Catolicismo N.o 157 – janeiro de 1964 (www.catolicismo.com.br)

 

Retrospecto do ano de 1963: atropelo desconexo de fatos?

[atribuído]

 

Toda passagem de ano convida a uma visão retrospectiva. Ela não é fácil no que diz respeito ao ano que findou.

Com efeito, 1963, tão fértil de acontecimentos, poderá dar – por isto mesmo – a muitos observadores a sensação de um caos tumultuoso, um atropelo desconexo de fatos, impossíveis de estruturar em uma visão de conjunto.

Na realidade, e consideradas as coisas em seu aspecto mais profundo, isto não é assim. O católico, que sabe pela fé ser a Santa Igreja o eixo em torno do qual giram todos os grandes movimentos da História, não tem dúvida de que os fatos mais importantes do ano se deram na esfera religiosa e eclesiástica, onde os houve tantos e tão notáveis. E, assim, nossos leitores acharão inteiramente normal que neles concentremos – dadas as limitações de espaço inevitáveis – o nosso comentário retrospectivo concernente a 1963.

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Quando, entre pompas, cânticos e hinos, se apagaram os últimos fogos da primeira sessão do II concílio Ecumênico Vaticano, a Cristandade sentia no coração o frêmito doloroso de um “consta” que foi circulando com insistência crescente nos primeiros meses de 1963: o Santo Padre João XXIII estava gravemente enfermo, dizia-se. Ao cabo de algum tempo, as notícias começaram a se confirmar. E por fim os 500 milhões de católicos, reunidos em espírito em torno do leito de agonia do Pastor Supremo, passavam por todos os transes de uma família congregada para presenciar a morte de seu Chefe.

De um Chefe que se fizera querer muito, em seu breve pontificado. E assim a consternação universal ocasionada pelos padecimentos e pela morte de João XXIII foram sem dúvida a expressão da grande popularidade que se formara em torno da figura tão afável, tão acessível, tão compassiva, do Papa Roncalli. Entretanto, é preciso acrescentar que a par desse sentimento pessoal, o doloroso evento deu ocasião a que se manifestasse em escala universal o amor entranhado, a veneração indizível, a fidelidade profundíssima de todos os católicos, ao trono de São Pedro.

Com efeito, qual o Chefe de Estado, por mais atraente, popular e importante que fosse, que poderia fazer-se chorar com lágrimas tão amargas, por tanta gente de todas as raças, de todas as línguas, e de todas as partes da terra? Na expressão dessa dor universal ia uma afirmação implícita da unidade e da universalidade da Igreja, dessa universalidade e dessa unidade que sem a ação sobrenatural da graça nem se teria constituído e nem se teria mantido em torno da Cátedra de São Pedro.

Em suma, por ocasião da morte de João XXIII os católicos deram ao mundo uma admirável prova de quanto pode a graça de Deus.

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Compare-se, com efeito, a repercussão da morte de João XXIII com a do Presidente Kennedy.

Um Chefe de Estado, empossado ainda jovem no cargo político mais importante da terra nos dias de hoje, dotado de uma esfera de influência política maior, por sua imensa extensão geográfica, do que a de Alexandre, dos Césares romanos ou de Carlos V; um Chefe de Estado que por seu feitio mental e seu modo de ser físico despertava no mundo moderno imensas simpatias, e que se apresentava às multidões aureolado com todo o prestígio do poder e da fama. Esse Chefe de Estado é alvejado inopinadamente por um tiro certeiro desferido por mãos criminosas e anônimas, e cai tragicamente, prostrado nos braços de sua jovem esposa. O mundo inteiro fica estarrecido. De todos os recantos se fazem ouvir soluços. Kennedy foi homenageado e pranteado como se homenageia um potentado, ou se chora junto a um pai que desaparece deixando os seus na desventura. Seus funerais foram magníficos e sentidos.

Mas tudo isto, que é tanto, não chega a igualar a dor sentida em todo o orbe pelos católicos que choraram João XXIII como cada qual chora o seu próprio pai, com aquelas lágrimas de um sentido inefável, que só se choram a propósito das coisas do Céu, e não das da terra.

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Estas considerações nos conduzem a outra grande morte do ano. Não pode ela deixar de penalizar os corações católicos. Foi a do Presidente Ngo Dihn Diem, barbaramente assassinado com seu irmão Ngo Dihn Nhu, em Saigon.

Da confusão das notícias referentes ao regime de Ngo Dihn no Vietnã, notícias essas a respeito das quais, em razão das distâncias, não dispomos dos elementos de informação e de crítica necessários, alguns traços emerge, que a ninguém é lícito silenciar.

O Presidente Diem se proclamou sempre, e desassombradamente, católico. Nesta época de laicismo, de relativismo religioso e de “maritainismo”, mostrou ele uma rara consciência dos deveres do Estado e da sociedade civil para com a Igreja. Compreendendo bem até que ponto incumbe ao Estado, e lhe interessa, proteger a moralidade pública, lutou com todas as forças contra os agentes da corrupção moral em sua pátria. O comunismo teve nele, e nos que o apoiavam, um adversário intrépido e eficiente. Contra ele se levantaram protestos. Mas como dar a estes a simpatia irrestrita que lhes deram tantos órgãos da imprensa, se se tomar na devida conta que tais protestos se expressavam por uma série de crimes nefandos, isto é, por toda uma confrangedora série de suicídios, que degeneraram em uma verdadeira epidemia, a qual se vem prolongando até depois do trucidamento dos irmãos Dihn? A campanha publicitária que no mundo inteiro contra estes se desencadeou, o que significa em última análise? Não foi ela constituída pelas vozes falaciosas que, vibrando de compaixão quando um bonzo se queima, emudecem diante das carnificinas comunistas levadas a efeito na Hungria, em Cuba e em outros lugares?

Seja qual for o veredicto futuro da História a respeito de Ngo Dihn Diem e Ngo Dihn Nhu, a justiça manda que à beira da campa sob a qual jazem, lembremos estes lados positivos de sua atuação, e nos curvemos com respeito, murmurando uma prece.

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Deixemos agora os acontecimentos funéreos.

O ano de 1963 apresentou também alegrias. Ouvimos ainda os sinos de São Pedro a tocar alegremente transmitindo ao mundo a grande notícia. “Annuntio vobis gaudium magnum”, exclamou do alto da histórica “loggia” o ilustre Cardeal Ottaviani, anunciando à urbe e ao orbe a ascensão do Cardeal João Batista Montini à Suprema Cátedra. E, dentro de poucos minutos, o povo genuflexo e emocionado presenciava a chegada ao balcão do Sucessor dos Apóstolos, a branca, esguia e fulgurantemente inteligente figura de Paulo VI, que dava sua bênção paternal a todos os presentes, a todos os católicos, a todo o gênero humano.

A alegria da eleição de um novo Papa! Tem ela algo das claridades do Natal e da Páscoa, é feita de certezas e esperanças fundadas na fé, e se traduz em aclamações que lembram as harmonias do cântico angélico ouvido pelos pastores de Belém.

A atmosfera análoga cercou também a solene abertura da segunda sessão do Concílio Ecumênico.

E, ao longo dos 67 dias em que a augusta Assembléia esteve reunida, em todo o orbe católico, em todo o gênero humano a propósito dela se definiu um ambiente de respeito e expectativa que por certo há de ter contribuído de modo positivo para o andamento dos trabalhos conciliares.

Dizíamos no início destas notas que, para os olhos da fé, é claro que a Igreja é o eixo em torno do qual giram todos os acontecimentos da História. Algo disto transparece mesmo para quem se atenha a uma consideração meramente natural dos fatos. Assim, o destaque que a imprensa mundial deu aos trabalhos conciliares, a atenção com que os acompanharam os vários governos e as figuras exponenciais de todas as correntes de opinião, tudo enfim concorreu para pôr em evidência a transcendental importância do Concílio.

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É impossível falar dos trabalhos conciliares sem registrar a profunda alegria que provocou nos corações fiéis a Alocução de encerramento pronunciada pelo Santo Padre. Contém esse augusto documento conceitos de um alto valor, entre os quais nos comprazemos em destacar dois. O primeiro se encontra no seguinte tópico: “Esperamos que para a questão do esquema relativo à Bem-aventurada Virgem Maria o Concílio venha a adotar a melhor solução possível, a saber: o reconhecimento unânime e devotíssimo do lugar, de longe o mais eminente de todos, que na Santa Igreja é próprio à Mãe de Deus (...), lugar, dizemos, que é, depois de Cristo, o mais alto e o mais próximo de nós, de modo que possamos honrá-la com o título de “Mãe da Igreja”, para sua glória e nosso conforto”. E o outro conceito se encerra nestas palavras: “... este II Concílio Ecumênico Vaticano, que ninguém esqueça ser continuação natural e complemento do I Concílio Ecumênico Vaticano, e que portanto – não contrastando, mas confirmando as prerrogativas derivadas de Cristo e reconhecidas ao Sumo Pontífice, as quais comportam toda a autoridade necessária para o governo da Igreja universal – se aplicará a pôr na devida luz, segundo o ensinamento de Nosso Senhor Jesus Cristo e segundo a autêntica tradição da Igreja, a natureza e a função divinamente instituídas do Episcopado, estatuindo quais sejam seus poderes e qual o exercício destes, no que diz respeito aos Bispos considerados quer individualmente, quer em seu conjunto, de modo que resulte dignamente ilustrado o altíssimo ofício do mesmo Episcopado na Igreja de Deus, não como entidade independente, separada ou, muito menos ainda, antagônica do Sumo Pontificado de Pedro, senão com ele e sob ele cooperando para o bem comum e para o fim supremo da Igreja”.

Grande é, por outro lado, a expectativa a respeito da Alocução que pronunciará junto ao Santo Sepulcro o Papa Paulo VI.

O histórico acontecimento da visita do Sucessor dos Apóstolos à cidade em que foi crucificado Nosso Senhor Jesus Cristo despertará por certo a atenção do mundo inteiro, e constituirá um acontecimento imperecedouro nos anais da História. É com os olhos voltados para esse grande acontecimento que a humanidade transpõe os umbrais de 1964.

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Seria impossível deixar a esfera dos acontecimentos internacionais de especial interesse para a vida religiosa e a civilização cristã, e passar para a dos acontecimentos nacionais, sem mencionar dois fatos que constituem um harmonioso elo de ligação entre uma e outra esfera.

No decorrer de 1963, acentuou-se enormemente a manobra de Moscou e Pequim, consistente em “dividir” o campo comunista, apresentando ao Ocidente duas faces. Uma, a de Kruchev, procura hipnotizá-lo com sorrisos, e levá-lo assim a uma capitulação sem resistência. Outra, a de Mao Tsé-tung, sinistra e odienta, procura persuadir o Ocidente de que as piores catástrofes o esperam caso ele não se deixe desmobilizar pelo sorriso do apalhaçado tirano moscovita.

Nesta atmosfera, em que, como através de duas tenazes, o comunismo procura comprimir e liquidar o Ocidente, assume importância transcendental a petição com que 213 Padres Conciliares, por iniciativa de dois ilustres Prelados brasileiros, os Exmos. Revmos. Srs. D. Antonio de Castro Mayer e D. Geraldo de Proença Sigaud, rogaram ao Sumo Pontífice que autorize o Concílio a condenar o socialismo e o comunismo internacional, sem fazerem aliás distinção entre matiz russo e matiz chinês.

Esse fato, pelo interesse muito especial que oferece para o público brasileiro, merece detido comentário, que não cabe nos limites deste artigo. Analisa-lo-emos no próximo número de “Catolicismo”, ensejo em que também informaremos nossos leitores sobre as repercussões que teve – e é este o segundo fato a que aludimos – a distribuição entre os Padres Conciliares, do importante trabalho “A liberdade da Igreja no Estado comunista”, publicado nesta folha (n.o 152, de agosto p.p.) pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira.

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E a política nacional? Pode-se dizer que, no Brasil, durante todo o ano de 1963, a civilização cristã bordejou abismos. Contudo, até o momento em que escrevemos, não caiu neles.

Para este resultado, relativamente feliz nas trevas de todas as nossas infelicidades, concorreu antes de tudo a proteção de Nossa Senhora Aparecida, Rainha deste pobre País.

Ademais, é preciso reconhecer que a opinião pública, em todas as ocasiões que se lhe apresentaram – eleições em Pernambuco, São Paulo e Rio Grande do Sul – se manifestou tão claramente anti-esquerdista, que seria realmente temerário querer impor-lhe uma orientação que ela peremptoriamente repudia.

Nem mesmo o engodo do assim chamado esquerdismo católico – que em 1963, mais do que nunca, favoreceu às escancaras a extrema esquerda – conseguiu voltar o Brasil contra si mesmo, isto é, contra as normas sagradas da civilização cristã, as quais constituem o traço mais essencial do espírito brasileiro.

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Umas das notas confortadoras dessa realidade foi que 7.400 universitários de seis Estados subscreveram uma interpelação, da qual aliás já se tem ocupado “Catolicismo”, documento esse em que pediam ao Deputado André Montoro esclarecesse em que consiste a chamada terceira posição.

Esse abaixo-assinado constitui a expressão de um anelo de coerência, clareza e vigor de atitudes, que não se coaduna com as ambigüidades da terceira posição, as quais tão manifestas ficaram na resposta resvaladia e incolor que o Deputado A. Montoro pretendeu dar aos universitários brasileiros.

Quando jovens que são o prenúncio do futuro da Pátria ainda tomam tais atitudes, pode-se afirmar que o País ainda tem reservas que nem com golpes nem com murros podem ser aniquiladas pelas forças da confusão ou pelo poder das trevas.

O soco brutal desferido por um truculento adepto da terceira posição contra o estudante Joaquim Augusto Pereira, em Belo Horizonte (ver “Catolicismo”, n.o 154, de outubro p.p.), e a enérgica reação da opinião pública contra a estúpida agressão, têm nesse sentido todo o valor de um símbolo.