Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

A santidade, a nobreza e a hierarquia

 

na Sagrada Família (*)

 

Conferência de 2 de novembro de 1992

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Catolicismo, n° 518, Fevereiro de 1994

Nobreza e elites tradicionais análogas:

"É próprio à nobreza e às elites tradicionais análogas formarem com o povo um todo orgânico, como cabeça e corpo"

 

Diz o Evangelho que o Menino Jesus "crescia em sabedoria, idade e graça diante de Deus e dos homens" (Lc. 2, 52).

Se isto é verdade - e certamente o é, pois são palavras inspiradas pelo Espírito Santo - é sinal de que no Homem-Deus ainda havia o que crescer. De qualquer natureza que fosse esse crescimento, era um crescimento da perfeição perfeitíssima para algo que era uma perfeição ainda mais perfeitíssima.

Por outro lado, devemos considerar tudo quanto é Nossa Senhora: um tal acúmulo de perfeições criadas, que um Papa chegou a declarar: dEla se pode dizer tudo em matéria de elogio, desde que não se Lhe atribua a divindade. Foi concebida sem pecado original e confirmada em graça a partir do primeiro instante do seu ser; não podia pecar, não podia cair na mais leve falta, porque estava garantida por Deus contra isso. Não tendo defeitos - tal é o aspecto importante desta consideração - também Ela crescia constantemente em virtude.

Ao lado do Menino Jesus e de Nossa Senhora estava São José. É difícil elogiar qualquer homem, qualquer grandeza terrena, depois de considerar a grandeza de São José. O homem casto, virginal por excelência, descendente de Davi. São Pedro Julião Eymard (cfr. "Extrait des écrits du P. Eymard", Desclée de Brouwer, Paris, 7ª ed., pp. 59-62) diz que São José era o chefe da Casa de Davi, o pretendente legítimo ao trono de Israel, o mesmo trono que fora ocupado e derrubado por falsos reis, enquanto Israel era dividido e, por fim, dominado pelos romanos.

Tríplice ascensão e três auges

São José era um varão perfeito, modelado pelo Espírito Santo para ter proporção com Nossa Senhora. Pode-se imaginar a que píncaro, a que altura São José deve ter chegado para estar em proporção com Nossa Senhora! É sumamente provável que também ele tenha sido confirmado em graça. Então pode-se dizer que, na humilde casa de Nazaré, a todo momento que se passava, aquelas três pessoas cresciam em graça e santidade diante de Deus e dos homens.

São José deve ter falecido antes do início da vida pública de Nosso Senhor Jesus Cristo. É o padroeiro da boa morte, porque tudo leva a crer que, em seu falecimento, foi assistido por Nossa Senhora e pelo Divino Redentor, que o ajudaram a elevar sua alma àquela perfeição pinacular para a qual ele fora criado. Não era a perfeição de Nossa Senhora, era uma perfeição menor. Mas era a perfeição enorme para a qual fora chamado.

Quando seu olhar embaçado já se ia apagando para a vida, São José - ao contemplar Aquela que era sua esposa e Aquele que juridicamente era seu filho - extasiou-se com a ascensão contínua em santidade de Nossa Senhora e de Seu Divino Filho. Ao vê-Los subir assim, também ele, por sua vez, subia sem cessar na sua própria santidade.

Esta tríplice ascensão contínua na humilde casa de Nazaré, constituiu o encanto do Criador e dos homens: três perfeições que chegaram todas ao pináculo a que cada uma devia chegar. Eram três auges que se amavam intensamente e se intercompreendiam intensamente; perfeições altíssimas, admiráveis, mas desiguais, realizando uma harmonia de desigualdades como jamais houve na face da Terra.

Entretanto, a hierarquia posta por Deus entre tais sublimes desigualdades era de uma ordem admiravelmente inversa: Aquele que era o chefe da Casa no plano humano era o menor na ordem sobrenatural; enquanto o Menino, que deveria prestar obediência aos pais, era Deus. Uma inversão que nos faz amar ainda mais as riquezas e as complexidades de qualquer ordem verdadeiramente hierárquica; e que impele a alma fiel, desejosa de meditar sobre tão elevado tema, a entoar um hino de louvor, de admiração e de fidelidade a todas as hierarquias e todas as desigualdades estabelecidas por Deus.

Paradoxo: Príncipe e operário

Um outro paradoxo foi também colocado pelo Criador nas complexidades desta nobilíssima ordem hierárquica.

São José era o representante da Casa mais augusta que houve em todos os tempos, pois, enquanto de outras Casas nasceram reis, da Casa de Davi, nasceu um Deus. E os únicos cortesãos à altura dessa Casa são os Anjos do Céu.

Porém, ainda por desígnio divino, tal chefe da Casa de Davi era, ao mesmo tempo, trabalhador manual, um carpinteiro. E também Nosso Senhor Jesus Cristo exerceu essa atividade antes de iniciar sua vida pública. Deus quis assim que as duas pontas da hierarquia temporal se ligassem naquele que é o Homem-Deus. NEle está a condição de príncipe real da Casa de Davi, de pretendente ao trono de Israel. Mas esta condição coexiste com a de mero carpinteiro, operário, no extremo oposto da escala social.

Esta coexistência de perfeições, em ambos os aspectos - tanto no de Criador-criatura como no outro, incomparavelmente menor, de rei-operário - reúne os extremos para reforçar a coesão dos elementos intermediários da hierarquia, unindo tais elementos pela união dos extremos.

Assim, a sacrossanta hierarquia no interior da Sagrada Família não nos aparece apenas como um conjunto de cimos tão altos que a nossa vista física e mental custa a alcançar. Ela representa também um amplexo hierárquico, desigual mas afetuoso, entre todos os degraus da ordem social. De tal maneira que, aquele que ocupa lugar mais alto abraça afetuosamente o que está mais baixo e diz: "Enquanto natureza humana somos todos iguais".

Amor desinteressado à Hierarquia

Escolhi o exemplo de São José, de Nossa Senhora e de Nosso Senhor Jesus Cristo para que se compreenda a hierarquia no que ela tem de mais puro, de mais límpido, de mais perfeito, na qual não há egoísmo nem pretensão. Porque existe esse puro amor de Deus, o qual gera amor às várias hierarquias, sem a preocupação de ser muito, de fazer muito ou de poder muito. É amar a hierarquia por amor de Deus.

As almas que têm o verdadeiro senso da hierarquia amam deste modo os que lhes são superiores. A palavra "majestade" tem para elas um sentido, um mistério, um lumen especial que torna respeitáveis e veneráveis os reis e imperadores, mesmo quando estes, por seus defeitos pessoais, não merecerem a homenagem que lhes é prestada por serem quem são. Mas se, para aquilo a que foram chamados, em algo correspondem, esse algo, por pequeno que seja, é como o aroma de uma flor incomparável da qual se tira uma gota, cujo perfume produz sobre o homem reto um efeito semelhante ao que a santidade maior produz sobre a santidade menor. E isto tem alguma analogia com o que se passava na Sagrada Família, entre as três pessoas indizivelmente excelsas - uma delas divina - que a compunham.

Eis aí algumas considerações sobre o enlevo e o entusiasmo que as verdadeiras hierarquias - como aquela que existiu, em grau arquetípico, na Sagrada Família - podem e devem suscitar nas almas retas e autenticamente católicas.


Deus Filho quis nascer de estirpe real para reunir na sua Pessoa todos os géneros de grandeza

Dos escritos sobre S. José, de S. Pedro Julião Eymard (1811-1868), Fundador dos Sacramentinos:

"Quando Deus Pai resolveu dar o seu Filho ao mundo, quis fazê-lo com honra, pois Ele é digno de toda a honra e de todo o louvor.

"Preparou-Lhe, pois, uma corte e um serviço régio dignos d'Ele: Deus queria que, mesmo na terra, o seu Filho encontrasse uma recepção digna e gloriosa, senão aos olhos do mundo, ao menos aos seus próprios olhos.

"Esse mistério de graça da Encarnação do Verbo, não foi realizado por Deus de improviso e aqueles que haviam sido escolhidos para tomar parte nele, foram preparados por Ele muito tempo antes. A corte do Filho de Deus feito Homem compõe-se de Maria e de José; o próprio Deus não poderia ter encontrado para seu Filho servos mais dignos de estarem junto d'Ele. Consideremos particularmente S. José.

"Encarregado da educação do Príncipe real do Céu e da Terra, incumbido de dirigi-lo e de servi-lo, era necessário que os seus serviços fizessem honra ao seu divino pupilo: não ficava bem a um Deus, ter que se envergonhar do seu pai. Portanto, devendo ser Rei, da estirpe de David, faz nascer S. José desse mesmo tronco real: quer que ele seja nobre, até mesmo da nobreza terrena. Nas veias de S. José corre, pois, o sangue de David, de Salomão, e de todos os nobres reis de Judá e se a sua dinastia tivesse continuado a reinar, ele [S. José] seria o herdeiro do trono e haveria de ocupá-lo por sua vez.

"Não vos detenhais a considerar a sua pobreza actual: a injustiça expulsou a sua família do trono a que tinha direito, mas, nem por isso ele deixa de ser Rei, filho desses Reis de Judá, os maiores, os mais nobres, os mais ricos do universo. Também nos registos do recenseamento em Belém S. José será inscrito e reconhecido pelo Governador romano, como o herdeiro de David: esse é o seu pergaminho real, facilmente reconhecível e leva a sua régia assinatura.

"Mas, que importa a nobreza de José? – direis talvez. Jesus só veio para se humilhar. Respondo que o Filho de Deus, o qual se quis humilhar por algum tempo, também quis reunir na sua Pessoa todos os géneros de grandeza: Ele também é Rei por direito de herança, pois é de sangue real. Jesus é nobre, e quando escolher os seus Apóstolos entre os plebeus, Ele os enobrecerá: esse direito pertence-Lhe, já que é filho de Abraão e herdeiro do trono de David. Ele ama esta honra de família; a Igreja não entende a nobreza em termos de democracia: respeitemos, portanto, tudo o que Ela respeita. A nobreza é de Deus.

"Mas então, é preciso ser nobre para servir a Nosso Senhor? Se o sois, dar-Lhe-eis uma glória a mais; porém, não é necessário, e Ele contenta-se com a boa vontade e a nobreza do coração. Contudo, os anais da Igreja demonstram que um grande número de Santos, e dos mais ilustres, ostentavam um brasão, possuíam um nome, uma família distinta: alguns até eram de sangue real.

"Nosso Senhor compraz-se em receber a homenagem de tudo quanto é honorífico. S. José recebeu no Templo esmerada educação e Deus preparou-o assim para ser o nobre servidor do seu Filho, o cavalheiro do mais nobre Príncipe, o protector da mais augusta Rainha do Universo" (Mois de Saint Joseph, le premier et le plus parfait des adorateurs – Extrait des écrits du P. Eymard, Desclée de Brouwer, Paris, 7ª ed., pp. 59-62. – apud “Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana”, Plinio Corrêa de Oliveira, Editora Civilização, Porto, 1993, pág. 289).  


(*) Excertos - não revistos pelo orador - da conferência pronunciada pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira para sócios e cooperadores da TFP, em 2-11-92, na capital paulista.


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