8. Uma concepção militante da vida espiritual
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Em Fevereiro de 1919, com dez anos, Plínio Corrêa de Oliveira iniciou os seus estudos no Colégio São Luís, da Companhia de Jesus, no qual estudavam os filhos da classe dirigente tradicional de São Paulo (97). Entre a educação materna e a do colégio houve, como convém, continuidade e desenvolvimento. Nos ensinamentos dos jesuítas Plínio reencontrou o amor pela vida métodica, que já lhe tinha sido inculcado pela governante Mathilde Heldmann (98), e sobretudo, aquela concepção militante da vida espiritual a que a sua alma aspirava profundamente (99). Teve no colégio o primeiro choque com o mundo e o primeiro campo de batalha. Nele, o jovem Plínio encontrou as "duas cidades" agostinianas, confundidas como o grão e o joio, o trigo e a palha, de que fala o Evangelho (100), e compreendeu como a vida do homem sobre a terra é uma dura luta, em que "não será coroado quem não tiver combatido" (101). "Vita militia est" (102). Que a vida espiritual do cristão seja um combate é um dos conceitos sobre os quais mais insiste o Novo Testamento, sobretudo nas Epístolas paulinas. "O cristão nasceu para a luta" (103), afirma Leão XIII. "A substância e o fundamento de toda a vida cristã consiste em não secundar os costumes corruptos do século mas em combatê-los e resistir-lhes com constância" (104). De Santo Inácio, Plínio aprendeu que "a alma de qualquer homem é um campo de batalha, no qual lutam o bem e o mal” (105). Todos possuímos, como consequência do pecado original, inclinações desordenadas que nos convidam ao pecado; o demónio procura favorecê-las e a graça divina ajuda-nos a vencê-las, transformando-as em ocasião de santificação. "Entre as forças que o levam para o bem ou para o mal está, como fiel da balança, o livre arbítrio humano" (106). Plínio era certamente um dos rapazes paulistanos da sua geração que o Padre Burnichon, visitando o Colégio São Luís em 1910, descreve como "sérios, graves, reflectidos. A sua fisionomia dificilmente se ilunina, o riso parece ser-lhes pouco familiar; por outro lado eles podem, segundo me asseguraram, permanecer num mesmo lugar durante cinco horas, a escutar discursos académicos; isto acontece-lhes de vez em quando. Em definitivo, a raça recebe do seu clima uma maturidade precoce que tem as suas vantagens e os seus inconvenientes, e, por outro lado, uma fleuma habitual que não exclui as impressões vivas e as explosões violentas" (107). O jovem Plínio notou no Colégio São Luís a oposição radical entre o ambiente familiar e o dos colegas, já permeado de malícia e imoralidade. Como acontece com frequência nas escolas, os jovens que se impunham aos outros eram os mais maliciosos: a pureza era objecto de desprezo e chacota, a vulgaridade e a obscenidade eram consideradas sinal de varonilidade e de sucesso. Ele reagiu a essa situação com todas as suas forças. Compreendeu que aquilo que estava a suceder não era um caso isolado mas a consequência de uma mentalidade oposta à da sua família. Se aceitasse essa mentalidade, perderia, com a pureza, os ideais que desabrochavam no seu coração. Compreendeu que o fundamento de tudo aquilo que ele amava era a religião, e escolheu o caminho de uma luta sem quartel em defesa da concepção de vida em que fora educado. Foi assim que se formou nele uma convicção, que com o passar dos anos encontrou fundamentos cada vez mais racionais: "Era a concepção contra-revolucionária da religião como uma força perseguida que nos ensina as verdades eternas, que salva a nossa alma, que conduz para o Céu e que imprime na vida um estilo que é o unico estilo que torna a vida digna de ser vivida. Então, a ideia de que era preciso, quando fosse homem, emprender uma luta, para derrubar essa ordem de coisas que eu reputava revolucionária e má, para estabelecer uma ordem de coisas que era a ordem de coisas católica" (108). Plínio terminou os seus estudos secundários em 1925, aos 17 anos. Mais tarde, evocando as angústias e o isolamento interior por ele vividos naqueles anos, vai deter-se na consideração da aguda crise que constituiu um dos aspectos mais importantes da história da humanidade no século XIX e uma das causas da sua profunda incoerência.
Dom João Baptista Chautard, autor da famosa obra "A Alma de Todo o Apostolado" "A atitude do século XIX perante a Religião e a Moral foi uma atitude essencialmente contraditória. (...) A Religião e a Moral não eram consideradas necessárias e obrigatórias para todos os seres humanos, em todas as idades. Pelo contrário, para cada sexo, cada idade, cada condição social, havia uma situação religiosa e uma conduta moral oposta à que o século XIX preceituava para sexo, idade e condição social diferente. O século XIX admirava a `fé do carvoeiro', na sua simplicidade e na sua pureza. Mas ridicularizava como preconceito inconsciente a Fé do cientista. Admitia a Fé nas crianças. Mas condenava-a nos jovens e nos homens adultos. Quando muito, tolerava-a na velhice. Exigia a pureza para a mulher. E exigia a impureza para o homem. Exigia a disciplina para o operário. Mas aplaudia o espírito revolucionário do pensador" (109). Nessa ocasião, voltando-se para os colegas da sua geração, Plínio lançará um vibrante apelo à luta e ao heroísmo: "Concebemos a vida, não como um festim, mas como uma luta. O nosso destino deve ser de heróis e não de sibaritas. É esta verdade sobre a qual mil vezes meditamos, que hoje vos venho repetir (...). Colocai Cristo no centro das vossas vidas. Fazei convergir para Ele todos os vossos ideais. Diante da grande luta, que é a nobilíssima vocação da vossa geração, repetia o Salvador a frase famosa: Domine, non recuso laborem" (110). Em 1926, Plínio Corrêa de Oliveira, seguindo as tradições familiares, inscreveu-se na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Jovem de espírito contemplativo e de grandes leituras, ao lado da cultura jurídica começou a cultivar a filosófica, moral e espiritual. Entre as obras lidas nestes anos que marcaram profundamente a sua formação estavam o "Tratado de Direito Natural" do Padre Luigi Taparelli d'Azeglio (111) e "A Alma de Todo o Apostolado", de D. João Baptista Chautard (112). Esta obra, que foi um dos seus livros predilectos, constituía precioso antídoto à "heresia da acção" (113) que começava a caracterizar aquela época. A ela, D. Chautard contrapõe a vida interior, que define como "o estado de uma alma que reage para controlar as suas inclinações naturais, e se esforça para adquirir o hábito de julgar e regular-se em tudo segundo os ditames do Evangelho e os exemplos de Jesus Cristo. (114)" Plínio Corrêa de Oliveira amou e viveu profundamente este espírito, desde os anos da adolescência. Mesmo dedicando-se desde muito jovem à acção e ao apostolado público, nunca se esqueceu de procurar a vida interior, por meio de um exercício assíduo e constante das faculdades da alma. O ideal da restauração da Civilização Cristã, apontado por São Pio X, parecia longínquo, perante o panorama confuso dos anos 20, que viam o nascimento e a difusão do comunismo e do fascismo e a afirmação de uma way of life americana a opor-se radicalmente ao modo de ser tradicional. Mas, no coração do jovem estudante brasileiro, ao longo desses anos, formara-se a consciência de uma vocação (115). Esta ligava-se de forma misteriosa e providencial à missão inacabada do grande Papa, que desde a sua primeira encíclica E supremi Apostolatus, de 4 de Outubro de 1903, tinha escolhido a divisa "Instaurare omnia in Christo" (Ef. 1, 10) como programa do seu pontificado e meta para o século XX que se iniciava. Restaurar em Cristo "não só o que pertence propriamente à divina missão da Igreja de conduzir as almas a Deus, mas também aquilo que (...) deriva espontaneamente daquela divina missão: a Civilização Cristã, no conjunto de todos e de cada um dos elementos que a constituem" (116). O próprio Plínio Corrêa de Oliveira haveria um dia de definir a sua própria vocação com estas palavras: "Quando ainda muito jovem, considerei enlevado as ruínas da Cristandade. A elas entreguei o meu coração. Voltei as costas ao meu futuro e fiz daquele passado carregado de bênçãos, o meu Porvir..." (117). Notas: (97) O Colégio São Luiz foi fundado em 1867 em Itú e transferido para São Paulo, instalando-se num imponente edifício no n° 2324 da avenida Paulista. Era então reitor do Colégio o Padre João Baptista du Dréneuf (1872-1948) (cfr. A. GREVE, S.J., "Fundação do Colégio São Luiz. Seu centenário, 1867-1967', in "A.S.I.A.", n° 26 (1967), pp. 41-59). Entre os seus professores o jovem Plínio teve o Padre Castro e Costa, que o acompanhou na batalha em defesa da Acção Católica e que ele depois reencontrou em Roma, nos anos 50 (cfr. J. CLA DIAS, "Dona Lucília", cit., vol. II, p. 259). (98) Mathilde Heldmann era originária de Regensburg, e tinha sido governante em algumas casas aristocráticas europeias. "Um dos maiores benefícios que mamãe nos fez foi Fraulein" comentou várias vezes Plínio Corrêa de Oliveira (J. CLA DIAS, "Dona Lucília", cit., vol. I, p. 203). (99) Sobre a concepção "militante" da espiritualidade cristã, cfr. Pierre BOURGUIGNON, Francis WENNER, "Combat spirituel", in DSp, vol. II, 1 (1937), coll. 1135-1142; Umile BONZI DA GENOVA, "Combattimento spirituale", in EC, vol. IV (1950), col. 37-40; Johann AUER, "Militia Christi", in DSp, vol. X (1980), col. 1210-1233. (100) Mt. 13, 24-27. (101) II Tim. 11, 5. (102) Jo, 7, 1. (103) Leão XIII, Encíclica Sapientiae Christianae de 10 de Janeiro de 1890, in , vol. III, "La pace interna delle nazioni", (1959), p. 192. (104) Leão XIII, Encíclica Exeunte iam anno, de 25 de Dezembro de 1888, in "Le fonti della vita spirituale", cit., vol. II, pp. 345, 358 (pp. 337-359). (105) Plínio CORRÊA DE OLIVEIRA, "Lutar varonilmente e lutar até o fim", in Catolicismo, n° 67 (Julho 1956), p. 2. (106) Ibid. (107) Joseph BURNICHON, "Le Brésil d'aujourd'hui", Perrin, Paris, 1910, p. 242. (108) Plínio CORRÊA DE OLIVEIRA, "Memórias", inéditas. (109) Plínio CORRÊA DE OLIVEIRA, "Discurso no encerramento do ano de 1936, no Colégio Arquidiocesano de São Paulo", in Echos, n° 29 (1937), pp. 88-92. (110) Ibid. (111) Sobre o padre jesuíta Luigi TAPARELLI D'AZEGLIO (1793-1862) autor do célebre "Tratado teórico de direito natural", La Civiltà Cattolica, Roma, 1949, 2 vol. (1840-1843), em que as relações entre direito, moral e política são agudamente analisadas à luz da doutrina católica, cfr. Robert JACQUIN, "Taparelli", Lethielleux, Paris, 1943 e a voz de Pietro PIRRI, S.J., in EC, vol. XI (1953), col. 1741-1745. (112) Dom Jean-Baptiste CHAUTARD, "L'âme de tout apostolat", Office Français du Livre, Paris, 1947. "É impossivel ler as admiráveis páginas deste livro, cuja unção lembra por vezes a `Imitação de Cristo', sem perceber os tesouros de delicadeza que a sua grande alma guardava" (Plínio CORRÊA DE OLIVEIRA, "Almas delicadas sem fraqueza e fortes sem brutalidade", in Catolicismo, n° 52 (Abril de 1955). Dom Jean Baptiste Chautard nasceu em Briançon em 12 de Março de 1858. Foi religioso cisterciense da estrita observância, eleito em 1897 abade da Trapa de Chambaraud (Grenoble) e em 1899 de Sept-Fons (Moulins). No seu longo governo, foi obrigado a ocupar-se dos problemas temporais relativos à sua ordem e defendeu-a contra a política anti-religiosa do seu tempo. Perfeito modelo da união entre a vida contemplativa e activa traçada em "A alma de todo apostolado", chegou a impor-se, com a sua personalidade, ao ministro Clémenceau, convencendo-o a mitigar a sua atitude contra as ordens contemplativas. Morreu em Sept-Fons a 29 de setembro de 1935. (113) A "heresia da acção", entendida como uma visão do mundo activista e naturalista que desconhece o papel decisivo da graça na vida do homem, era uma das características do "americanismo católico" de fins do século XIX, condenado por Leão XIII na Carta Testem Benevolentiae de 22 de Janeiro de 1899 (in Acta Leonis XIII, vol. XI, Roma, 1900, pp. 5-20). Cfr. Emanuele CHIETTINI, "Americanismo", in EC, vol. I (1950), col. 10541056; G. PIERREFEU, "Américanisme", in DSp, vol. I (1937), col. 475-488; H. DELASSUS, "L'américanisme et la conjuration anti-chrétienne", Desclée de Brouwer, Lille, 1899; Thomas McAVOY "The Americanist Heresy in Roman Catholicism" 1895-1900, University of Notre Dame Press, Notre Dame (Ind.), 1963; Robert CROSS, "The emergence of Liberal Catholicism in America", Harvard, University Press, Harvard, 1967; Ornella CONFESSORE, "L'americanismo cattolico in Italia". Studium, Roma, 1984. (114) J.-B. CHAUTARD, "L'âme de tout apostolar", cit., p. 14. (115) Illos quos Deus ad aliquid eligit, ita praeparat et disponit ut id ad quod eliguntur, inveniantur idonei" (S. Tomás DE AQUINO, "Summa Theologica", III, 27, 4c). A vocação é a forma especial na qual Deus quer que os seus eleitos se desenvolvam. Eleitos, isto é escolhidos e portanto preparados e dispostos para serem idóneos em relação ao fim a que Deus os destina desde toda eternidade. (116) S. PIO X, Encíclica Il fermo proposito de 11 de Junho de 1905, in vol. IV, "Il laicato", (1958), p. 216. (117) Estas palavras de Plínio Corrêa de Oliveira aparecem, escritas de próprio punho, como epígrafe do livro "Meio século de epopeia anticomunista", cit. |