Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Apologia das desigualdades harmônicas

 

 

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Catolicismo, n° 515, novembro de 1993

Lançada nos EUA obra do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira

WASHINGTON – Num Seminário Internacional realizado a 28 de setembro último, no prestigioso Mayflower Hotel, desta capital, foi lançada a edição norte-americana da obra Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII, um tema que ilumina a história social americana, de autoria do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira.

O evento contou com a entusiástica participação de 800 pessoas, tendo comparecido membros da nobreza européia, destacadas personalidades do movimento conservador, do mundo religioso, político e militar norte-americano, bem como sócios, cooperadores e correspondentes de diversas TFPs.

A presidência do Seminário, que alcançou pleno êxito, coube ao conhecido líder conservador Sr. Morton C. Blackwell, Presidente do Instituto de Liderança e membro do Conselho Nacional do Partido Republicano. O conde Andreas von Meran, da Áustria, foi o Presidente de honra do evento.

A Arquiduquesa Mônica da Áustria, Duquesa de Santangelo, Don Baltasar de Casanova y de Ferrer, Duque de Maqueda, da Espanha, o Marquês Luigi Coda Nunziante di San Ferdinando, da Itália, e o Deputado norte-americano Robert K. Dornan foram convidados especiais.

Após a realização de três painéis sobre assuntos relacionados com a temática do livro, dos quais participaram expositores do calibre do Almirante Thomas Moorer, ex-chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas dos Estados Unidos, o Seminário encerrou-se com a aparesentação da substanciosa conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, impedido de comparecer àquele ato. (…)

 

Discurso lido pelo Sr. Raymond Earl Drake, presidente da TFP norte-americana [os subtítulos não são do original]:

Preclaro Presidente do Simpósio, Sr. Morton Blackwell;

Alteza Imperial e Real, Arquiduquesa Mônica da Áustria;

Senhor Duque de Maqueda, ilustre prefaciador da edição espanhola do livro em torno do qual hoje nos reunimos;

Reverendos e diletos sacerdotes;

Senhores Roberto de Mattei e Marquês Coda Nunziante, representantes da pujante associação romana Lepanto;

Ilustres participantes do Simpósio, ou, melhor eu diria, simpáticos amigos a que me sinto vinculado por tantas aspirações e ideais por nós professados em comum.

Permiti que eu comece por vos saudar a todos quantos, procedentes dos mais diversos recantos de vosso grande país, aqui quisestes vir para refletirmos e sentirmos juntos o grande acontecimento que é o lançamento de um livro sobre um tema chave. Tema chave, sim, que há pelo menos dois séculos tem uma importância primordial nas cogitações e na escolha de vias das grandes nações do Universo.

O lançamento de um livro é um evento que tem muito de análogo com o nascimento de um homem. Mas com isso de diferente, que nascem a todos os instantes crianças bem constituídas, saudáveis e capazes de viver toda uma existência normal.

Não se pode dizer, pois, que qualquer simples nascimento ocorrido nessas condições promete revolver de futuro almas e corações, e – a fortiori – não traz a garantia de que mudará os rumos dos povos e das civilizações.

E o lançamento de um livro? A importância deste ato está em relação direta com o alcance do tema de que ele trata. Desde que seja um grande tema, por certo o livro moverá almas e quiçá até civilizações. E isto, ainda que o livro, considerado em si mesmo, não seja um grande livro. Se for um grande livro, poderá ele revolver as almas e as civilizações de escol, é certo. Mas, se o livro for medíocre, poderá ainda assim ter um papel de importância, pois estará a seu alcance mover os medíocres. E poucas vezes, na História, as idéias preponderantes, os costumes e as civilizações foram tão abertas, quanto hoje em dia, a se deixarem governar pelos medíocres. Neste apogeu da mediocridade, assegurado pela propaganda com que a mídia promove à notoriedade e até à glória de tantos medíocres, estamos no zênite das possibilidades de fama e de êxito do livro medíocre.

Talvez seja medíocre o livro que hoje vedes nascer na presença de um público que, como vós, está nos antípodas da mediocridade. Talvez seja medíocre seu autor, ou o modo pelo qual este desenvolva ante vós o seu tema. Uma coisa, todavia, é certa: se este tema não for medíocre, o livro não o será, pois os temas de importância e de valor suscitam sempre ecos de grande alcance, se nascem em presença de um público notável.

Entro, pois, com inteira tranqüilidade, nas presentes reflexões. Vossa personalidade, o eco inteligente que vossos comentários darão a um livro cujo tema estará – a despeito da insuficiência do autor – à altura dos que o ouvem, faz com que as portas deste salão estejam cerradas à mediocridade.

As elites: são elas justas?

E com efeito, senhoras e senhores, o nosso tema de hoje está no centro do cogitar e do agir da humanidade. É o conhecidíssimo tema, sempre velho, sempre novo, sempre inesgotável, das elites.

Em outros termos, em vista das desigualdades que se notam em todos os tempos, e em todas as sociedades humanas, três perguntas se erguem: É justo que haja elites? São elas úteis para o bem comum religioso, moral, político e cultural dos povos e das civilizações? Uma elite, o que quer dizer isto precisamente?

Tais são as perguntas a que devemos responder, logo ao limiar de nosso tema.

Desigualdade: fator de progresso e de felicidade, ou inimica vis a ser destruída?

No íntimo de cada homem, há tendências opostas a se entredegladiarem. Uma delas leva cada qual, movido pelo anseio de viver reta e razoavelmente, a procurar para si a maior perfeição, obtida a qual julgam que ipso facto terão alcançado a maior felicidade. Ao sopro dessa tendência, o esposo e a esposa quererão ter um procedimento recíproco perfeito, de onde esperam que resulte um lar perfeito: um pequeno paraíso terrestre. Assim procurarão os pais agir de modo perfeito em relação aos filhos, mediante o que podem esperar uma descendência numerosa, unida e feliz. O profissional que proceda analogamente no seu métier, ou o homem ou a dama de sociedade que se conduzam segundo a mesma norma no campo das relações sociais, mil outros gêneros de pessoas colocadas em mil outras situações, e inspiradas nos mesmos princípios aqui enunciados, terão – dir-se-ia – alcançado o clímax da felicidade terrena. Pois, desta última, a imensa maioria dos homens é insaciável. E por isso se deixará levar pela tendência analisada e mencionada pelo Projet socialiste pour la France des anneés 80 nos seguintes termos: "querer tudo, imediatamente, sempre e por toda parte".

Sob certo ponto de vista, essa ambiciosa marcha ascensional poderia ser identificada com a marcha para o progresso. Pois, para os fautores do progresso – tomada a palavra como a entenderam, ao longo deste século, incontáveis dentre nossos coetâneos – a posse de tudo quanto é necessário, útil ou pelo menos conveniente ao homem, a conquista segura desta posse mediante a menor soma de esforços e o menor dispêndio de tempo, bem como a radiosa certeza de possuir para sempre, sem risco nem turbação todos os bens assim conquistados: eis exatamente a meta da vida da humanidade gozadora, nascida nas alegrias e nas esperanças da Belle Époque, e que mesmo as duas guerras mundiais, que atravessaram depois nossa centúria como catástrofes sem precedentes, e concluíram em Hiroshima e Nagasaki com ameaças ainda muito mais terríveis, não conseguiram destruir.

Desta forma, em meados deste século, do consenso dos povos mais evoluídos (esta palavra não podia faltar aqui, sem embargo de tantos erros, tantas ilusões, tantas conquistas e tantas decepções a que ela serviu de expressão, eu diria que também de estandarte e quase de talismã) do consenso dos povos – repito – se elevou um hino de gáudio e de esperança da maior parte dos corações.

Ora, foi precisamente em defesa deste júbilo, o qual tantos sentiam como se fosse universal, que se ergueu por vezes o clamor – talvez melhor se dissesse o rugido – revolucionário, disposto a exterminar a dissonância de certas vozes prenunciativas de problemas, de crises e de angústias que de nenhum modo figuravam entre as "profecias" fáceis e divertidas da Belle Époque.

Na mente do homem contemporâneo ("contemporâneo" de ontem, entendamo-lo bem, e não contemporâneo de hoje), esta palavra "progresso", freqüentemente empregada no sentido de "evolução", trazia em seu bojo um elemento capital: o conceito de igualdade social.

Com efeito, face a este hino, como também a este rugido universais, se erguia um fato evidente: a desigualdade também universal.

Qual a correlação entre esse hino e esse rugido? Em outros termos, a desigualdade seria um fator do progresso e da felicidade dos homens? Neste caso, seria ela como que uma amica vis, uma força amiga, a ser estimulada e protegida por estes? Ou seria, pelo contrário, uma inimica vis, a ser destruída por eles?

Como vimos há pouco, quando falamos do páreo em prol de condições de vida cada vez mais vantajosas, cada concorrente carrega como fator positivo a força natural de que dispõe no difícil rumo ao êxito. De outro lado, ele leva como força negativa todas as debilidades individuais que lhe encurtem o fôlego durante o percurso. De onde cada concorrente dar por encerrada sua maratona no momento preciso em que ele sinta que a debilidade lhe circunscreveu inexoravelmente o limite da ambição. Mas haveria engano em supor que um homem que pare, se considere sempre e necessariamente um derrotado. Às vezes ele se sente até surpreso por ter fornecido um esforço maior do que imaginava. Sente-se, pois, um vitorioso. E muitas vezes não sem razão.

Em uma sociedade organizada dentro dessa perspectiva, os homens são desiguais por natureza. E, desde que cada um tenha feito quanto pode, é explicável que ele se considere satisfeito. A desigualdade, resultante da natureza, e reconhecida pelo bom senso, gera o bem-estar. Como vimos, essa é uma das tendências presentes no homem. Ela se digladia dentro do próprio homem com uma tendência oposta, que não ruma para a perfeição. Ela visa como bem máximo viver segundo a lei do mínimo esforço, e portanto numa inação tão completa quanto o permitam as circunstâncias. Naturalmente, tudo isso importa na aceitação de uma vida medíocre e apagada, na qual a inveja dos mais ricos não consegue atrair para a ação um tal apreciador da inação. Ou seja, em nada importa a esta tendência ter muito ou ser muito. Importa-lhe sobretudo que ninguém tenha mais ou seja mais, entre a turba multa que corre na pista da vida. O que importa é não ter superiores, é não ser inferior a quem quer que seja. A igualdade absoluta seria a lei do bem-estar perfeito. A voz do homem dotado de uma tal mentalidade destoa da voz do que suporta bem as desigualdades, contanto que suas necessidades sejam atendidas. Neste último, o bem-estar entoa um cântico da felicidade obtida por um trabalho razoável. No segundo, a inveja uiva de descontentamento enquanto não tenha imposto a todos a lei artificial da igualdade absoluta.

É este, senhoras e senhores, o grande problema central a respeito do qual se ergueu, em meio ao caos e aos tumultos consecutivos à Segunda Guerra Mundial, a augusta voz de Pio XII, nas suas catorze alocuções imortais, ao Patriciado e à Nobreza de Roma. Alocuções ao lado das quais não seria justo omitir os também notáveis ensinamentos de Bento XV ao Patriciado e à Nobreza romana, na alocução Nel recente anniversario, em 5 de janeiro de 1920, sobre tema análogo.

A trilogia por excelência controvertida

Sobre este problema da igualdade, da harmonia dela com o legítimo bem comum dos povos e das nações, em épocas anteriores já se haviam debruçado esporadicamente pensadores fundados em pressupostos aliás muito divergentes entre si. Especialmente, esse tema foi versado – e com quanta paixão! – pelos protagonistas e corifeus do Iluminismo. Baseados nas falsas soluções que lhe deram, tais iluministas e seus sequazes convulsionaram todo o mundo civilizado, a partir de fins do século XVIII até nossos dias. De então para cá, a bem dizer não houve revolução a que ele fosse estranho, nem guerra com cuja motivação ou com cujo desfecho não estivesse relacionado.

A igualdade, sobre a qual discorremos, fazia parte da trilogia ambígua Liberté, Égalité, Fraternité, tão fortemente controvertida que sobre o modo de a interpretar encontramos dissonâncias até em textos pontifícios.

Não é meu intuito reabrir aqui a controvérsia, mas analisar convosco, se não toda a famosa trilogia, pelo menos o segundo termo dela, egalité. E isto, não do ponto de vista estritamente filosófico, mas segundo a sente o homem contemporâneo, o "homem da rua", que constitui por toda parte a maioria "soberana", à qual os regimes representativos atribuem ainda hoje a voz decisiva.

Este é um grande tema sobre o qual o homem contemporâneo é chamado a dar sua opinião, não mais no desamparo doutrinário de eras anteriores, mas à luz esclarecedora das famosas alocuções de Pio XII. E é sobre este tema que, com particular atenção, ofereço-vos hoje algumas reflexões, contidas aliás neste livro cujo lançamento vossa ilustre presença assinaladamente comemora.

Igualdade fundamental e diversidades naturais entre os homens

Dois marcos simétricos confinam o tema. É certo que a desigualdade deve ter limites. Certo é também que a igualdade os deve ter.

Muito sumariamente exposta a matéria, seja-me dado dizer que os limites da desigualdade estão traçados na própria natureza humana. Isto é, por ser naturalmente inteligente e livre, o homem – todos os homens – têm uma dignidade comum que deles faz reis do Universo.

Debaixo desse ponto de vista todos os homens são iguais. E o que reduza, de qualquer maneira, no homem essa dignidade fundamental e nativa, essa igualdade natural e radical, o mutila, amesquinha e ofende.

Como corolário do que acaba de ser dito, todos os homens são iguais no direito à vida, à constituição de uma família sobre a qual exerçam sua autoridade, no direito ao fruto de seu próprio trabalho, e no direito a que seu salário seja bastante para lhe proporcionar, como aos seus, habitação condigna e segura, alimentação suficiente e saudável, recursos para garantir aos próprios filhos instrução conveniente, etc. E, bem entendido, os filhos só devem ser autorizados a trabalhar caso tenham alcançado a idade suficiente para ter adquirido os primeiros rudimentos de educação e instrução.

Em outros termos, no que toca a todos os homens pelo simples fato de serem homens, são todos eles iguais.

Mas sucede que, além dessas qualidades básicas, os homens são dotados de inúmeras outras, que variam entre si como que ao infinito, também pelo simples fato de serem homens.

E assim, a própria igualdade natural e legítima costuma ser o ponto de partida de desigualdades legítimas, que estão, elas também, na ordem natural das coisas. Tão numerosas são elas, e tão diferentes, que seria interminável tentar enumerá-las todas.

Acresce que essas diversidades naturais ainda são freqüentemente acentuadas pelas circunstâncias da vida, pelo maior ou menor empenho que o homem põe em aprimorá-las etc.

Quanto a essas desigualdades, são elas legítimas? São conformes ao bem comum? Eis aí, apresentada em termos que por assim dizer espremem ainda mais a realidade, as perguntas iniciais, que há pouco formulei.

Argumentam os opositores

Dir-se-ia à primeira vista que tais desigualdades são ilegítimas.

Com efeito, tudo quanto faz sofrer os homens é repelido pela natureza deles. A dor não é senão um sintoma que exprime ao homem a contradição entre as exigências de sua natureza e a situação em que, por uma ou outra razão, ele se encontra. Ora, dado o pecado original, as desigualdades habitualmente fazem sofrer quem é inferior. Dir-se-ia que há no homem uma tendência a clamar continuamente contra tudo e todos que lhe são superiores. Em conseqüência, a humanidade como que inteira geme sob o peso uno, compacto, incessante, das desigualdades. Suprimi-las, eis então a grande meta da Evolução e do Progresso. Tal seria pois o grande ideal da marcha ascensional dos homens. Marx, Lenin, Stalin não tiveram meta mais radical.

E as elites? Nessa perspectiva, a humanidade não teria piores inimigas do que elas. Pois o que seria uma elite senão uma gangue de malfeitores conjugados para acumularem, em proveito próprio, bens de toda ordem, espirituais e materiais, que tocariam a todos?

Por mais que sejam rudimentares esses argumentos, eles se encontram como leitmotiv no âmago de todas as oposições às desigualdades. Cabe, pois, analisá-los.

Às elites cabe uma missão a favor do bem comum

Sem dúvida, às elites, tão diretamente decorrentes da ordem natural que produziram as desigualdades inevitáveis, cabe-lhes uma missão a favor do bem comum. Pois, se existem, devem estar dispostas ao sacrifício que essa tarefa exige, e ao aprimoramento que o perfeito cumprimento desta tarefa impõe. Seria absurdo imaginar que a ordem natural das coisas criadas por Deus tivesse por únicos beneficiários os gozadores empenhados tão-só em utilizar, para seu exclusivo proveito, bens cuja carência tenderia a criar uma desdita e uma miséria universais.

De outro lado, se o progresso e a assim chamada evolução constituem marchas em ascensão, essas só podem realizar-se com os sacrifícios que as ascensões exigem, quer na ordem dos bens da alma, quer nos do corpo. E o mover ascensionalmente toda a humanidade não se concebe sem um doloroso esforço, ao qual grande parte – a maior parte – dos homens é mais ou menos infensa. É preciso que esse imenso esforço ascensional conjunto seja realizado em escala nacional como em escala regional, ou ainda simplesmente em escala familiar ou individual, por indivíduos ou corpúsculos especialmente bem dotados na ordem da natureza e da graça. É preciso que esses macrocorpos, corpos, corpúsculos ou simplesmente indivíduos desejem intensamente o próprio melhoramento, bem como o melhoramento de tudo quanto os rodeia, de sorte que eles sejam as grandes forças propulsoras do aprimoramento individual como do progresso social. Em uma palavra, eles são o fermento, e os restantes são a massa. Imaginar que o fermento é o adversário da massa porque se distingue dela, porque caminha mais depressa no sentido ascensional, porque eleva aquilo em que atua, em suma, porque lhe serve como que de propulsor e de estímulo; imaginar que a massa sofre ao se ver assim superada e elevada, isso é combater o progresso, desfibrar a evolução, paralisar a vida, impor a todos os homens os tormentos do tédio, do ócio, da inutilidade.

Essas reflexões se apóiam no ensinamento do Divino Mestre, quando, para fazer compreender aos homens a missão preponderante do clero na Igreja, lhes disse: "Vós sois o sal da terra. E se o sal perder a sua força, com que se salgará? Para nada mais serve senão para ser lançado fora e calcado pelos homens. Vós sois a luz do mundo: não pode esconder-se uma cidade situada sobre um monte; nem acendem uma lucerna, e a põem debaixo de um alqueire, mas sobre o candeeiro, a fim de que ele dê luz a todos os que estão em casa. Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, para que eles vejam as vossas boas obras, e glorifiquem o vosso Pai que está nos céus" (Mt. 5, 13-16).

Os que sonham com a existência, na ordem temporal, de homens de escol que não iluminem nem salguem, e que por isso mesmo não deixem ver sua superioridade e colaborem necessariamente com a inércia, fazem o jogo das trevas e não o da luz.

Os membros das elites são por excelência os beneméritos da sociedade

Tais considerações tornam patente não só a conveniência, como a necessidade das figuras de escol, para o bem comum. E desfazem uma impressão falsa que espíritos superficiais têm formado por vezes acerca da situação dessas figuras.

Na aparência, a vida constitui para elas uma contínua delectação. Um grande cientista, um orador notável, um economista célebre, enfim, qualquer homem que se destaque pelo êxito com que aplica seu talento nos campos de atividade mais árduos, mais delicados ou mais complexos da vida humana, facilmente se faz remunerar de modo mais compensatório do que seus colegas de envergadura moral ou intelectual menor. Facilmente, também, esses homens destacados por seus talentos ou virtudes tendem a formar entre si grupos sociais mais ilustres. E, como conseqüência, dispõem para si e para os seus de recursos econômicos mais abundantes. Quem os vê pensa: são uns gozadores.

Na realidade, são eles por excelência os trabalhadores, isto é, os que empregam no respectivo trabalho a maior soma de qualidades intelectuais, e de esforços das mais diferentes modalidades. Eles que, trabalhando mais, dão mais. E, dando mais, naturalmente recebem mais do que o comum dos homens. Em suma, são eles os beneméritos por excelência.

Uma classe social superior às demais: fruto da ordem natural

Por tudo quanto foi dito, é natural que eles tendam a formar assim uma classe social superior às demais. E desse modo, por análogos processos, se constitui a escala social, para grande vantagem da coletividade.

Nos vários degraus dessa escala se dispõem as diversas elites.

"Escala": a metáfora é corrente e aliás também expressiva. São autênticas escadarias, os elementos constitutivos de uma sociedade formada segundo a ordem natural das coisas.

A projeção destes conceitos sobre a instituição da família e a sucessão das gerações

Erraria quem supusesse que tais escalas se constituem exclusivamente de notabilidades individuais. O homem é, por natureza, membro de uma família. E onde está o grande homem, com ele está sua família.

Assim, os degraus das várias escalas sociais se constituem naturalmente de famílias, cujos membros são solidários entre si na grandeza como na mediocridade ou na obscuridade. "Ubi tu Gaius et ego Gaia", dizia o cerimonial do matrimônio romano.

E essa solidariedade natural se projeta através das gerações. A glória de um homem benemérito se transmite, com o nome, a toda a sua descendência. E o portador, por via de descendência, de um nome ilustre, carregará consigo algo de ilustre enquanto essa descendência se prolongar através dos decênios, quiçá das centúrias.

Com efeito, se, em determinadas circunstâncias, é explicável que a recordação de um feito benemérito se apague com o tempo, é igualmente explicável que, em outras circunstâncias, o nome ligado a feitos célebres, praticados por toda uma sucessão de pessoas famosas, a justo título se torne imortal.

Fundar uma cidade é uma ação que tem sempre algo de insigne. Participar das primeiras gerações, cuja coragem e força de ação assegurou a essa cidade algumas décadas ou até séculos de prosperidade, de prestígio e de força, confere algo de particularmente insigne aos nomes das famílias que participaram de tal labor. Mas projetar o prestígio, a fama, a cultura e a riqueza de uma cidade, de maneira que ela se torne ilustre no mundo inteiro, ao longo dos milênios, é mais do que insigne: é glorioso.

Dizendo-o, pensamos por exemplo em Roma, cidade reluzente das mais diversas modalidades de glória, ao longo de incontáveis séculos. Ter sido um dos fundadores de Roma, pertencer a uma das famílias que, conservando sua identidade através dos tempos, atuou de modo insigne para que Roma acabasse por ser uma das capitais do mundo – e ela ainda o é – constitui algo de glorioso, como sucede a certos vinhos que, ao longo dos anos, não fazem senão melhorar.

Velhos nomes, velhas cidades, velhos feitos, velhas estirpes, velhas grandezas: quanto cresce em reluzimento a palavra velho, que tantos desprezaram de um modo doido na era recém-finda da modernidade, mas cujo fascínio os homens estão voltando a sentir de novo, na aurora perturbada e estranha desta pós-modernidade que nasce, bruxuleante e insegura, nos dias em que vivemos.

A transmissão hereditária dos méritos, das glórias e dos títulos

A esta altura de nossas reflexões, quanto parece vã a objeção antitradicionalista dos que se erguem contra a transmissão hereditária dos méritos, das glórias e dos títulos acumulados no passado!

O fato de que um general ou um diplomata tenha salvo da ruína o seu país pode merecer a esse benfeitor público um sinal honroso, da gratidão nacional – argumentam certos antitradicionalistas. Mas o bem praticado pelo pai não pode de nenhum modo provar que o filho tenha idênticas qualidades. Logo, a transmissão ao filho, de honrarias que só o pai mereceu, mas de nenhum modo o filho, é contrária à justiça. Implica em um filhotismo descabido, e estabelece uma paridade injusta entre os que vivem, inertes e inúteis, acocorados à velha sombra do nome paterno, e os que, movidos por uma insigne capacidade de trabalho, podem – estes sim – ser tidos como os verdadeiros grandes homens dos dias de hoje, os quais de nenhum modo são equiparáveis aos pálidos herdeiros, vestígios decadentes de uma glória de outrora.

Segundo essa teoria, nada de mais normal do que ver o pai ilustre ter um filho obscuro e pobre.

Quanto este modo de pensar transgride fundamentalmente a instituição da família!

O nobre impulso do desvelo paterno leva o bom pai a querer que, quando tenha transposto os umbrais da morte, deixe ao filho uma situação proporcionada com a do genitor. Se o pai consagrou toda a sua capacidade de agir em favor do bem comum, natural é que ele espere da gratidão pública que assegure ao filho uma situação proporcionada a tudo quanto seu pai deixou de ganhar para melhor servir à Pátria.

A gratidão é uma virtude que, na esfera privada, passa normalmente do pai para o filho. E se um homem de haveres foi eximiamente tratado em sua velhice por um enfermeiro dedicado, é incompreensível que o ancião não deixe para seu enfermeiro um legado proporcionado. Os grandes homens não são, em certo sentido, os grandes enfermeiros do país? E não deve este último, a tais grandes homens ou a seus descendentes, por seus grandes benefícios, um grande legado, sinal de sua justa gratidão?

Uma grande, virtuosa e durável família: obra das mais insignes que é dado ao homem fazer

Há mais. Escrevendo certa vez ao ilustre Joseph de Maistre (1753-1821), uma dama da aristocracia francesa se lamentava porque ela, como as demais de seu gênero, haviam tido a desdita de uma vida insípida. Pois, segundo os costumes do tempo, as damas nunca ou quase nunca escreviam livros, tarefa elevada que era reservada, como privilégio, para os homens. A isto, o escritor respondeu espirituosamente que a dama se equivocava. Pois, ao sexo feminino competia dar a vida aos filhos, o que é muito mais nobre do que dar a lume um livro.

Não se pode negar que, na gentil resposta, há pelo menos uma parcela de verdade. Cooperando com o esposo para a prolificidade do matrimônio e a conseqüente fecundidade da família, a esposa também faz jus à gratidão que o esposo insigne mereça do país, pela magnitude de suas obras. Pois do casamento, seguido de uma ação desvelada, infatigável, atenta, para que os filhos recebam uma formação verdadeiramente cristã e que, por sua vez, a transmitam autenticamente à sua descendência próxima e remota, o casal originário terá feito uma das mais eminentes obras que é dado ao homem fazer: isto é, uma grande, virtuosa e durável família.

Tudo isto torna esposa e filhos verdadeiros partícipes de toda a vida do pai, de seus méritos e dos prêmios correspondentes. Logo, também, das honrarias a que ele faça jus.

Dinastias de reis, de aristocratas, de burgueses e de operários

Não se imagine que, ao tecer estas considerações, tenho em vista exclusivamente as famílias de alta categoria social ou até somente as Casas reinantes. Na realidade, mesmo às famílias mais modestas estão abertas as portas de acesso a essa despretensiosa mas quão genuína glória.

A partir da Revolução Francesa, o mundo assistiu, imbecilmente alegre, quando não absurdamente esperançoso, à destruição em massa das "dinastias" grandes e pequenas, de tzares como de mujiques, de aristocratas como de burgueses ou de operários, no Ocidente cristão. Tal destruição se deu de modo tão desapiedado e sistemático, que muitos de nossos contemporâneos não têm sequer idéia do que isto tenha sido no passado, isto é, durante a Idade Média e os Tempos Modernos.

Nesse largo período histórico, a robustez da instituição familiar a dotava de uma coesão que levava a maior parte de seus membros a trabalharem no mesmo ramo de atividade econômica. Isto fazia com que, em certas regiões, determinados ofícios passassem a ser, pelo costume, privilégios de certas famílias. O ofício de relojoeiro poderia ser citado entre muitos outros. Em cada ofício, o êxito industrial e comercial da profissão dependia de fatores que só a coesão familiar admirável tornava possível. Assim, entre estabelecimentos "parentes" do mesmo ramo, era ponto de honra que não existisse um mútuo combate tantas vezes verificado hoje, mas uma colaboração econômica, técnica ou empresarial. Os casamentos de família uniam essas grandes estruturas de produção ou comércio, de forma que se lhes tornassem ainda mais solidários os vários ramos. E assim por diante.

Tudo isto fazia de cada ramo uma vasta unidade, que dessa forma se agrandava.

Conhecemos o caso de um ilustre escritor de nossos dias que, ao sentir-se tratado como Monsieur de... por um interlocutor que o imaginava nobre, retrucou com presteza: "Não sou nobre. Conheço as origens mais remotas de minha família, e posso informar-lhe que, desde Carlos Magno até hoje não nasceu nela uma só geração na qual não houvesse um de seus membros inscrito como soldado raso".

Dinastias de reis, de grandes, de médios e de pequenos senhores, dinastias de magistrados, de burgueses, de camponeses, de soldados e de marinheiros. A França de então quase poderia ser definida como um conjunto de dinastias. Tal seria a imagem de um país no qual a instituição familiar teria projetada sua luz até nos mais humildes escaninhos. Quem não sente a beleza e a força de uma tal organização, na qual, a bem dizer, tudo são elites, ou pelos menos há elites em todos os compartimentos sociais!

Povo e massa, segundo Pio XII: critérios fundamentais para a qualificação de uma democracia

Tal panorama social ou sócio-político nos ajuda a compreender melhor o pensamento de Pio XII, no que diz respeito aos conceitos de Povo e Massa contidos no seu texto célebre sobre esse importante binômio.

Ouçamos a tal respeito o pranteado Pontífice:

"Povo e multidão amorfa ou, como se costuma dizer, massa, são dois conceitos diversos.

O povo vive e move-se por vida própria; a massa é em si mesma inerte e não pode mover-se senão por um elemento extrínseco.

O povo vive da plenitude da vida dos homens que o compõem, cada um dos quais – na sua própria posição e do modo que lhe é próprio – é uma pessoa cônscia das suas próprias responsabilidades e das suas próprias convicções. A massa, pelo contrário, espera o impulso que lhe vem de fora, fácil joguete nas mãos de quem quer que lhe explore os instintos e as impressões, pronta a seguir, sucessivamente, hoje esta, amanhã aquela bandeira.

Da exuberância de vida de um verdadeiro povo, a vida difunde-se abundante, rica, no Estado e em todos os seus órgãos, infundindo-lhes, com vigor constantemente renovado, a consciência da sua própria responsabilidade, o verdadeiro sentido do bem comum. Da força elementar da massa, habilmente manejada e utilizada, pode também servir-se o Estado; nas mãos ambiciosas de um só, ou de vários, que as tendências egoísticas tenham artificialmente coligado, o próprio Estado pode, com o apoio da massa reduzida a não ser mais do que uma simples máquina, impor o seu arbítrio à parte melhor do verdadeiro povo. O interesse comum recebe daí um golpe grave e durável, e a ferida torna-se rapidamente muito difícil de ser curada.

Daí se infere claramente outra conclusão: a massa – que acabamos de definir – é a inimiga capital da verdadeira democracia e do seu ideal de liberdade e de igualdade.

Num povo digno de tal nome, o cidadão sente em si mesmo a consciência da sua personalidade, dos seus deveres, dos seus direitos, da sua liberdade conjugada com o respeito à liberdade e dignidade do próximo. Num povo digno de tal nome, todas as desigualdades, decorrentes não do arbítrio, mas da própria natureza das coisas, desigualdades de cultura, de haveres, de posição social – sem prejuízo, bem entendido, da justiça e da mútua caridade – não são, de modo algum, um obstáculo à existência e ao predomínio de um autêntico espírito de comunidade e fraternidade. Mais ainda, longe de ferir de qualquer maneira a igualdade civil, elas conferem-lhe o seu legítimo significado; ou seja, que perante o Estado, cada qual tenha o direito de viver honradamente a própria vida pessoal, na posição e nas condições em que os desígnios e disposições da Providência o colocaram.

Em contraste com este quadro do ideal democrático de liberdade e igualdade de um povo governado por mãos honestas e previdentes, que espetáculo oferece um Estado democrático entregue ao arbítrio da massa! A liberdade, enquanto dever moral da pessoa, transforma-se numa pretensão tirânica de dar livre curso aos impulsos e apetites humanos, com prejuízo do próximo. A igualdade degenera num nivelamento mecânico, numa uniformidade monocromática; o sentimento da verdadeira honra, a atividade pessoal, o respeito à tradição, à dignidade, numa palavra a tudo quanto dá à vida o seu valor, pouco a pouco vai-se soterrando e desaparece. E sobrevivem apenas, de um lado as vítimas iludidas do fascínio aparente da democracia, ingenuamente confundido com o próprio espírito da democracia, com a liberdade e a igualdade; e de outro lado os aproveitadores mais ou menos numerosos que tenham sabido, por meio da força do dinheiro ou da organização, assegurar em relação aos outros uma condição privilegiada, e o próprio poder" (Radiomensagem de Natal de 1944, Discorsi e Radiomessaggi di Sua Santità Pio XII, Tipografia Poliglotta Vaticana, vol. VI, pp. 239-240).

É fácil perceber que a sociedade de "dinastias" – das quais há pouco falei – ou seja, de corpos sociais ou sócio-econômicos distintos, vivendo de uma vida própria, em condições favoráveis para que a vida do povo movimente e impulsione o Estado, em lugar de este impulsionar aquele, nos dá um panorama a respeito do qual é-se propenso a fazer a pergunta que os royalistes fizeram ao eleitorado francês, a propósito da restauração monárquica com que sonhou bom número deles, no segundo pós-guerra: "Le Roi? pourquoi pas?"

Assim, diante dessas evocações de um passado que ainda deixa hoje vestígios – na Suíça, por exemplo – e desperta recordações e nostalgias, a pergunta que se põe aos olhos de muitos é esta: "As elites sociais? por que não?"

A decapitação incruenta das elites nos Estados modernos

Tudo quanto ficou afirmado aqui não implica em dizer que as elites sociais ou sócio-políticas devam ser, no futuro, rigorosamente iguais ao que foram no passado. Afirma-se tão-só que a negação radical de todas as elites, a perseguição sistemática conduzida contra elas, a supressão aparente ou real delas para estabelecer um regime que acaba por ser preponderantemente um regime de massas, ou que, pelo menos, acabará por chegar até lá, nisto tem consistido, em linhas gerais, a caminhada seguida de 1789 para cá, por todas as nações modernas, e particularmente pelo Estado norte-americano.

Este último fato é de um alcance particularmente grande, tendo-se em linha de conta que, por várias razões, entre as quais sobreleva notar um curioso fenômeno de mimetismo internacional, quando uma nação ocupa posição de poder inigualado no plano mundial, as nações que não chegaram a esse nível, ou que dele decaíram, tendem facilmente a adotar como solução para os seus próprios problemas a imitação da nação-caput.

Ora, nação-caput, os Estados Unidos o têm sido no mundo de hoje, com crescente influência, desde o fim da Primeira Guerra Mundial e o Tratado de Versailles até nossos dias. Em boa parte por isso, a decapitação incruenta das elites realizada nos Estados Unidos (se bem que em escala menor do que o tem feito crer a propaganda de certas esquerdas) criou uma fisionomia histórica fictícia desse grande país, ou seja, a de uma nação de um igualitarismo muito mais radical do que afirma determinada historiografia. E esta miragem, geralmente acreditada pelos povos, serviu de modelo e de estímulo a todo o Ocidente.

As presentes considerações tornam evidente a importância da meta com que foi escrito Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII, um tema que ilumina a história social americana. Pois este livro se propôs, entre outros fins, o de mostrar que não só os Estados Unidos jamais foram essa nação ferozmente igualitária, anti-hierárquica, e portanto adversa ao sadio ideal do povo-nação, mas que, em nossos dias, está singularmente acrescido o número de norte-americanos que desejam ordenar de tal maneira suas instituições, que vão formando cada vez mais uma nação de elites.

O espírito do Evangelho conduz à colaboração entre classes harmonicamente desiguais e não à luta de classes

Elite... Sem embargo de tudo quanto foi dito, esta palavra conserva entretanto, em certos setores da população norte-americana, como de outros povos, uma ressonância antipática.

Com efeito, para muitos ela soa como uma discriminação honrosa e até lisonjeira para os que estão em cima, mas, ao mesmo tempo, depreciativa para os que estão em baixo.

A tal título, a palavra elite traria até consigo uma conotação anticristã, pois seria para estes últimos uma causa de vexame, e portanto de dor. Dessa dor da qual, como foi dito, o Divino Salvador foi adversário irredutível e onipotente.

A luta de classes estaria, pois, no âmago de uma concepção cristã sobre a relação entre as classes sociais.

Ora, a leitura do Evangelho conduz precisamente ao contrário. Ou seja, à colaboração entre as classes sociais harmonicamente desiguais.

Amor à Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo

Não desejaria terminar estas considerações, que foram tornadas excessivamente longas pelo deleite do convívio espiritual convosco, sem lembrar uma grande e suprema verdade, cuja recordação deve iluminar os aspectos finais da meditação desta noite, em que tantas vezes vos falei acerca das elites consideradas em função de suas relações com o bem dos corpos e das almas, nesta vida terrena.

Não nos iludamos sobre a verdadeira importância desse bem, ainda que considerado principalmente – como de direito – em seu aspecto mais autêntico, que é o do bem das almas.

O Evangelho nos faz ver, com a maior evidência, quanto a misericórdia de nosso Divino Salvador se compadece de nossas dores da alma e do corpo. Basta atentar para os milagres assombrosos de sua onipotência, praticados tantas vezes para as mitigar.

Entretanto, não imaginemos que esse combate à dor tenha sido o maior benefício por Ele feito aos homens, nesta vida terrena.

Não compreenderia a missão de Cristo ante os homens, quem fechasse os olhos para o fato central de que Ele é nosso Redentor, e de que quis padecer dores crudelíssimas para nos remir.

Até na culminância de sua Paixão, Nosso Senhor poderia ter feito cessar instantaneamente todas essas dores, por um mero ato de sua vontade divina. Desde o primeiro instante de sua Paixão até o último, Ele poderia ter ordenado que suas chagas se fechassem, seu sangue precioso deixasse de correr, os golpes por Ele recebidos deixassem de manter cicatrizes no seu corpo divino e, por fim, uma vitória brilhante e jubilosa cortasse o passo, bruscamente, à perseguição que O ia arrastando até a morte.

Porém, Ele não o quis. Pelo contrário, Ele quis deixar-se arrastar pela via dolorosa até o alto do Gólgota, quis ver sua Mãe Santíssima entregue ao auge da dor e, por fim, quis bradar, de maneira a que O ouvissem até o fim dos séculos, as palavras lancinantes: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?" (Mt. 27,46).

Nesses fatos compreendemos que, dando-nos a graça de sermos chamados com Ele para padecermos cada qual um quinhão da sua Paixão, Ele tornava claro o papel inigualável da cruz na vida dos homens, na História do mundo e na sua glorificação.

Não pensemos que, convidando-nos a padecer as dores da vida presente, Ele tenha querido dispensar-nos de pronunciar, cada qual, no transe da morte, o seu consummatum est (cfr. Jo. 19,30).

Sem a compreensão da cruz, sem o amor à cruz, sem ter passado cada qual por sua via crucis, não teremos cumprido a nosso respeito os desígnios da Providência. E, ao morrer não poderemos tornar nossa a exclamação sublime de São Paulo: "Combati o bom combate, conclui a minha carreira, guardei a fé. De resto, está-me reservada a coroa da justiça que o Senhor, justo Juiz, me dará naquele dia" (II Tim. 4, 7-8).

Elites, organização familiar perfeita, amor intenso entre os cônjuges, entre estes e os filhos, e, por fim, dos filhos entre si, são qualidades exímias. De nada servirão entretanto se, como base delas, não houver em todas as almas o amor à Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Com tal amor, tudo conseguiremos, ainda que nos pese o fardo sagrado da pureza e de outras virtudes, os ataques e os escárnios incessantes dos inimigos da Fé, as traições dos falsos amigos.

O grande alicerce, o máximo alicerce da Civilização Cristã está em que todos os homens exercitem generosamente o amor à Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Que a tanto nos ajude Maria, e teremos reconquistado para o Divino Filho dEla o Reino de Deus, hoje tão bruxuleante no coração dos homens.

Plinio Corrêa de Oliveira


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