Catolicismo,
N° 574, outubro de 1998 (www.catolicismo.com.br)
Com a palavra… o
Diretor
Caros leitores
Neste mês, Catolicismo recorda
o terceiro ano em que o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira entregou
sua alma a Deus.
Para prestar
homenagem a seu insigne inspirador, principal colaborador e
sustentáculo, nossa revista traz a lume um dos mais
substanciosos e belos trabalhos de sua lavra. Trata-se de obra
póstuma, encontrada entre seus escritos após seu falecimento.
Redigido no início
da década de 50, esse manuscrito não foi submetido a revisão por
parte do Autor. (…)
Ao se inteirar da
tese ora em foco, o leitor terá a oportunidade de compreender
qual o justo equilíbrio que deve existir nas ações humanas para
que, na vida material, não se olvide jamais do espiritual; e,
analogamente, ao tratarmos do espiritual não nos esqueçamos que
somos também constituídos de corpo. E isto aplicado sobretudo à
ordem social.
Nesse sentido, o
Autor de tão original quanto oportuna tese, leva-nos a
considerar de que forma nós homens podemos e devemos nos
aproximar dos Anjos – tema de atualidade crescente – refletindo
até, em nossa sociedade humana, algumas noções da sociedade
angélica. Mas, lembrando sempre que a natureza humana pressupõe
a ação da alma em consórcio com o corpo, parte material de nosso
ser.
Por essa razão, o
presente ensaio foi cuidadosamente ilustrado pelo ateliê
artístico de Catolicismo. Pois, consoante ao pensamento
do ilustre Autor, o prático e o belo devem estar ligados de modo
tão indissociável quanto o corpo e a alma…
Bem… por mais que
eu escreva, não conseguirei transmitir ao caro leitor toda a
grandeza dessa preciosa obra do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira.
Portanto, termino esta carta com um conselho: abra agora mesmo a
revista na página 13, e boa leitura.
Em Jesus e
Maria
Paulo Corrêa de Brito
Filho
Diretor
* * *
Cristandade, sacralidade na ordem temporal
(Essa obra também é conhecida como "Notas sobre conceito de
Cristandade")
"A
ordem temporal é uma criatura de Deus, devendo dar mais glória
ao Criador do que a lua e as estrelas.
Por certo, pertencem à Igreja os meios próprios para promover a
salvação das almas, mas a sociedade e o Estado possuem meios
instrumentais
para alcançar o mesmo fim".
Plinio Corrêa de Oliveira
Julgamos útil
analisar alguns aspectos de uma das teses fundamentais da
doutrina católica quanto ao problema das relações entre [a
ordem] espiritual e a temporal, que é a "ministerialidade" (*)
desta última em relação àquela.
(*) Nota da
Redação: Ministru, em latim, significa servo, servidor;
ministerialidade significa pois aquele que serve, ou seja, a
ordem temporal deve servir a desígnios de Deus, e da
verdadeira Igreja, a Igreja Católica, Apostólica, Romana,
pois, esses desígjnios são mais altos do que a ordem
temporal, que já se inserem na ordem sobrenatural. Em outros
termos, a sociedade e o Estado devem ser, a seu modo,
instrumentos de santificação das pessoas, ajudando-as a
atingir seu fim último que é alcançar o Céu.
Parece-nos que o
ambiente de nossos dias, de tal maneira inculca uma concepção
materialista e puramente econômica da vida temporal, que exerce
uma influência sensível no feitio de espírito, nos hábitos
mentais e nas tendências ideológicas de pessoas que, em tese
pelo menos, se presumem fiéis às grandes linhas do pensamento
católico e até tomista. Tais pessoas teriam menos dificuldade em
aceitar a posição da Igreja sobre a ministerialidade do temporal
se se lembrassem bem exatamente de todo o conteúdo humano [ou
seja, material e espiritual] da esfera temporal.
Para que esse
conteúdo não apareça tão claramente a todos os olhos, têm
concorrido — involuntariamente é claro, e por motivos
explicáveis — excelentes escritores.
Verdade omitida: a
sociedade humana deve satisfazer não só as necessidades do corpo
mas também as da alma
[Outros] autores
sustentam a doutrina de que a sociedade humana não existe em
conseqüência de um pacto arbitrário estabelecido por certo
número de homens em eras que se perdem na noite dos tempos, mas
é uma conseqüência espontânea, legítima e inelutável da própria
ordem natural. [Eles] expõem detidamente, e com todo o esmero,
os argumentos proporcionados à sua tese pela observação da vida
quotidiana: necessidade da especialização e da colaboração para
assegurar a subsistência material e o progresso; necessidade de
uma autoridade para dirigir essa colaboração etc. É, pois,
necessidade natural [e não apenas contratual, que exista] uma
sociedade com todas as suas características essenciais.
Estabelecida nesta
base [a da observação da vida quotidiana], a demonstração, além
de irrepreensível, é altamente didática, pois versa sobre fatos
claros, simples, palpáveis que se situam no âmbito da observação
direta e pessoal de qualquer leitor. [Há, porém, outros
argumentos a considerar].
Compreende-se que
um autor, premido pela obsessão de resumir, que o corre-corre
hodierno impõe, passe por alto sobre outros argumentos, ou
silencie mesmo sobre eles. É o que acontece não raras vezes com
o argumento baseado no fato de que o homem é social pela
natureza de sua própria alma, abstração feita de qualquer
necessidade do corpo. Em não poucos livros de toda espécie,
feitio e tamanho, que põem ao alcance do público as linhas
mestras do Direito Natural, esse argumento não é explorado em
toda a sua riqueza.
Decorre daí, na
formação da mentalidade do leitor, uma conseqüência importante.
Grande número de estudiosos se habitua a ver na sociedade humana
algo que existe única, ou pelo menos principalmente, para
atender as necessidades físicas do homem.
Não que esta
convicção decorra de uma afirmação expressa deste ou daquele
tratadista; mas ela se forma no subconsciente à maneira de
impressão geral que, se não é lógica, é pelo menos explicável.
Pois se os argumentos mais insistentemente mencionados, mais
largamente desenvolvidos, são os que se fundam nas necessidades
materiais, econômicas, práticas, não é de surpreender que se
forme a noção de que a sociedade existe sobretudo para atender a
tais necessidades, e que aos poucos os fins da sociedade
relativos à alma humana, passem do segundo plano para um olvido
completo.
Como dissemos, a
atmosfera contemporânea é de molde a favorecer poderosamente
esse fenômeno. Vivemos em um ambiente saturado de materialismo,
em que a todos os momentos ouvimos opiniões que só seriam
verdadeiras..., presenciamos ações que só seriam legítimas...,
somos postos em presença de instituições e costumes que só
seriam razoáveis... se a alma humana não existisse. O
materialismo está imanente e subentendido em quase tudo quanto
se passa em torno de nós.
Não é, pois, de
espantar que, tantas e tantas vezes, se veja este ou aquele
católico — que estudou honestamente as linhas gerais da
filosofia moral e que leu em Santo Tomás (De Regimine
Principum, Cap. I) que a sociedade temporal tem por fim
remediar a insuficiência não só física mas intelectual do homem
de viver só — tomar diante dos problemas políticos, sociais e
econômicos com que se defronta, uma atitude prática que pouco
difere da posição do materialista ou agnóstico.
Conseqüências
trágicas do esquecimento da supremacia da alma sobre o corpo
Sendo o homem
constituído por dois princípios distintos, corpo e alma, é claro
que em tudo quanto lhe diz respeito, será muito mais importante
o que concerne à alma do que ao corpo; pois o que é espiritual e
imperecível, vale mais do que o que é material e mortal.
Toda a sociologia
que procede dessa verdade deve dar o melhor de sua solicitude e
atenção ao que diz respeito à alma humana, seu equilíbrio, seu
bem-estar, seu desenvolvimento. Por mais interessantes e
respeitáveis que sejam os problemas materiais, por maior que
seja o talento, a diligência, o vigor que se devam empregar em
os resolver, cumpre nunca esquecer tal verdade fundamental.
Evidentemente, não
se trata de consagrar à vida material menos do que ela merece,
pois o homem é homem e não um puro espírito angélico. Mas, ainda
quando se dê largamente à matéria o que se lhe deve, é preciso
não romper a hierarquia dos valores. [Não se pode] conceber os
problemas materiais dissociando-os da realidade humana plena e
total, isto é, de que temos também uma alma, e que ela vale
mais, incomparavelmente mais que nosso corpo.
O mundo moderno
desconheceu esses princípios, elevou o corpo à altura de um
ídolo, e negou a primazia da alma, quando não a própria
existência desta. Tudo ele organizou como se o homem tivesse
apenas corpo.
O resultado está
diante de nós: as neuroses, as psicoses, as perversões sexuais
monstruosas, o existencialismo, a cacofonia da grande confusão
de nossos dias. O livro de Alexis Carrel ["L’homme, cet
inconnu", O homem, esse desconhecido] — ao qual haveria
aliás restrições a fazer — já se vai tornando velho, mas pode
ser relido com vantagem pelos que desejam informar-se sobre o
que está custando ao homem essa subestimação ou negação da alma,
no progresso técnico-material de nosso século.
Trata-se pois — e
muitos o reconhecem — de restabelecer o primado do espiritual.
Mas para que tal
intento não fique apenas no mundo das afirmações sonoras, e se
transforme em uma ação palpável, de fins definidos, cumpre
investigar no que consiste, bem exatamente, o papel do
espiritual na vida que o homem leva em sociedade.
A sociedade dos
homens deve espelhar-se na sociedade angélica
Considerada a alma
humana em sua natureza, suas potências, sua atividade, em que
sentido pode ela ter uma vida social?
Um campo da vida
social, compreendendo relações puramente espirituais de homem a
homem, pode parecer situar-se em altura tão etérea, que nada de
definido e de útil se possa dizer dele. Essa impressão
dissipar-se-á caso recorramos ao que a Igreja nos ensina sobre
os Anjos.
O Anjo é um ser
puramente espiritual, criado para conhecer, amar, louvar e
servir a Deus. Sendo esta a sua única razão de ser, é para tal
fim que se ordenam todas as suas potências, todas as suas
inclinações naturais. E é para esse fim que o ilumina e o
sublima a graça, quando o eleva à ordem sobrenatural, dando-lhe
a visão beatífica e o amor sobrenatural.
O Anjo tem, pois,
necessidade de uma sociedade: a de Deus. E não poderia viver na
ignorância do Criador. Mas esta sociedade lhe basta por dois
motivos. Primeiramente, porque Deus é a própria perfeição, e
quem O possui não tem necessidade de mais nada. Em segundo
lugar, porque a natureza do Anjo se ordena para Deus e só para
Ele.
Em rigor, é tal a
natureza de um puro espírito, que Deus poderia ter criado só a
ele, ou ter disposto que ele não conhecesse outro ser, senão o
próprio Deus.
O Criador
constituiu entretanto de outro modo a criação angélica. Quis Ele
que os Anjos se conhecessem uns aos outros, estabelecendo, pois,
entre si, uma vida social que, evidentemente, é toda espiritual.
Os Anjos enriquecem
seu conhecimento de Deus ao contemplar o Universo criado
Esta vida social,
entretanto, tem Deus por objeto último. Pois nos conhecimentos
que os Anjos comunicam uns aos outros, transmitem o que cada
qual pode anunciar de Deus. De tal sorte que cada Anjo tem todas
as operações de suas potências aplicadas em Deus de dois modos:
um direto, na medida em que tem comércio imediato com Ele; e
outro mediato [ou indireto], enquanto se comunica com Ele por
meio de outros Anjos. Assim eram as coisas antes da criação de
nosso universo [material].
Quando este foi
criado, seu conhecimento foi patenteado aos Anjos. E como nosso
universo à sua maneira também anuncia as grandezas de Deus, os
Anjos adquiriram, em cada ser material criado, objetos de
conhecimento que os conduzem, por suas vias próprias, a Deus,
objeto único, constante, de todas as operações angélicas.
Por onde a
consideração do sol, do chuvisco ou do trovão elevava a Deus o
Salmista..., ou por onde uma flor ou um pássaro elevava a Deus
um São Francisco de Assis..., ou ainda por onde as maravilhas do
átomo podem elevar a Deus o homem moderno... o Anjo as conhece e
as utiliza como vias para Deus.
Quem poderá jamais
nesta vida terrena — senão a Santíssima Virgem — retraçar o que
é a meditação e o amor de um Anjo, que conhece todo o nosso
Universo, até o menor de seus segredos? Num só olhar [o Anjo] vê
a pulsação simultânea da vida em todos os seres; e [também] o
movimento incessante e misterioso da matéria nos espaços
incalculavelmente grandes em que se movem os astros [ou] nos
espaços incalculavelmente pequenos em que giram os universos e
as constelações dos átomos. Em tudo [o Anjo] discerne a
Sabedoria Eterna, o Poder absoluto e inabalável, a perfeição do
Amor "que move o sol e as outras estrelas".
O Anjo não é apenas
contemplativo, mas, a seu modo, tem natureza ativa. Ele é um
guerreiro de Deus
Falamos mais
detidamente do conhecimento e do amor. Uma palavra sobre o
louvor e o serviço de Deus.
Feito para louvar,
o ser angélico é de uma natureza por assim dizer exclamativa. O
conhecimento e o amor não se perdem sem ressonância nas augustas
profundidades de seu próprio ser. Ele transmite, comunica,
exprime o que lhe vai no íntimo, por um dever de justiça e de
amor para com Deus, sem dúvida, mas também por um impulso de sua
própria natureza. Daí o louvor angélico incessante, cuja
magnificência a Escritura nos manifesta tantas vezes, com termos
e símbolos tão diversos.
Feito para servir,
o Anjo não é apenas contemplativo, mas more suo [a seu
modo] tem natureza ativa. Ele comunica aos outros o que conhece
de Deus — é um serviço docente. Ele é o agente da vontade de
Deus na direção do Universo, pois é por meio dos Anjos que Deus
governa a criação visível. E esta função executiva comporta um
aspecto militante, pois ele é o guerreiro de Deus, que antes dos
séculos abateu Satanás e os exércitos rebeldes, e hoje combate o
inferno, protege os fiéis e a Igreja na luta contra o poder das
trevas.
Eis, pois, o que o
Anjo faz por sua própria natureza; o que ele faz como membro da
sociedade angélica; e o que a sociedade angélica faz em seu
conjunto, enquanto sociedade, segundo o impulso e o desígnio de
Deus.
"A alma humana é
tão sociável que realizará seu destino eterno numa vida social
que terá objeto puramente espiritual"
Essas noções
relativas à sociabilidade e à vida social dos Anjos são
aplicáveis à alma humana, enquanto esta também é, em si mesma,
inteiramente espiritual. Porém, incorreríamos em grave erro se,
fazendo a transposição dessas noções do reino angélico para a
sociedade terrena, não tomássemos em consideração que a alma
humana foi criada para viver ligada a um corpo material,
destinado a fazer com ela uma só pessoa; e que, pois, toda a
natureza espiritual da alma humana se ordena a tal consórcio com
a matéria, e só neste consórcio encontra seu modo de ser e de
agir inteiramente normal.
Tão íntimo é tal
consórcio que, no período em que [depois da morte do homem] a
alma viver [no Céu] dissociada do corpo, à espera da
ressurreição, encontrar-se-á num estado de anomalia, por assim
dizer de violência, certamente indolor porque gozará da
felicidade celeste, mas, em todo o caso, de violência autêntica
que só a ressurreição fará cessar. Quando nossa alma reassumir o
próprio corpo, não o fará como quem volta a um cárcere, mas como
quem readquire jubilosamente a plenitude de si mesma.
Para considerarmos
a parte do espírito e da matéria nas operações especificamente
espirituais do homem, e pois na sociabilidade e na vida social
de sua alma, lembremos antes de tudo que "non habemus hic
civitatem" [nossa morada não é nesta Terra]. Fomos criados
para o mesmo fim que o dos Anjos, como eles fomos elevados à
ordem sobrenatural. E naquela eternidade diante da qual a vida
terrena é um mero instante, deveremos participar da sociedade
espiritual dos Anjos, contemplando, amando, louvando e servindo
a Deus.
Tal é a afinidade
entre a natureza e as operações de nossa alma e as dos espíritos
angélicos. Nosso corpo participará, é certo, dessas operações
mas no estado de corpo glorioso, isto é, de tal maneira
embebido, por assim dizer, da espiritualidade de nossa alma, e
da graça de Deus, que seu próprio modo de ser e de operar será
como que sublimado para além do nível próprio à mera natureza
humana e fixado na imortalidade.
Feitas estas
reservas [quanto ao papel do corpo], vemos que a alma humana é
tão sociável que realizará seu destino eterno numa vida social
que terá objeto puramente espiritual.
Na Terra e no Céu o
homem tem essencialmente a mesma finalidade: conhecer, amar,
louvar e servir a Deus
Isto nos pode
ajudar talvez a compreender melhor como se realiza a vida, e
mais especialmente a vida social das almas, na existência
terrena. E como esta vida social autêntica tem por objeto
valores inteiramente espirituais.
Se o nosso fim
próprio é conhecer, amar, louvar e servir a Deus, nossa
natureza, máxime enquanto elevada à ordem sobrenatural, deve
tender inteiramente para tal fim. Ou seja, todas as nossas
atividades mentais e físicas devem dirigir-se para o
conhecimento da verdade e a prática do bem.
Isto é real quanto
à nossa natureza no Céu, mas também na vida terrena, pois a
natureza humana já é o que deve ser eternamente, e, pois, suas
tendências fundamentais já são o que eternamente serão.
E como a vida
terrena não pode ser contrária à nossa natureza, ela já é, de
algum modo, em sua substância, no que ela tem de mais interno,
essencial e íntimo — no plano natural como no plano sobrenatural
— a mesma vida de contemplação, amor, louvor e serviço de Deus
que teremos no Céu.
O homem prepara-se
para o Céu contemplando os reflexos de Deus nas coisas
criadas...
Se é nisto que
consiste o essencial de nossa vida terrena, cumpre lembrar
entretanto que o modo pelo qual realizamos aqui tais operações
diverge profundamente do modo pelo qual as realizaremos no Céu.
Teremos na
eternidade a visão beatífica, sem véus nem obstáculos. Nosso
amor terá atingido uma definitiva plenitude. Nosso louvor e
nosso serviço serão sem jaça nem desfalecimento.
Na vida terrena,
pelo contrário, estamos em condição de prova. Temos dons
naturais e sobrenaturais a preservar e a desenvolver. Nossas
ações — ainda as melhores — e, pois, também nosso louvor e nosso
serviço, estão eivados de imperfeições. Nosso modo normal de ser
nos sujeita muito mais à matéria, do que quando nossos corpos
tiverem sido transfigurados pela glória. Tudo isto não obstante,
é bem verdade que o homem, mesmo o mais dissipado, contempla
ativamente. Para nos darmos conta disto, bastará que
esclareçamos o que é concretamente, na vida terrena e no plano
natural, uma contemplação.
O que faz um homem
quando se detém no caminho para ver passar um desfile militar ou
uma procissão religiosa, para considerar um edifício ou um
panorama, para observar uma cena particularmente grave ou
pitoresca da vida quotidiana, para assistir uma peça de teatro?
Contempla, isto é, fixa a atenção sobre determinado objeto, toma
conhecimento do que nele há de verdadeiro ou de falso, de bom ou
de mau; aceita, consente, como que assimila em sua própria alma
a verdade e o bem; experimenta uma dissonância, rejeita, opera
como que uma purgação em si mesmo, do que a coisa lhe possa ter
comunicado de mau.
Tendo diante dos
olhos seres relativos e contingentes, que têm em si o reflexo do
Ser absoluto, o homem, pelos canais dos sentidos, considera nos
seres contingentes algo que existe absolutamente em Deus; como
que se apropria desse bem, no próprio ato em que o considera;
configura-se a este bem. Em suma, faz um ato caracteristicamente
contemplativo, embora marcado pelas condições inseparáveis desta
vida terrena. Muitos homens, infelizmente, ao realizar tais atos
de contemplação, não se elevam de nenhum modo até Deus, e se
detêm na fruição egoística e circunscrita ao ser relativo que
têm diante de si.
Muitas vezes, seu
conhecimento é vicioso, e dá acolhida ao erro e não à verdade; a
contemplação os leva a assimilar o mal e não o bem. É que,
evidentemente, assim como há contemplações boas, há também
contemplações más. São os triunfos do mundo, da carne e do
demônio. Tudo isto não obstante, a ação que realizam é
essencialmente contemplativa, embora possa ser meramente
natural, e é uma afirmação de que há no homem uma insopitável
veia de contemplação.
Essa contemplação
traz necessariamente como conseqüência o louvor, ou sua antítese
que é a blasfêmia, pois na Terra como no Céu, como no inferno, o
homem é, como dissemos, exclamativo, isto é propenso a comunicar
o que lhe vai na alma. E leva ao serviço, pois o homem
naturalmente serve aquilo a que ama, a Cidade de Deus ou a
Cidade do Demônio, a verdade ou o erro, o bem ou o mal.
É por esta forma
que a alma humana realiza desde já, nesta Terra, para a sua
salvação ou para a sua condenação, as grandes operações que é
levada a realizar por toda a eternidade. Claro está que esta
contemplação, na medida em que é feita à luz da Fé, é uma
operação animada pela graça.
... recebendo o
impulso para conhecer, admirar e se relacionar com outros homens
Do que ficou dito,
resulta a evidente necessidade que tem a alma humana de entrar
em contato com objetos externos sobre os quais possa exercer sua
atividade. A carência hipotética de tais objetos deixaria na
atrofia suas potências, e reduziria sua vida ao simples fato de
existir.
Assim como o corpo
humano se pode alimentar a pão e água, mas adoecerá se passar
longo tempo só com estes alimentos, assim também a alma humana
não se pode alimentar na mera consideração de um objeto, ou de
um número muito pequeno de objetos.
Suas operações em
tal caso ultrapassariam, é claro, as fronteiras do simples
existir, mas levariam a alma a um operar tão defeituoso que daí
se lhe seguiria um desequilíbrio. É o caso de certos operários,
forçados por sua profissão a permanecer horas inteiras com a
atenção voltada sobre um mesmo fato simples, pobre, quase
asfixiante: um sinal luminoso, por exemplo, cujo acender ou
apagar mais ou menos irregular se trata de registrar de minuto
em minuto sobre uma folha de papel, durante 10 ou 12 horas de
trabalho quotidiano. Certas constituições mentais
excepcionalmente bem dotadas poderiam, quiçá, refazer-se deste
trabalho por uma dispersão da atenção em horas de lazer. Outras,
porém, sucumbiriam por uma como que anemia. Nossa alma foi feita
para a consideração do Universo, de todo o conjunto de seres
sobre os quais nossos sentidos tendem normalmente a se aplicar.
Destes seres, o que
ocupa o lugar central na cena, o que domina os outros, o que de
certo modo os compendia a todos em si, é o próprio homem. A alma
humana, naturalmente criada para considerar o Universo, é por
isto mesmo propensa com a maior veemência, pelo impulso mais
profundo e mais obstinado de todo o seu ser, à contemplação do
que o Universo tem de mais essencial: os outros homens. Todo o
Paraíso, com suas delícias, era inadequado ao homem antes da
criação da mulher: "não era bom" que nele o homem ficasse só.
Nesta propensão essencial do homem para realizar na Terra o que
fará no Céu, está incluída a necessidade de conhecer e tomar
contato com outros homens. E nisto está, do ponto de vista da
alma — isto é do mais importante dos pontos de vista atinentes
ao homem — a verdadeira necessidade da vida social.
As funções de
conhecer, amar, louvar e servir a Deus no espelho da criação
devem naturalmente ter nas condições da vida terrena, como
objeto mais constante, mais rico, mais vivo, mais direto,
aqueles cujas almas são a própria imagem e semelhança de Deus.
Contemplando,
por exemplo, um belo cristal, pode-se compreender as excelências
de Deus
Como se realizam
essas operações? Conhecendo melhor o próximo, que é a semelhança
de Deus, conhecemo-nos melhor a nós mesmos e ao próprio Deus.
Assimilando em nós as virtudes do próximo, enriquecemos nossa
alma com algo que lhe é de todo em todo conatural, e que com
alto teor de realidade reflete a Deus. Assim, é certo que
podemos ter alguma idéia do amor, considerando a proteção que a
galinha dá a seus pintainhos, e com isto podemos crescer em
virtude. Mas muito mais [perfeita] será nossa idéia, muito mais
decisivo normalmente o estímulo, [se] considerarmos uma mãe
protegendo seu filho. Isto, quer para formarmos uma idéia do
amor humano, quer principalmente do amor divino.
A contemplação não
é apenas conhecimento, mas amor. Uma das afirmações mais quentes
e mais irresistíveis de nossa sociabilidade está nesta
necessidade de amar e de ser amado, que é inseparável da
natureza de cada homem.
Nosso amor se volta
para as coisas do reino mineral, do reino vegetal, do reino
animal com alguma adequação. Podemos amar um belo cristal que
encontramos à flor da terra durante um passeio; mais
adequadamente amamos uma planta, uma rosa por exemplo; a palavra
amor se torna rica de um sentido maior quando ela tem por objeto
um animal, por exemplo o cão, companheiro fiel nos bons e nos
maus dias. Mas ele só é propriamente amor quando tem por objeto
um ser de nossa espécie. Este último amor, incomparavelmente
maior do que os outros que acabamos de enumerar, nos dá uma
idéia do amor que devemos Àquele que é o Ser absoluto, o Ser por
excelência, o Ser que contém em Si substancialmente todas as
perfeições.
A contemplação não
é mero conhecimento, nem mero amor: ela é também assimilação.
Pois o próprio do amor é produzir a assimilação entre dois
seres. Por isto, nota-se no homem, como um dos traços mais
essenciais de sua natureza, uma profunda influenciabilidade por
outros homens, mas especialmente por aqueles a quem admira.
Imitar é uma tendência própria a todos e está longe de ser, em
si mesma, coisa degradante ou ridícula.
Pode haver
imitações que têm por objeto pessoas indignas. Pode haver
imitações que têm por objeto pessoas dignas [mas] cujas
propriedades alguém procure assimilar de modo excessivamente
exato, e, pois, naquilo que é inconfundível em uma pessoa e
intransponível para outra. São os erros que existem na operação
de imitar, como em qualquer outra operação humana. Mas, em si
mesmo, imitar, assimilar, é uma função legítima, constante da
mente humana, é uma satisfação às exigências mais profundas de
nosso ser.
Se assimilamos o
que devemos, se imitamos a quem devemos, aperfeiçoamo-nos e
aumentamos nossa semelhança com Deus, refletido no espelho de
suas criaturas. Imitar, servir de exemplo, são obrigações de
cada homem, operações essenciais ao aperfeiçoamento da alma,
inerentes profundamente à vida social das almas. São maneiras
dispostas pela própria Providencia, e dotadas por Ela de
eficácia relevante, para o exercício das potências da alma,
desenvolvimento do espírito, e conquista daquela perfeição que é
a veste nupcial com a qual nos habilitamos para o perfeito
festim da alma, que é a perpétua contemplação de Deus.
"Realizar dentro do
mero campo natural uma como que transfiguração da matéria pela
iluminação interior da alma"
Como se dá este
comércio entre as almas? Em outros termos, como vivem elas sua
vida social?
Quando duas pessoas
estão em contato entre si, por mais que sejam desiguais em
inteligência, instrução ou força de persuasão, estão em
condições de exercerem recíproca influência uma sobre a outra.
O corpo humano é um
instrumento maravilhoso para a expressão da alma. Todas as
nossas idéias, mesmo as mais abstratas, todas as nossas emoções,
mesmo as mais sutis, são susceptíveis de uma expressão adequada
pela ação primordial da palavra em si mesma, completada e
enriquecida pela inflexão da voz, pela expressão do olhar, pelos
gestos, pela atitude do corpo, pelo porte e até pelo modo de
andar. Virgílio nos diz que pelo simples modo de andar, Dido se
mostrava uma Deusa: "et incessu patuit Dea ..."
O poder de
expressão de seu corpo, o homem o acentua pelo traje e pelo
ornato. Este poder chega a ser tão grande, que passa às vezes e,
aliás, erroneamente, por irresistível.
Quando esta
transparência da alma em todo o modo de agir e de ser do corpo
se torna nítida, e sobretudo quando tal transparência revela uma
alma firme, clara, lógica, reconhece-se estar em presença do que
se chama uma personalidade. Ter personalidade, ser uma
personalidade, é ter uma alma bastante desenvolvida para
dirigir, influenciar, brilhar em todo o corpo material. É
realizar dentro do mero campo natural uma como que
transfiguração da matéria pela iluminação interior da alma, que
é uma prefigura meramente natural, mas esplêndida em si mesma,
da transfiguração sobrenatural, incomparavelmente mais radiosa e
mais nobre, que os corpos gloriosos terão no Céu, e de que Nosso
Senhor no Tabor, e também alguns Santos, nos têm dado uma visão
sensível nesta Terra de exílio.
As disposições da
alma não só se irradiam ao corpo, mas se comunicam aos objetos
sobre os quais o homem exerce sua influência
A alma não se
exprime só através do corpo. As formas, as cores, os sons, os
odores, os sabores têm uma analogia que não é meramente
convencional com as disposições da alma humana. E por isto as
palavras que servem para designar estados da alma humana são
correntemente empregadas para designar, por analogia,
propriedades de seres animais, vegetais ou minerais. Pode-se
falar do cântico alegre de um pássaro, do aspecto risonho de um
bouquet de flores, ou simplesmente de um panorama; e isto do
mesmo modo por que se fala do riso alegre de uma jovem ou de uma
criança. Pode-se falar da majestade de um Rei, como da águia ou
do trovão. Os exemplos disto poderiam ser multiplicados quase ao
infinito.
Dado este fato,
pode o homem aplicar sua ação sobre os seres inferiores,
comunicando-lhes uma certa expressão. Assim, é certo que as
espécies animais domesticadas pelo homem recebem dele como que
certa amenidade de comportamento, certa compostura, que os
distingue dos congêneres selvagens por diferenças muito
semelhantes àquelas que distinguem o homem civilizado do
bárbaro.
Certos animais,
gatos angorás ou lulus da Pomerânia por exemplo, tomam uma como
que distinção evidentemente afim com os ambientes humanos em que
vivem. Uma ação do mesmo gênero pode também ser desenvolvida
pelos homens sobre certas plantas, nas quais se distinguem as
espécies selvagens e as cultivadas, antes diríamos as
culturadas. Certa expressão de alma, o homem pode até
comunicá-la a seres perfeitamente inanimados: quando faz, por
exemplo, um quadro que terá uma expressão que de nenhum modo
preexistiu na tela, no pincel ou nas tintas.
E tal é a alma
humana, que o próprio do homem é comunicar uma tal ou qual
expressão a todos os objetos de que se cerca. Porque somos
feitos de alma e corpo, queremos que os objetos que nos servem
ao corpo falem também à alma. Um móvel cômodo é o que serve só
ao corpo: um móvel elegante é o que serve também à alma. Um
tecido resistente, agradável ao tato, adequado ao clima,
satisfaz ao corpo. Mas a alma tem exigências próprias e pede que
ele seja belo.
Ambiente: quando
entramos numa sala, parece sentir-se a personalidade de quem a
decorou
As observações
acima nos conduzem a uma noção essencial, que é a de ambiente.
Quando às vezes
entramos numa sala, parece-nos sentir a personalidade de quem a
decorou. Dizemos que tem ambiente. O que quer dizer aí ambiente?
É a expressão de alma que, pelo jogo das formas e das cores, uma
pessoa conseguiu comunicar a objetos materiais.
Nisto, como em
tudo, o homem imita Deus. Quando contemplamos certos panoramas
marítimos, quando à noite olhamos para o céu, sentimos uma
expressão de alma que se desprende desse mundo: é o ambiente
criado por Deus, e pelo qual Ele se exprime a nossos sentidos.
Muito mais fácil
ainda nos seria exemplificar com os sons, os perfumes, os
sabores. São Paulo escreveu que o vinho, bebido com moderação,
alegra o coração do justo. A Igreja se serve da música para
formar nossa piedade. O aroma austero do incenso lhe parece
adequado a ser respirado por nós na oração. Pelo contrário, os
seus moralistas sempre nos premuniram contra os perfumes
voluptuosos e capazes de excitar a moleza e a luxúria.
Consideremos agora
o ambiente em relação ao fim essencial da contemplação, que é
conduzir-nos a Deus.
Se os estados de
alma são susceptíveis de se exprimir assim, está implícito que
as virtudes e os vícios também. Eles se manifestam com
freqüência na face humana, na inflexão da voz, no gesto, no
andar. Eles são susceptíveis de marcar com sua nota própria tudo
quanto o homem faz ou produz.
Um ambiente não
pode ser moralmente indiferente. Ou será bom, e favorecerá as
almas, ou será mau, e agirá em sentido oposto
A intemperança ou a
temperança de um autor não se nota só no fato de explorar [ou
não] o nudismo. O ritmo de uma música pode, em si mesmo, ser
lascivo; como a combinação de certos perfumes, ou a complicação
de certos sabores. A falta de siso não se exprime só pelo
sentido das palavras, mas pelo desalinhado do gesto, pela
extravagância das linhas ou das cores de um traje, de um móvel,
de um edifício.
Neste ponto, como
em outros, o homem é sujeito a erro e pode tachar de voluptuosas
ou desatinadas coisas que só lhe parecem tais porque não está
habituado a elas; não obstante, uma certa volúpia ou
extravagância pode estar realmente na coisa produzida ou
fabricada por um homem voluptuoso ou extravagante.
Sempre que estamos
em presença de um "ambiente", precisamente porque ele
exprime um estado de alma, [devemos ter em conta que ele] não
pode ser moralmente indiferente: ou será bom, e favorecerá as
almas na consideração e assimilação de Deus; ou será mau e agirá
em sentido oposto.
Isto é o que se
poderá dizer da honestidade ou desonestidade natural dos
ambientes. Será lícito caminhar mais um passo, e falar em
ambientes especificamente cristãos? Parece-nos que sim.
A alma humana,
tocada pela graça, adquire uma perfeição sobrenatural que por
vezes se espelha na face. A hagiografia pulula de testemunhos
disto. A Transfiguração o que foi senão isto? Ora, a pintura e a
escultura podem exprimir algo disto. E certos edifícios, em que
estas esculturas e vitrais se encontram, têm com estes uma tal
harmonia, que parecem à sua maneira exprimir a mesma irradiação
da alma humana misticamente incorporada a Nosso Senhor Jesus
Cristo. O heroísmo dos cruzados foi tipicamente cristão e, pois,
diverso do heroísmo meramente natural de um legionário romano. É
possível considerar o ambiente formado numa paisagem por um
possante castelo medieval, sem ter a impressão de que algo de
tipicamente cristão nos toca a alma?
O ambiente exprime
o estado de espírito dominante
Quando a vida
social das almas é regular e intensa num determinado grupo
humano — uma família digamos, ou uma sociedade —, constitui-se
nele uma como que alma coletiva, ou seja, um conjunto de
convicções, algumas das quais prezadas como particularmente
importantes. Conseqüentemente, uma mentalidade coletiva, um
estado de espírito comum exercendo uma influência especialmente
forte sobre todos os membros. [Nesse grupo] o vocabulário se
define pelo uso mais insistente de certas palavras ou expressões
que tomam por vezes até, dentro do grupo, uma tonalidade
específica. Não raras vezes, aparecem até neologismos.
De outro lado, o
modo de trajar, de falar, de comportar-se, todas as preferências
pessoais tendem a receber a marca dos princípios comumente
aceitos, e especialmente dos que são dominantes. Por fim, o
ambiente material se satura desta influência e aos poucos o
quadro físico — casa de família, sede social etc. — vai sendo
transformado de maneira a exprimir ele próprio o espírito
dominante.
Várias sociedades
menores, formando entre si como que uma sociedade de sociedades
— um conjunto de famílias numa cidade, digamos —, podem manter
um como que comércio espiritual comum, que forma o ambiente mais
genérico, porém não menos afirmativo, da vida da cidade. O
florescimento de um conjunto de vocábulos, de trajes, de hábitos
locais, a produção de obras de artesanato marcadas pelo estado
de espírito local e até de influências artísticas nitidamente
locais, tudo isto é o resultante de uma sociedade espiritual
harmônica, definida e ativa. Evidentemente, poderíamos subir
assim da cidade à região, desta ao país, e deste por sua vez às
grandes zonas de cultura e de civilização.
Sem entrar no
debate inesgotável sobre o sentido de civilização, de cultura,
de estilo artístico, chamemos aqui cultura social o estado de
espírito coletivo, a alma coletiva, pelo menos enquanto
fecundado e ordenado pelo trabalho intelectual e enquanto
existente como nota característica que marca também o trabalho
intelectual [manual]. Chamemos civilização o conjunto das
instituições, leis, costumes, enfim todo o modo de ser coletivo,
enquanto marcado pela cultura. E [chamemos] estilo às
manifestações da arte, enquanto marcadas pela cultura, e, pois,
necessariamente afins com a civilização. Chamemos ambiente
social à impressão de conjunto exercida sobre o observador pela
ação harmônica da civilização, da cultura e do estilo, a
transparência definida, forte, inequívoca do estado de alma e
dos princípios doutrinários que são o que aquela sociedade de
almas tem de mais intrínseco.
A função
contemplativa do homem nesta Terra normalmente se exerce apoiada
no ambiente, na cultura, no estilo e na civilização gerados pelo
inter-relacionamento espiritual das almas na ordem temporal
Neste sentido,
podemos e devemos dizer que o ambiente, a cultura, o estilo, a
civilização, isto é, os bens intrinsecamente mais altos da
sociedade humana, são o produto da vida social enquanto
sociedade de almas. Estes bens são indispensáveis ao modo de ser
habitual das almas, e justificam por si mesmos, independente de
outros argumentos — todos legítimos aliás — a existência da
sociedade. Pois ninguém pode conceber um convívio humano que não
tenda, por seu dinamismo próprio, a produzir estes bens. Nem
[pode conceber] condições normais de vida para a alma fora de
tudo quanto se possa chamar ambiente, cultura, estilo e
civilização.
No mesmo sentido,
devemos ainda dizer que a função contemplativa do homem nesta
Terra — aprendizado, prova e prenúncio de sua função eterna no
Céu — normalmente se exerce com apoio no ambiente, na cultura,
no estilo e na civilização. Pois é com o auxílio de tudo isto
que o homem melhor e mais adequadamente assimila ou rejeita os
diversos aspectos do meio que o cerca.
Ainda nesta ordem
de idéias, devemos acrescentar que a formação do ambiente, da
cultura, do estilo, da civilização, constituem, embora produtos
tipicamente espirituais, objetos próprios da sociedade temporal.
Pois é esta ultima noção que nos permitirá prosseguir em nossas
reflexões, chegando a uma perspectiva muito ampla, das relações
entre a Igreja e a sociedade civil.
As características
da mentalidade humana se entranham harmoniosamente no ambiente,
como a alma no corpo
Mas antes de chegar
a este ponto, consideremos em suas mútuas relações os aspectos
espirituais e materiais da vida temporal. De que maneira se
relacionam as atividades atinentes à formação do ambiente, da
cultura, do estilo, da civilização com as demais atividades cuja
contextura forma a vida quotidiana dos homens e das sociedades?
Consideremos o
assunto na esfera limitada de uma família.
Por mais ambiente
que ela tenha, por mais que sua vida social-espiritual seja
intensa, haveria um erro em imaginar que cada uma das suas
atividades é dirigida pela preocupação inteiramente consciente,
definida, intencional de formar um estado de espírito e de o
definir. Muito disto é feito com a naturalidade e a
despreocupação com que o corpo respira ou o sangue circula nas
veias. No construir um móvel, fazer uma cortina ou escolher um
quadro, as preocupações conscientes de ordem absolutamente
prática, de caráter inteiramente circunstancial, podem até ter
um papel preponderante.
Tudo isto não
obstante, as forças mais profundas da alma cooperarão também, e
deixarão sua marca no ato, sem que, muitas vezes, a própria
pessoa que faz o móvel, que escolhe a cortina ou o quadro, o
perceba. [São] afinidades naturais vigorosas e entretanto tão
discretas, entre as várias coisas adquiridas sucessivamente
pelas diversas gerações de uma família. E que coexistem numa
mesma casa, cujas características, entretanto reais e
palpitantes da atmosfera doméstica, por vezes só as pessoas
estranhas ao lar são capazes de notar .
É o que explica a
formação dos estilos. Nenhum deles é uma produção de gabinete,
mas é obra de uma sociedade inteira. Os artistas não são
propriamente os criadores do estilo em uso em uma sociedade, mas
seus intérpretes, seus propulsores na linha em que se vai
desenvolvendo a própria mentalidade social.
E é o que explica
também que nos estilos verdadeiramente produzidos por uma
sociedade, o prático e o belo, os elementos de utilidade física
e as características de expressão mental se fundam tão
harmonicamente.
A vida propriamente
mental se entrelaça tão intimamente, se embebe tão
profundamente, se entranha tão indissociavelmente na vida
material, como a alma no corpo. E é nesta interpenetração que
está a garantia da sanidade e da autenticidade de uma e de
outra.
A sociedade
temporal deve criar condições para o progresso tanto espiritual
quanto material
Qual destas
atividades [a utilitária ou a mental] é a mais importante na
vida temporal? Concretamente, isto equivaleria a perguntar,
quando numa família se adquire um objeto — um armário, digamos
—, o que é mais importante: que sirva para guardar roupas, ou
que por seu aspecto acentue o poder de expressão do ambiente
material do lar? Ou, em um país, ao fazer um Palácio da Justiça,
o que mais importa, é sua utilidade prática para o funcionamento
dos órgãos da judicatura, ou a majestade e gravidade com que
deve penetrar o ambiente judiciário e exprimir a natureza mais
íntima da função de julgar?
Quando um objeto
deve ter, por sua natureza, dois atributos, ambos essenciais, se
um lhe falta, não vale nada. Em vez de escolher entre o armário
materialmente útil e o "espiritualmente" útil; ou em vez
de escolher entre o Palácio só materialmente adequado e o
Palácio só espiritualmente adequado, seria o caso de começar por
rejeitar um e outro.
O homem tem o
direito e o dever de ser suficientemente exigente, para não se
contentar com um objeto que preste maus serviços à sua alma ou
ao seu corpo.
Não queremos,
porém, fugir à questão que há pouco havíamos formulado. O fim
imediato, próprio, natural de um armário não consiste em ser
como que uma condensação de doutrina ou de mentalidade. Neste
sentido, mais lhe importa guardar convenientemente roupas. Mas,
como o serviço prestado à alma vale mais do que o que se presta
ao corpo, em certo sentido é mais importante a função educativa
de um mobiliário do que seu aspecto prático.
O mesmo se deve
dizer da sociedade temporal, considerada como um todo. Sua
situação não pode ser tida por normal, senão quando fornece
condições de existência e de progresso satisfatórias tanto para
a alma quanto para o corpo. A recíproca influência entre as duas
esferas levará mesmo os progressos obtidos em cada uma a
repercutir favoravelmente no dinamismo próprio à outra.
Qualitativamente, entretanto, é bem verdade que os benefícios do
espírito importam mais que os da matéria. E por isto, em que
pese a certa mentalidade moderna, importa mais a um país ter uma
cultura própria, um estilo próprio, costumes, instituições, leis
em consonância com o ambiente nacional, do que uma perfeita
canalização de águas e esgotos.
A Atenas do tempo
de Péricles brilhará para sempre no firmamento da História. A
Atenas de hoje, incomparavelmente superior à outra como
comodidade material de vida, que lembrança deixará de si no
futuro?
A sociedade
temporal exerce função ministerial a serviço da ordem
sobrenatural, constituindo tal função instrumento útil e
poderoso para a salvação das almas
Trata-se, agora, de
definir as relações entre as funções da sociedade temporal, que
acabamos de descrever, e a Religião.
A Igreja ensina que
a vida terrena deve ser comparada a um noviciado. O noviço deve
adquirir os conhecimentos e as virtudes que o tornem apto para a
vida religiosa. O homem deve adquirir na vida terrena os
conhecimentos e as virtudes que o tornem apto para o Céu.
Por virtude se
entende o hábito de operar segundo a reta razão. O que supõe um
conhecimento dos ditames da reta razão. As operações a que se
referem estes ditames não são apenas as exteriores, mas as
interiores. Qualquer ato meramente interior do homem, desde que
tenha o consentimento da vontade, é susceptível de ser virtuoso
ou não, conforme esteja em acordo, ou em desacordo, com a reta
razão. A sociedade temporal-espiritual é dotada de uma ação
poderosa sobre o homem para o levar a pôr atos interiores ou
exteriores conformes à razão. Ela pode, pois, ser meio útil para
salvar ou para perder.
As mais altas
manifestações da vida temporal se inserem, por sua própria
natureza, no âmago do problema da salvação e a ele não podem
ficar de nenhum modo alheias. Não é só pelo concurso das leis
com que favorece a Igreja verdadeira e reprime o erro, que a
sociedade temporal pode servir à salvação. É pelas mil
atividades espirituais que constituem o que ela tem de melhor,
isto é, o fato de ser uma sociedade de almas, sem o que nem
sequer ela seria sociedade.
Dá-se pois com a
sociedade temporal — mutatis mutandis — o mesmo que com a
família, sociedade também ela natural, temporal, mas destinada
pelo que ela tem de mais visceral, a atividades que coincidem
com as da Igreja.
Dada esta
interpenetração profunda de campos, desejada pela Providência,
seria absurdo supor que Deus não quisesse uma cooperação entre a
sociedade temporal e a Igreja. E, mais, que nessa cooperação
entre duas sociedades intrinsecamente desiguais, o temporal,
natural, perecível não estivesse em posição ministerial em
relação ao espiritual, sobrenatural, eterno; o fim próximo em
relação ao fim último.
Há nestas
considerações base suficiente para se ir mais longe, sustentando
que a sociedade temporal, máxime enquanto sociedade de almas,
não alcança a sua perfeição senão mediante o Magistério e a
graça de que a Igreja é depositária. Mas isto nos levaria longe
do nosso tema.
A Igreja alcança
grandes frutos em sua atuação quando instituições, leis, estilos
etc. constituem um ambiente católico
A sociedade
temporal tem, pois, tanto quanto a família, embora a seu modo
próprio, uma função de apostolado a exercer na própria esfera
temporal, sob a inspiração e o magistério da Igreja.
Qual a importância
real de sua contribuição, na obra da salvação? Trata-se, é
claro, de uma contribuição de caráter meramente natural, pois só
a Igreja é uma sociedade sobrenatural. Isto posto, pode-se
entretanto sustentar que tal importância é imensa. A Providência
quis que o ambiente de uma família, de uma sociedade cultural,
profissional, recreativa ou qualquer outra, o ambiente de uma
cidade, de uma província, de um país exercessem sobre o homem
uma influência natural profunda, da qual, é certo, ele pode
libertar-se com o auxilio da graça, caso tal influência seja má,
mas que em todo o caso atua em seu íntimo poderosamente. A prova
disto está na evidência dos fatos. Onde as leis, as
instituições, os costumes, a cultura, o estilo, a civilização
constituem um ambiente profundamente católico, a ação específica
da Hierarquia Eclesiástica logra habitualmente grandes frutos, e
a ação dos Sacramentos, da pregação, a irradiação da santidade
dos Ministros de Deus move as multidões. Onde pelo contrário
tudo se lhe opõe, as dificuldades para a ação da Hierarquia se
tornam imensas. São vencíveis, é certo, pois para Deus nada é
impossível. Mas atuam em si mesmas de modo desfavorável.
É o que explica que
países inteiros tenham caído repentinamente na heresia, como a
Inglaterra, ou as nações escandinavas: todo o ambiente tinha uma
nota apenas aparente de catolicidade. O que era verdadeiramente
dominante, era a indiferença, a tibieza.
Em sentido
contrário, poder-se-ia argumentar com a expansão da Igreja sob
as perseguições e seu afrouxamento depois de Constantino. O
argumento é intrinsecamente tão fraco, que faz sorrir. Quem pode
admitir que a Esposa Mística de Cristo só seja fecunda quando
tratada a chibatadas..., que seus verdadeiros benfeitores sejam
os Neros, e os Dioclecianos, e seus verdadeiros perseguidores
São Luís, São Fernando, ou Santo Henrique?
Noção de sociedade
temporal sacral
A sociedade
temporal, querida por Deus, ordenada por Ele, realizando em si
mesma uma obra que é de santificação, é uma sociedade santa, que
tem uma função sagrada. [Ela permanece] sociedade inteiramente
natural como a família, mas como ela [é] trabalhada a fundo pela
vida sobrenatural que borbulha em seus membros. Sociedade santa
e sagrada como o é a família cristã, à qual convém tão bem a
designação de santa, que até o seu vínculo constitutivo é um
Sacramento instituído pelo próprio Jesus Cristo.
Santo Império,
Santa Rússia, Santa França eram antigamente designações
correntes e perfeitamente legítimas. E ninguém estranhava que o
óleo sagrado servisse como um Sacramental para ungir os Reis,
que a sua investidura no poder temporal supremo se desse durante
a Missa, numa função essencialmente religiosa, com a
participação do Clero; que a Cruz de Cristo brilhasse no alto do
símbolo do poder temporal, que era a coroa; ou que o título mais
honroso do detentor supremo do poder temporal fosse um título
religioso: Sacra Majestas, Rex Apostolicus, Rex
Christianissimus, Rex Catholicus, Rex Fidelissimus, Defensor
Fidei (*) [E ninguém estranhava também] que os duques da
Lorena — que se presumiam reis de Jerusalém — cingissem uma
coroa cujo diadema era feito de espinhos, ou que o Rei da
Lombardia tivesse em sua Coroa de Ferro um Cravo da Paixão de
Cristo. Todos estes fatos atestavam a sacralidade da sociedade
temporal e portanto do poder temporal, embora este fosse
distinto da Hierarquia Eclesiástica.
Chegamos assim à
noção da sociedade temporal ministra da Igreja, que abre amplas
perspectivas para a noção da sociedade temporal sacral.
Parece-nos que — se
todos os que se interessam pelo problema das relações entre a
sociedade temporal e a Igreja tivessem bem claro no espírito que
a palavra temporal inclui a título capital imensos valores
espirituais, e quais sejam eles — mais fácil lhes seria
compreender a ministerialidade do temporal.
(*) Nota da
Redação — Esses títulos tão significativos correspondiam
aos principais monarcas da Europa de então: Majestade
Sagrada, título que correspondia ao Imperador do Sacro
Império Romano Alemão; Rei Apostólico, ao rei da Hungria;
Rei Cristianíssimo, ao rei da França; Rei Católico, ao rei
da Espanha; Rei Fidelíssimo, ao rei de Portugal; Defensor da
Fé, ao rei da Inglaterra.
Obs: O título,
subtítulo e intertítulos do presente ensaio são da redação.
Igualmente são da redação os pequenos esclarecimentos colocados
entre colchetes [...] para mais fácil intelecção do texto. |