro, para fazer a Tua vontade" (Ps. XXXIX, 8-9). Jesus Cristo fala constantemente de Seu Pai Celeste, como sendo Aquele que O enviou, Aquele que Se manifestou sobre Ele, considerando-O Seu Filho bem amado, Aquele a Quem Ele invocou quando entregou Seu espírito, dizendo: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes? " (Mt. XXVII, 46). Sendo o Padre Eterno Aquele que nos mandou Jesus Cristo, qual foi o papel de Nossa Senhora neste ato? 

A oração de Nossa Senhora na vinda do Messias - Em primeiro lugar, devemos considerar que o mundo não era mais digno de receber a Nosso Senhor Jesus Cristo. Em conseqüência, o Padre Eterno O enviou, não por causa do mundo, mas por causa de Nossa Senhora. Não só porque foi Ela quem o pediu - e se Ela não tivesse pedido a vinda de Nosso Senhor, Ele não teria vindo - mas Deus Padre O mandou a Ela, porque só Ela era digna de O receber. 

Nessa perspectiva compreende-se melhor a queixa contida no Evangelho de São João: "Veio para o que era seu, e os seus não O receberam" (Jo, I, 11). Os seus não O receberiam, mas Nossa Senhora O receberia de modo sublime, e por isso Ele veio. Veio porque encontrou Nossa Senhora no mundo, e se não A tivesse encontrado, não teria vindo. A vinda d'Ele ao mundo é o produto da presença e das orações da Virgem Santíssima. 

Dessa forma colaborou Ela com o ato do Padre Eterno pelo qual Jesus Cristo foi mandado ao mundo. 

A participação de Nossa Senhora na fecundidade do Padre Eterno - Além disso, o Padre Eterno comunicou a Nossa Senhora Sua fecundidade, para que Ela pudesse gerar a Jesus Cristo. O Padre Eterno é de uma fecundidade infinita. Sua fecundidade é tal, que a idéia que Ele tem de Si mesmo já é uma Pessoa Divina. Pois bem, Ele comunicou a Nossa Senhora Sua fecundidade, para que Ela gerasse a Jesus Cristo e a todos os membros do Corpo Místico de Cristo. Nossa Senhora é, pois, Mãe dos fiéis, não apenas no sentido alegórico e metafórico (Ela nos quer bem como se fosse nossa mãe), mas é verdadeiramente nossa Mãe na ordem da graça. E essa maternidade divina existe, porque o Padre Eterno lhe comunicou a Sua fecundidade. 

O poder da oração de Nossa Senhora e a nossa vida espiritual 

Podemos tirar aplicações para nossa vida espiritual, tanto do fato de a oração de Nossa Senhora ter apressado a vinda do Messias, quanto de ter Ela recebido do Padre Eterno sua fecundidade. Considerando Nossa Senhora capaz de, com a sua prece, apressar a vinda do Messias, que aplicações podemos tirar? 

Devemos primeiramente considerar a Santíssima Virgem no seu zelo pela causa de Deus. Na oração que fazia, Ela certamente considerara - isto é de Fé - a situação, que atingira um ápice de miséria moral, em que tinha caído o povo eleito. Nessa oração, portanto, Ela desejava ardentemente que Israel fosse reerguido à sua antiga condição. Considerava ainda a decadência da Humanidade, sabendo melhor que ninguém quantas almas estavam se perdendo naquela era pagã, e vendo a glória de Satanás a imperar sobre o mundo antigo. 

Maria Santíssima fez então na Terra o papel de São Miguel Arcanjo no Céu. Sua oração, pedindo que Deus viesse à Terra, equivale ao "Quis ut Deus? " do Arcanjo. É Ela que se levanta contra esse estado de coisas, é só Ela que tem a oração bastante poderosa para desferir um golpe que tudo transforma. 

Então, a plenitude dos tempos que se encerram: Nosso Senhor Jesus Cristo nasce, e toda a humanidade é reconstruída, regenerada, elevada e santificada por Nossa Senhora. As almas começam a se salvar em profusão, as portas do Céu abrem-se, o inferno é esmagado, a morte é destruída, a Igreja Católica floresce sobre toda a face da Terra. Tudo como produto da oração de Nossa Senhora. 

Não é verdade que Nossa Senhora, também sob este aspecto, se apresenta a nós como um verdadeiro modelo? Não devemos desejar em nossos dias a vitória de Nosso Senhor, como Maria Santíssima a desejou em sua época? Não há uma analogia absoluta entre o ardor com que Ela desejou a instauração do reino de Cristo na Terra e o ardor com que o devemos desejar em nossos dias? Não é verdade que, se a oração d'Ela foi necessária para a realização da Encarnação, é indispensável também para que consigamos em nossos dias a vitória de Jesus Cristo no mundo? Quando nos esfalfamos na luta pela vitória de Jesus Cristo em nossos dias, lembramo-nos de rezar a Nossa Senhora? Quando rezamos a Ela, lembramo-nos de pedir esta graça? 

Não seria uma boa oração se, por exemplo, ao contemplarmos o mistério da Anunciação na primeira dezena do terço, tivéssemos em mente Nossa Senhora que pede a vinda do Salvador? E muito apropriado seria pedirmos a Ela que Jesus Cristo novamente triunfe no mundo, e ainda contemplarmos a vinda do Salvador e a futura vitória da Igreja Católica. Não temos aí uma boa aplicação desses Mistérios para a vida espiritual? Não é assim que ela deve ser vista, vivida e conduzida? Isto não é muito mais sólido que um arrastado murmúrio piedoso? É com essas verdades de Fé que se alimenta a piedade. Com verdades destas há nutrimento em quantidade para a vida espiritual. 

Contemplemos Nossa Senhora apressando, com Sua oração, a vinda do Messias. Não é verdade que Nosso Senhor vem a nós também no momento da Comunhão? Não é verdade que podemos e devemos pedir a Ela, quando nos preparamos para recebê-Lo, algo dos sentimentos com que Ela O recebeu quando Ele se encarnou

Se desejamos conseguir para alguém a graça da comunhão diária, não será útil pedir a Nossa Senhora que consiga para aquela alma a vinda quotidiana de Nosso Senhor, lembrando-A da eficácia da prece com que obteve a vinda de Jesus Cristo para o mundo? 

A participação de Nossa Senhora na fecundidade do Padre Eterno e nossa vida espiritual 

Consideremos a participação de Nossa Senhora na fecundidade do Padre Eterno para gerar membros do Corpo Místico de Cristo. Todo fiel é um membro deste Corpo Místico. Quando passamos junto ao batistério, devemos nos lembrar de fazer uma oração rogando à Santíssima Virgem que Ela nos leve, até o momento da morte, na perseverança à graça que então recebemos, e que nos confirme nessa graça a vida inteira. Junto a essa mesma pia batismal que nos viu entrar para o seio da Igreja Católica, lugar onde nascemos para a vida sobrenatural e onde, graças a uma prece de Nossa Senhora e à fecundidade de Deus Nosso Senhor, fomos gerados membros do Corpo Místico de Cristo, do qual Nossa Senhora é Mãe verdadeira. 

Lembremo-nos de que fomos gerados para a vida da graça por Nossa Senhora, com a participação da própria fecundidade do Padre Eterno; e de que recebemos essa vida por meio d'Ela, de modo inteiramente gratuito, porque sem as orações e sem a participação d'Ela não a teríamos obtido. Tudo isto nos permite, pois, pedir-Lhe que nos mantenha nessa graça, e que a cumule ainda com a virtude do senso católico - coroação dessa união extremamente íntima com Cristo - que recebemos pelo ministério d'Ela. 

A piedade deve consistir em formar disposições de espírito que tenham base nessas verdades ensinadas pela Igreja e pela Teologia, e não em meros sentimentos. Verdades como essas é que produzem uma devoção a Nossa Senhora muito boa, muito séria e muito sólida. Assim é que se constrói a verdadeira devoção a Nossa Senhora, e que se alicerça a verdadeira vida espiritual

A COOPERAÇÃO DE NOSSA SENHORA COM DEUS FILHO 

Nosso Senhor, formado no seio virginal de Maria Santíssima - Em primeiro lugar, devemos considerar a Encarnação do Filho em Nossa Senhora. 

Há um livro do Padre J. M. (que não se pode recomendar a qualquer pessoa) em que ele estuda o processo da maternidade e da vida de Nosso Senhor em Nossa Senhora: como Ela, pelo processo da maternidade, foi gradualmente fornecendo-Lhe a sua carne e o seu sangue; como foi sendo formado, dentro de seu seio virginal, o corpo de Nosso Senhor, unido à divindade pela união hipostática. A participação d'Ela no mistério da Encarnação é imensa. Considerando que o corpo de Nosso Senhor, Sua carne e Seu sangue, são carne da carne e sangue do sangue de Nossa Senhora, não se pode imaginar maior intimidade com Deus. O papel de Nossa Senhora nesse mistério foi tal, que Deus quis que Ela antes desse o Seu consentimento, para depois dar a Sua Carne, o Seu Sangue e, portanto, algo de seu próprio Ser. 

Como diz São Luís Grignion, foi vontade de Deus Padre que Nosso Senhor ficasse contido n'Ela como dentro de uma arca, de um tabernáculo, em que Ele operava maravilhas de graça só por Ela conhecidas. E foi dentro d'Ela, como dentro de um santuário, que Nosso Senhor Jesus Cristo começou a dar glória ao Padre Eterno. No próprio momento em que começou a existir a união hipostática, Deus recebeu de Nosso Senhor Jesus Cristo um ato perfeito de amor, o mais perfeito que jamais se deu na Terra. Ninguém jamais prestou um ato de amor tão perfeito a Deus quanto a humanidade santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo. 

São Luís Grignion mostra ainda como Jesus Cristo, que era Senhor onipotente, contido dentro de Nossa Senhora, deixou-Se transportar para onde Ela o quis, não só pelas montanhas da Judéia para visitar Santa Isabel, como por todos os lugares pelos quais Ela o quis. 

A seguir, ele desenvolve a tese de que Nossa Senhora foi incumbida de criar Nosso Senhor e de O governar em Sua infância. Era uma infância em que Ele tinha para com Ela as mesmas relações de uma criança para com sua mãe. Pois seria falso imaginar que, na presença de outros, Nosso Senhor fazia o papel de criança, mas que, quando não havia ninguém, apresentava-se como Deus. Ele estava junto a Nossa Senhora sempre como uma criança, e Ela sabia que Ele era Deus, e tratava aquela criança como quem trata a um Deus. 

Depois Nosso Senhor cresceu, passando trinta anos de Sua vida junto d'Ela, e consagrando aos homens somente três. Por fim, Ela O levou até o alto da cruz, e do alto da cruz ofereceu-O a Deus. 

São Luís Grignion resume o papel de Nossa Senhora na Redenção: Ela gerou a vítima, Ela criou a vítima, Ela acariciou a vítima, Ela conduziu a vítima ao altar do sacrifício, e Ela mesma imolou a vítima. Porque verdadeiramente Nosso Senhor morreu com o consentimento de Nossa Senhora. Ela quis que Ele sofresse tudo o que sofreu, e Ela quis que Ele morresse da maneira como morreu. Ela consentiu naquela morte, estava de acordo. Ela queria que a morte de Seu Filho fosse daquela forma. 

O papel d'Ela na Encarnação e na Redenção do gênero humano é um papel imenso; é um papel como maior não poderia ser.  

Devoção a Nossa Senhora e apostolado 

Há aplicações maravilhosas para nossa vida espiritual, a tirar destas considerações: Nosso Senhor vivendo trinta anos sob a dependência de Nossa Senhora. 

Em nossa vida de piedade, por exemplo, que importância damos, respectivamente, à nossa união com Nossa Senhora e ao nosso apostolado? Temos a impressão de que nosso apostolado é muito mais importante que a nossa união com Nossa Senhora. E isso de tal modo que temos, de um lado, nosso quarto de hora de oração a Ela, e depois nosso "enorme" apostolado. Nosso Senhor nos dá o exemplo do contrário. Tempo dado à união com Nossa Senhora: trinta anos; ao apostolado: três. 

Podemos bem compreender o que representa de homenagem - homenagem de um Deus, a palavra parece até absurda! - e de glória para Ela o Verbo Encarnado vir ao mundo e passar trinta anos junto d'Ela, dedicando apenas três à realização de Sua missão. Podemos bem compreender o que significa a graça de estar junto de Maria Santíssima. 

Assim sendo, quando vamos fazer uma visita a Nossa Senhora numa igreja, podemos nos unir a esses sentimentos de Nosso Senhor. Convém que interrompamos com freqüência nossas atividades, e entremos numa igreja para fazer uma visita a Maria com esta intenção: imitar a Nosso Senhor, que não se apressou em iniciar desde logo Sua vida pública, mas consagrou trinta anos a estar junto de Nossa Senhora. Vou seguir Seu exemplo; por isso peço-Lhe que, dada a minha impossibilidade de agradar como devo a Nossa Senhora, que Ele A agrade por mim neste momento. Quando me coloco diante do tabernáculo, devo pedir a Nosso Senhor a graça de que, em meu nome, Ele trate Nossa Senhora como eu gostaria de o fazer, embora eu seja incapaz. 

Eis uma boa visita ao Santíssimo Sacramento e a Nossa Senhora. Com isto se constrói uma vida espiritual digna desse nome. Mas é preciso que tenhamos em mente todas essas idéias, esses princípios, que eles estejam sempre presentes, para que possam ser utilizados quando as ocasiões se apresentarem. 

Pelo acima exposto, vemos como seria tolo dizer que há secura ou geometrismo na piedade, por parte de quem assim procede. O que aí não se pode desejar é o vácuo, é a basófia. Pois o que recomendamos não é secura nem geometrismo, mas coerência: a inteligência ilumina, a vontade quer, e a sensibilidade acompanha o preito de amor da vontade. E se acaso a sensibilidade não acompanhar, não terá maior importância, pois o ato de amor estará feito. O amor reside na vontade. 

Não se trata, portanto, de experimentar uma espécie de consolação sensível, de sentir o trêmulo da comoção, para só então rezar. Trata-se, sim, de ter convicção e resolução. A Fé nos ensina que Nossa Senhora é imensamente bondosa, e por isso vamos a Ela com confiança. É uma consideração racional, que não nasceu da sensibilidade. Essa atitude racional na oração, a construção de uma vida de piedade toda ela alicerçada sobre convicções recebidas da Fé, que a razão manipula para a vida espiritual, isso sim é verdadeiramente a seriedade na vida de piedade. E não apenas para produzir uma faísca passageira de emoção mariana; o que desejamos é produzir convicções profundas e construir uma estrutura de espírito útil à vida espiritual.  

A intimidade entre Nosso Senhor e Nossa Senhora aplicada à nossa vida espiritual 

São Luís Grignion lembra, entre outras coisas, que Nosso Senhor, no período de Sua gestação, enclausurou-se dentro do ventre puríssimo de Nossa Senhora, e que aí encontrou para Si um tabernáculo perfeito. Para compreendermos bem o que isto significa, é interessante apelarmos para certos conceitos subjacentes à seção "Ambientes, Costumes, Civilizações", de "Catolicismo". Estando no ventre de Nossa Senhora no período de Sua gestação, Nosso Senhor aí encontrou todo o necessário para suas delícias espirituais. Havia ali um ambiente, uma atmosfera que Lhe era perfeita, graças às virtudes excelsas de Maria Santíssima. Durante esse período, Nosso Senhor teve com Ela uma união verdadeiramente incomparável. 

Já consideramos o fato de que, nesse período, é Nossa Senhora que vai fornecendo sua própria carne e seu próprio sangue para a formação do corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Havia uma atividade em extremo íntima entre Ele e Ela, sendo preciso notar que Nosso Senhor teve o uso da razão desde o primeiro instante do Seu ser. Ele, portanto, vivia em Nossa Senhora dispondo já completamente de Sua inteligência. Podemos imaginar a intimidade entre eles, o alto grau de cada ato de amor? A cada colaboração que Ela prestava para a formação de Seu corpo, correspondia da parte d'Ele uma série de graças a Ela concedidas. Durante a gestação de Nosso Senhor havia, portanto, entre Ele e Sua Mãe, uma união verdadeiramente inexprimível e de uma sublimidade incomparável. 

Em que sentido a consideração dessa união nos pode ser benéfica? O homem, na Igreja Católica, encontra-se diante de um firmamento de verdades. Assim como, colocados diante do firmamento físico, contemplamos inúmeras maravilhas que enriquecem a nossa alma, assim também, no firmamento de verdades da Igreja Católica, poucas maravilhas podemos contemplar tão grandes quanto a intimidade de uma alma inteiramente humana - como era a de Nossa Senhora - com Nosso Senhor Jesus Cristo, durante o tempo da Sua gestação. 

Essa união dá-nos uma idéia da intimidade que também nós podemos ter com Nosso Senhor, através da nossa santificação. Faz-nos compreender um pouco o que é a vida da graça, e dá-nos a apetência de maior união com Jesus Cristo. 

Estas considerações não devem ficar no vácuo. Na vida espiritual, devemos ter propriamente apetência destes dons sobrenaturais, devemos desejar a união com Deus e os bens eternos. O que caracteriza o católico, diferenciando-o do não católico, é que para o católico o desejo destes bens sobrenaturais e eternos é a dominante na vida; sua felicidade deve nisto consistir, e não na concupiscência dos bens terrenos. E é nesta atmosfera que podemos imaginar o que significava a intimidade de Nosso Senhor com Nossa Senhora durante o período da gestação. 

São João Batista, protótipo do devoto de Nossa Senhora - São Luís Grignion lembra-nos ainda outra importante passagem do Evangelho: Nossa Senhora praticando seu primeiro milagre da graça em São João Batista. É algo, para nós, de muita significação. Conta o Evangelho que, dirigindo Nossa Senhora a palavra a Santa Isabel, São João Batista estremeceu de gozo em seu ventre, a tal ponto que ela o disse a Nossa Senhora. Como homem predestinado que era, o Precursor estremeceu de gozo ao ouvir a voz da Santíssima Virgem. 

Se considerarmos quem foi São João Batista, e quais os traços característicos de sua alma, compreenderemos o efeito que a voz de Nossa Senhora operou nele. Grande asceta, ele foi por excelência o homem da pureza, dando-nos a idéia de possuir - o que é uma graça de Nossa Senhora - um domínio extremo sobre si mesmo. Em segundo lugar, São João Batista é o homem que leva o desassombro e o espírito de combatividade ao último ponto, também por graça de Nossa Senhora. Por fim, São João Batista é o mártir que se deixa decapitar, para manter-se fiel à sua pregação - ainda uma graça de Nossa Senhora. 

São João Batista é, portanto, o protótipo do devoto de Nossa Senhora, com todas as suas características. Quando rezamos a São João Batista, não lhe devemos pedir graças vagas, mas pedir que também nós possamos, quando ouvirmos Nossa Senhora nos falar pela voz da graça, “estremecer” e imitar as virtudes que ele praticou

De outro lado, quando rezamos pela conversão de alguém, nada melhor podemos fazer do que pedir a Nossa Senhora que fale a esta pessoa palavras riquíssimas em graças, analogamente ao que fez com São João Batista. Devemos nos lembrar de que a conversão ou o afervoramento de alguém não é o produto exclusivo de raciocínios que lhe possamos apresentar. Dizer, por exemplo, que "dei um argumento poderoso e converti tal pessoa" é uma basófia. "Dei um argumento poderoso e Deus o fecundou com Sua graça, de tal maneira que a pessoa se converteu" - isto, sim, se pode dizer. A conversão é produto da graça de Deus. Nosso argumento nada mais é que mero veículo ou ocasião da graça, e é de fato a graça que opera. Assim sendo, devemos pedir que em nossa voz jamais entrem acentos humanos, mas que seja apenas a voz de Nossa Senhora, a voz da graça de Deus. As palavras de Nossa Senhora formando um justo, fazendo-o estremecer no ventre materno, devem ser um incentivo para confiarmos n'Ela para o êxito de nosso apostolado. 

As bodas de Caná - Como o primeiro milagre sobre a natureza, conseguido por Nossa Senhora nas bodas de Caná, já tem sido muito tratado, não é necessário nos determos nele. Há contudo um aspecto que convém ressaltar. 

O Evangelho recomenda que o verdadeiro fiel tenha uma Fé que transporte montanhas. É desta Fé que Nossa Senhora nos dá aí exemplo. Colocada num momento em que Nosso Senhor deveria fazer um milagre, não tem dúvida quanto a Seu poder nem quanto ao fato de que Ele atenderá à sua oração. Ela se limita simplesmente a dizer àqueles servidores: "Fazei tudo o que Ele vos disser" (Jo., II, 5). Ele ordena, ato contínuo, e o milagre se opera. Nossa Senhora nos dá, pois, exemplo dessa Fé que transporta montanhas, a Fé através da qual se operam as verdadeiras maravilhas. 

Por que vemos hoje tão poucos milagres? Na Idade Média, por exemplo, quantas manifestações do sobrenatural! Hoje, quão poucas são as que podemos contemplar! Por que razão havia antigamente quem enfrentasse potentados, filósofos e reis ímpios, dirigindo-lhes a palavra e operando suas conversões? São hoje - dir-se-ia - coisas impossíveis. Víamos também pugilos de católicos, de cruzados, que entravam em batalha contra milhares de inimigos da Igreja e destroçavam a todos, porque lhes aparecia Nossa Senhora e lhes dava a vitória. Ou aparecia Nosso Senhor e dispersava os adversários. 

Batalha de Lepanto, 7 de outubro de 1571, em que os inimigos da Igreja, que eram muito mais numerosos do que os católicos, foram derrotados, graças à milagrosa intervenção de Nossa Senhora (pintura de Veronese)

Por que estas coisas quase não mais acontecem? É porque não se imita a Nossa Senhora, modelo da fé que transporta montanhas. O homem não tem a convicção absoluta de que, de fato, Deus está presente e vai ajudá-lo. Não tem a convicção de que, se pedir, Deus o atenderá efetivamente. Deus é para ele quase um ente de razão, perdido num céu muito alto, não tendo com ele nenhum contacto, não intervindo, quase não se interessando por ele. As verdades da Fé a respeito da Providência Divina, da Sua intervenção na vida quotidiana e na vida da Igreja, são verdades que se admitem, sim, mas não com espírito de Fé bastante para se ter, face às dificuldades, a certeza de que Deus intervirá no momento preciso. 

Dessas virtudes de Nossa Senhora, o que mais devemos guardar é que, se ao longo de nossa vida de apostolado nos encontrarmos em situações de apuro tal que se faça necessário um milagre de primeira grandeza, devemos esperar esse milagre; devemos nele confiar, como Ela confiou diante do apuro daqueles esposos, que a água seria transformada em vinho. É desta ordem a confiança que devemos ter em Nossa Senhora. 

A confiança total em Nossa Senhora - Insisto neste ponto por causa de uma nota característica de nossa atuação: é a desproporção flagrante, cruel, entre o que queremos fazer e os meios de que dispomos. Nosso objetivo é, pura e simplesmente, a construção de uma nova civilização católica, mas com tudo quanto isto significa, ou seja, a restauração do reinado de Jesus Cristo no mundo, de acordo com a promessa feita por Nossa Senhora em Fátima

Nossos meios, entretanto, são tão ridiculamente insuficientes, que se não contássemos com o sobrenatural, seria o caso de duvidarmos de nossa sanidade mental. Quando aqui nos reunimos e nos entreolhamos, somos tentados a achar que constituímos um grupo já numeroso, dezoito pessoas já nos parece um grupo numeroso. Por aí podemos avaliar qual a nossa fraqueza, do ponto de vista humano. É como um paralítico que quisesse transportar o Pão de Açúcar com o polegar, e que um dia exclamasse: "Hoje consegui mexer-me na cama! Portanto estou a caminho de levantar-me, e quando me levantar estarei a caminho de transportar o Pão de Açúcar". A desproporção de forças é verdadeiramente chocante. 

Por isso há momentos em que vem o desânimo. Há momentos em que tudo parece remoto, e há sobretudo ocasiões em que, após pressentirmos que muitas coisas boas estão por acontecer, ficamos afinal decepcionados, como se tivéssemos uma série de bilhetes de loteria em branco na mão. É como numa viagem de automóvel: ao lado de momentos agradáveis, de conversa animada, há outros em que a estrada parece sem fim, e temos a impressão de estarmos andando há vários dias, de ainda faltar outro tanto, e de que a viagem deverá prolongar-se indefinidamente. 

A vida de apostolado é assim. Há momentos em que se está animado. Mas outros há em que tudo parece ir mal, lento e emperrado, e não conseguimos remover os obstáculos. Pois bem, esta é a fase áurea. Se o Cardeal Mindszenty pudesse viver uma vida de apostolado como a que descrevi, ele presumivelmente a acharia uma maravilha. 

Passando-se anos e anos nesta vida de trabalhos, tem-se às vezes a impressão de que se andou muito; outras vezes, de que nada se andou, ou até de que se andou para trás, o que é mais aflitivo. Nestas ocasiões difíceis, e sobretudo nas de apuro e dificuldades, em que nada parece ir adiante, devemos nos lembrar de que Nossa Senhora conseguiu de Deus o milagre de transformar a água em vinho. Quem sabe todos esses nossos esforços irão, de repente, produzir um resultado inesperado, devido às orações de Maria Santíssima? 

Às vezes os fatos mais imprevisíveis são os que produzem resultados de apostolado. Do que depende ele, então? De se ter perseverança, rezar e fazer tudo em espírito de oração até o fim, até a última possibilidade, certos de que o que tentamos fazer quando tudo parecia perdido, é o que dará o resultado excepcional, acima mesmo do esperado. 

Um ato de apostolado que repercute depois de dezenove séculos - Convém lembrar a recente descoberta de um arquivo dos essênios (grupo judaico que viveu no século imediatamente anterior ao início da era cristã), feita numa caverna nas proximidades do Mar Morto. Segundo consta, seus membros seriam muito amigos de Nosso Senhor, de coração reto, e viviam em luta contra os fariseus de Jerusalém. Ao que parece, devem ter passado por alguma tremenda provação, ao fim da qual a única coisa que puderam fazer foi tomar todos os seus documentos, colocá-los em vasos de barro, fechá-los cuidadosamente e enterrá-los numa caverna. Depois, desapareceram na História. 

Mais de 1.900 anos se passaram depois deste último ato de apostolado do último essênio: o enterro do arquivo na gruta, onde ninguém mais deveria entrar. Ao cabo desse tempo, contudo, pastores entraram na gruta, encontraram o arquivo e o venderam ao governo americano, que o divulga profusamente. De acordo com notícias de jornais, há nele coisas muito curiosas. Além de trechos de Isaías, que provam ser canônico todo livro que a Igreja considera como tal, porque coincide perfeitamente com os textos encontrados, haveria muito material elucidativo a respeito da Bíblia, material este que estaria auxiliando enormemente a exegese católica. 

Aplicando esse exemplo a nós, podemos considerar que o último essênio que guardou o arquivo era, possivelmente, um homem desanimado. Aquele grupo parecia estar condenado ao desaparecimento, e se ele chegou ao ponto de guardar o arquivo, foi certamente para evitar uma profanação. Esse essênio dificilmente poderia imaginar que seu último ato de apostolado, seu último ato de amor a uma causa que parecia morta, 1.900 anos mais tarde iria dar enorme glória a Deus. 

Em todas as ocasiões, pois, em que tudo parecer perdido, deve-se sempre fazer mais alguma coisa, porque o que se faz com confiança em Nossa Senhora é o que verdadeiramente tem mérito e o que produz resultado.  

A COOPERAÇÃO DE NOSSA SENHORA COM O ESPÍRITO SANTO 

Mostra-nos São Luís Grignion que a fecundidade do Padre dá origem, por uma geração eterna, ao Filho; e do amor do Padre e do Filho procede outra pessoa divina, o Espírito Santo. Gerado o Divino Espírito Santo, essa fecundidade parecia extinguir-se. Ela vai, entretanto, manifestar-se novamente em Nossa Senhora. É pousando sobre Maria Santíssima, é obumbrando-A, que o Espírito Santo gera a Nosso Senhor Jesus Cristo. 

Ela é, pois, verdadeiramente a esposa do Espírito Santo, não no sentido alegórico, mas no sentido estrito da palavra, porque Ele gerou um filho n'Ela. Nosso Senhor é verdadeiramente filho d'Ela, e Ela é verdadeiramente esposa do Espírito Santo. Assim, a participação d'Ela neste acontecimento é de uma sublimidade e de uma intimidade tais com Deus, que está fora de qualquer paralelo. 

Como esposa do Espírito Santo, Nossa Senhora tem ainda um título especial para a nossa piedade, pois tudo quanto diz respeito à Fé católica, à ortodoxia e à manutenção da fidelidade à Igreja, deve ser considerado como fruto e obra do Espírito Santo em nós. E, enquanto esposa do Espírito Santo, Nossa Senhora tem sobre Ele aquele poder que, no Antigo Testamento, tinha Esther sobre o rei Assuero, por ser sua esposa. Assuero, conta a Sagrada Escritura, havia decretado a morte de todos os judeus de seu reino; e Esther, pelas simples súplicas que lhe apresentou, conseguiu que a política dele fosse inteiramente mudada, e os judeus poupados. Esta ascendência, Nossa Senhora a tem sobre o Divino Espírito Santo, podendo conseguir-nos um tal grau de união com Ele, uma tal abundância de graças das quais Ele é a fonte, que, sem a Sua intercessão, ser-nos-ia inteiramente impossível conseguir. 

A devoção ao Espírito Santo é assunto pouco conhecido e pouco tratado. Fala-se vagamente do Espírito Santo, e poucos são os que se lembram dos pecados que contra Ele podem ser cometidos. Se tivéssemos idéia de nossos deveres para com o Espírito Santo, e de como eles se ligam diretamente à nossa salvação, teríamos outro estado de espírito a respeito

Falando grosso modo, os pecados contra o Espírito Santo que se conhecem são apenas os gravíssimos: negar a verdade conhecida como tal e desesperar-se da salvação. Mas há numerosas formas miúdas de pecados contra Ele - pecados que quase todos cometem - que, sem constituírem diretamente pecados gravíssimos, fazem com que contrariemos a obra do Espírito Santo em nós. Quantas defecções e estagnações espirituais não têm aí suas raízes! 

Negar a verdade conhecida como tal - Analisemos mais detidamente o pecado de negar a verdade conhecida como tal. Nós, católicos, não a negamos porque, com o favor de Nossa Senhora, somos fiéis à Igreja Católica. Mas cada vez que, por amor a um preconceito, a um capricho, a uma extravagância da inteligência, não aderimos a uma verdade da Santa Igreja, nós ofendemos o Divino Espírito Santo. Cada vez que queremos ter uma opinião particular, só pelo gosto de ser particular, não nos preocupando em pensar como a Igreja pensa, estamos contrariando a obra do Espírito Santo. 

Cada vez que, por mania de conservarmos íntegra a nossa “individualidade”, aberramos do espírito da Igreja, estamos contrariando a obra do Espírito Santo em nossas almas, a qual visa conformar-nos inteiramente à Igreja Católica. Nessas ocasiões, congelamos o progresso de nosso senso católico e, às vezes, até acabamos por ser um escolho para o apostolado da Igreja e para o desenvolvimento dos interesses católicos. Por que? Por falta de correspondência às graças do Espírito Santo. 

Desesperação da salvação - Analisemos agora o pecado que consiste em desesperar-se da salvação. Ele é cometido de forma plena quando uma pessoa renuncia expressamente a se salvar. Mas há outro modo, muito freqüente até, de se cair em grau menor nesse pecado. É quando nos deixamos influenciar pelo seguinte estado de espírito: "Tenho tal defeito que jamais conseguirei vencer; aliás, é um defeito pequeno (por exemplo, o ter mau gênio), de maneira que não vou combatê-lo". 

É um pecado contra o Espírito Santo. Porque, de fato, Ele nos dá todas as graças necessárias para que possamos vencer todos os nossos defeitos; se desesperarmos de corrigir algum, estaremos, em ponto pequeno, fazendo o mesmo que se desesperássemos de nossa salvação. A graça de Deus nos dá forças para nos corrigirmos de todos os nossos defeitos; se temos um defeito de que não nos corrigimos, somos indiscutivelmente responsáveis por isso. 

Outros, para acobertar suas falhas, dizem: "Para uma pessoa com mentalidade muito especial, determinada coisa pode não ser um defeito, mas um modo de ser. Em mim, portanto, isto não é defeito". Nada de mais falso! Quando o modo de ser não está de acordo com a razão, e não se conforma à ordem natural das coisas, é um modo de ser errado, e portanto um defeito

Uma pessoa que nasceu com um desvio na espinha poderia dizer: "Aquele outro, que tinha a espinha direita e depois a entortou, é um defeituoso. Mas em mim, que nasci assim, isto não é um defeito". Que diríamos dessa pessoa? Salta à vista que é defeito ter nascido com a espinha torta, e que se deve procurar endireitá-la. Da mesma forma, um nervoso poderia dizer: "Em mim, ser nervoso é um `tique', uma manifestação nervosa, um cacoete até interessante; os outros que suportem um pouco. Que culpa tenho de ser nervoso?" Ora, raciocinando-se desse jeito, poder-se-ia perguntar que culpa tem o dono de um carro, por ele disparar ladeira a baixo. Entretanto, se o carro não for freado, dispara mesmo, abalroa os outros, e o dono será culpado por todas as pernas e braços quebrados que houver pelo caminho. 

Não há culpa por se ter nascido com certos defeitos temperamentais, mas sem dúvida alguma há culpa por não se ter procurado corrigi-los. O desespero de não se corrigir desses defeitos, de não conseguir retificar o que há de errado, é uma falta de correspondência à graça de Deus, e é, em ponto muito pequeno, um defeito na linha de desesperar da própria salvação. De fato, se todos têm obrigação de ser conformes à razão, ninguém tem o direito de não o ser, e nisto estaria cometendo este pecado. 

Como evitá-lo? Por meio da oração à Santíssima Virgem. Nossa Senhora, que é a Medianeira universal e necessária de todas as graças, e por meio de Quem todos os dons do Espírito Santo se conseguem, pode obter-nos, como Esposa do Espírito Santo, todas essas graças. É enquanto Esposa do Divino Espírito Santo que devemos rezar a Ela.


Índice pormenorizado

Introdução

Segundo princípio: Deus quer servir-se de Maria na santificação das almas

Art. II - Consequencias: 1a. Maria é a rainha dos corações; 2a. Maria é necessária aos homens para chegarem ao seu último fim

Capítulo II - Verdades fundamentais da devoção à Santíssima Virgem

Capítulo II (continuação): Mediação Universal de Nossa Senhora na obra de São Luís Grignion

Capítulo III - Escolha da verdadeira devoção à Santíssima Virgem

Capítulo IV - A perfeita devoção à Santíssima Virgem ou a perfeita consagração a Jesus Cristo

Capítulo V - Motivos que nos recomendam esta devoção

Capítulo VI - Figura bíblica desta perfeita devoção: Rebeca e Jacó


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