[atribuído]
Toda passagem de ano convida a uma
visão retrospectiva. Ela não é fácil no que diz respeito ao ano que findou.
Com efeito, 1963, tão fértil de
acontecimentos, poderá dar – por isto mesmo – a muitos observadores a sensação
de um caos tumultuoso, um atropelo desconexo de fatos, impossíveis de
estruturar em uma visão de conjunto.
Na realidade, e consideradas as
coisas em seu aspecto mais profundo, isto não é assim. O católico, que sabe
pela fé ser a Santa Igreja o eixo em torno do qual giram todos os grandes
movimentos da História, não tem dúvida de que os fatos mais importantes do ano
se deram na esfera religiosa e eclesiástica, onde os houve tantos e tão
notáveis. E, assim, nossos leitores acharão inteiramente normal que neles
concentremos – dadas as limitações de espaço inevitáveis – o nosso comentário
retrospectivo concernente a 1963.
*
Quando, entre pompas, cânticos e
hinos, se apagaram os últimos fogos da primeira sessão do II concílio Ecumênico
Vaticano, a Cristandade sentia no coração o frêmito doloroso de um “consta” que
foi circulando com insistência crescente nos primeiros meses de 1963: o Santo
Padre João XXIII estava gravemente enfermo, dizia-se. Ao cabo de algum tempo,
as notícias começaram a se confirmar. E por fim os 500 milhões de católicos,
reunidos em espírito em torno do leito de agonia do Pastor Supremo, passavam por
todos os transes de uma família congregada para presenciar a morte de seu
Chefe.
De um Chefe que se fizera querer
muito, em seu breve pontificado. E assim a consternação universal ocasionada
pelos padecimentos e pela morte de João XXIII foram sem dúvida a expressão da
grande popularidade que se formara em torno da figura tão afável, tão
acessível, tão compassiva, do Papa Roncalli.
Entretanto, é preciso acrescentar que a par desse sentimento pessoal, o
doloroso evento deu ocasião a que se manifestasse em escala universal o amor
entranhado, a veneração indizível, a fidelidade profundíssima
de todos os católicos, ao trono de São Pedro.
Com efeito, qual o Chefe de
Estado, por mais atraente, popular e importante que fosse, que poderia fazer-se
chorar com lágrimas tão amargas, por tanta gente de todas as raças, de todas as
línguas, e de todas as partes da terra? Na expressão dessa dor universal ia uma
afirmação implícita da unidade e da universalidade da Igreja, dessa
universalidade e dessa unidade que sem a ação sobrenatural da graça nem se
teria constituído e nem se teria mantido em torno da Cátedra de São Pedro.
Em suma, por ocasião da morte de
João XXIII os católicos deram ao mundo uma admirável prova de quanto pode a
graça de Deus.
*
Compare-se, com efeito, a
repercussão da morte de João XXIII com a do Presidente Kennedy.
Um Chefe de Estado, empossado
ainda jovem no cargo político mais importante da terra nos dias de hoje, dotado
de uma esfera de influência política maior, por sua imensa extensão geográfica,
do que a de Alexandre, dos Césares romanos ou de
Carlos V; um Chefe de Estado que por seu feitio mental e seu modo de ser físico
despertava no mundo moderno imensas simpatias, e que se apresentava às
multidões aureolado com todo o prestígio do poder e da fama. Esse Chefe de
Estado é alvejado inopinadamente por um tiro certeiro
desferido por mãos criminosas e anônimas, e cai tragicamente, prostrado nos
braços de sua jovem esposa. O mundo inteiro fica estarrecido. De todos os
recantos se fazem ouvir soluços. Kennedy foi homenageado e pranteado como se
homenageia um potentado, ou se chora junto a um pai que desaparece deixando os
seus na desventura. Seus funerais foram magníficos e sentidos.
Mas tudo isto, que é tanto, não
chega a igualar a dor sentida em todo o orbe pelos católicos que choraram João
XXIII como cada qual chora o seu próprio pai, com aquelas lágrimas de um
sentido inefável, que só se choram a propósito das coisas do Céu, e não das da
terra.
*
Estas considerações nos conduzem a
outra grande morte do ano. Não pode ela deixar de penalizar os corações
católicos. Foi a do Presidente Ngo Dihn Diem, barbaramente
assassinado com seu irmão Ngo Dihn
Nhu, em Saigon.
Da confusão das notícias
referentes ao regime de Ngo Dihn
no Vietnã, notícias essas a respeito das quais, em razão das distâncias, não
dispomos dos elementos de informação e de crítica necessários, alguns traços
emerge, que a ninguém é lícito silenciar.
O Presidente Diem
se proclamou sempre, e desassombradamente, católico.
Nesta época de laicismo, de relativismo religioso e de “maritainismo”,
mostrou ele uma rara consciência dos deveres do Estado e da sociedade civil
para com a Igreja. Compreendendo bem até que ponto incumbe ao Estado, e lhe
interessa, proteger a moralidade pública, lutou com todas as forças contra os
agentes da corrupção moral em sua pátria. O comunismo teve nele, e nos que o
apoiavam, um adversário intrépido e eficiente. Contra ele se levantaram
protestos. Mas como dar a estes a simpatia irrestrita que lhes deram tantos
órgãos da imprensa, se se tomar na devida conta que
tais protestos se expressavam por uma série de crimes nefandos, isto é, por
toda uma confrangedora série de suicídios, que
degeneraram em uma verdadeira epidemia, a qual se vem prolongando até depois do
trucidamento dos irmãos Dihn? A campanha publicitária
que no mundo inteiro contra estes se desencadeou, o que significa em última
análise? Não foi ela constituída pelas vozes falaciosas que, vibrando de
compaixão quando um bonzo se queima, emudecem diante
das carnificinas comunistas levadas a efeito na Hungria, em Cuba e em outros
lugares?
Seja qual for o veredicto futuro
da História a respeito de Ngo Dihn
Diem e Ngo Dihn Nhu, a justiça manda que à
beira da campa sob a qual jazem, lembremos estes lados positivos de sua
atuação, e nos curvemos com respeito, murmurando uma prece.
*
Deixemos agora os acontecimentos
funéreos.
O ano de 1963 apresentou também
alegrias. Ouvimos ainda os sinos de São Pedro a tocar alegremente transmitindo
ao mundo a grande notícia. “Annuntio vobis gaudium magnum”,
exclamou do alto da histórica “loggia” o ilustre Cardeal Ottaviani,
anunciando à urbe e ao orbe a ascensão do Cardeal João Batista Montini à Suprema Cátedra. E, dentro de poucos minutos, o
povo genuflexo e emocionado presenciava a chegada ao balcão do Sucessor dos
Apóstolos, a branca, esguia e fulgurantemente inteligente figura de Paulo VI,
que dava sua bênção paternal a todos os presentes, a todos os católicos, a todo
o gênero humano.
A alegria da eleição de um novo
Papa! Tem ela algo das claridades do Natal e da Páscoa, é feita de certezas e
esperanças fundadas na fé, e se traduz em aclamações que lembram as harmonias
do cântico angélico ouvido pelos pastores de Belém.
A atmosfera análoga cercou também
a solene abertura da segunda sessão do Concílio Ecumênico.
E, ao longo dos 67 dias em que a
augusta Assembléia esteve reunida, em todo o orbe católico, em todo o gênero
humano a propósito dela se definiu um ambiente de respeito e expectativa que
por certo há de ter contribuído de modo positivo para o andamento dos trabalhos
conciliares.
Dizíamos no início destas notas
que, para os olhos da fé, é claro que a Igreja é o eixo em torno do qual giram
todos os acontecimentos da História. Algo disto transparece mesmo para quem se
atenha a uma consideração meramente natural dos fatos. Assim, o destaque que a
imprensa mundial deu aos trabalhos conciliares, a atenção com que os
acompanharam os vários governos e as figuras exponenciais de todas as correntes
de opinião, tudo enfim concorreu para pôr em evidência a transcendental
importância do Concílio.
*
É impossível falar dos trabalhos
conciliares sem registrar a profunda alegria que provocou nos corações fiéis a
Alocução de encerramento pronunciada pelo Santo Padre. Contém esse augusto
documento conceitos de um alto valor, entre os quais nos comprazemos em
destacar dois. O primeiro se encontra no seguinte tópico: “Esperamos que para a
questão do esquema relativo à Bem-aventurada Virgem Maria o Concílio venha a
adotar a melhor solução possível, a saber: o reconhecimento unânime e devotíssimo do lugar, de longe o mais eminente de todos,
que na Santa Igreja é próprio à Mãe de Deus (...), lugar, dizemos, que é,
depois de Cristo, o mais alto e o mais próximo de nós, de modo que possamos
honrá-la com o título de “Mãe da Igreja”, para sua glória e nosso conforto”. E
o outro conceito se encerra nestas palavras: “... este II Concílio Ecumênico
Vaticano, que ninguém esqueça ser continuação natural e complemento do I
Concílio Ecumênico Vaticano, e que portanto – não contrastando, mas confirmando
as prerrogativas derivadas de Cristo e reconhecidas ao Sumo Pontífice, as quais
comportam toda a autoridade necessária para o governo da Igreja universal – se
aplicará a pôr na devida luz, segundo o ensinamento de Nosso Senhor Jesus
Cristo e segundo a autêntica tradição da Igreja, a natureza e a função
divinamente instituídas do Episcopado, estatuindo quais sejam seus poderes e
qual o exercício destes, no que diz respeito aos Bispos considerados quer
individualmente, quer em seu conjunto, de modo que resulte dignamente ilustrado
o altíssimo ofício do mesmo Episcopado na Igreja de Deus, não como entidade
independente, separada ou, muito menos ainda, antagônica do Sumo Pontificado de
Pedro, senão com ele e sob ele cooperando para o bem comum e para o fim supremo
da Igreja”.
Grande é, por outro lado, a
expectativa a respeito da Alocução que pronunciará junto ao Santo Sepulcro o
Papa Paulo VI.
O histórico acontecimento da
visita do Sucessor dos Apóstolos à cidade em que foi crucificado Nosso Senhor
Jesus Cristo despertará por certo a atenção do mundo inteiro, e constituirá um
acontecimento imperecedouro nos anais da História. É
com os olhos voltados para esse grande acontecimento que a humanidade transpõe
os umbrais de 1964.
*
Seria impossível deixar a esfera
dos acontecimentos internacionais de especial interesse para a vida religiosa e
a civilização cristã, e passar para a dos acontecimentos nacionais, sem
mencionar dois fatos que constituem um harmonioso elo de ligação entre uma e
outra esfera.
No decorrer de 1963, acentuou-se
enormemente a manobra de Moscou e Pequim, consistente em “dividir” o campo
comunista, apresentando ao Ocidente duas faces. Uma, a de Kruchev,
procura hipnotizá-lo com sorrisos, e levá-lo assim a uma capitulação sem
resistência. Outra, a de Mao Tsé-tung,
sinistra e odienta, procura persuadir o Ocidente de que as piores catástrofes o
esperam caso ele não se deixe desmobilizar pelo sorriso do apalhaçado
tirano moscovita.
Nesta atmosfera, em que, como
através de duas tenazes, o comunismo procura comprimir e liquidar o Ocidente,
assume importância transcendental a petição com que 213 Padres Conciliares, por
iniciativa de dois ilustres Prelados brasileiros, os Exmos.
Revmos. Srs. D. Antonio de Castro Mayer e D. Geraldo de Proença Sigaud, rogaram ao Sumo Pontífice que autorize o Concílio a
condenar o socialismo e o comunismo internacional, sem fazerem aliás distinção
entre matiz russo e matiz chinês.
Esse fato, pelo interesse muito
especial que oferece para o público brasileiro, merece detido comentário, que
não cabe nos limites deste artigo. Analisa-lo-emos no
próximo número de “Catolicismo”, ensejo em que também informaremos nossos
leitores sobre as repercussões que teve – e é este o segundo fato a que
aludimos – a distribuição entre os Padres Conciliares, do importante trabalho
“A liberdade da Igreja no Estado comunista”, publicado nesta folha (n.o
152, de agosto p.p.) pelo Prof. Plinio Corrêa de
Oliveira.
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E a política nacional? Pode-se
dizer que, no Brasil, durante todo o ano de 1963, a civilização cristã bordejou
abismos. Contudo, até o momento em que escrevemos, não caiu neles.
Para este resultado, relativamente
feliz nas trevas de todas as nossas infelicidades, concorreu antes de tudo a
proteção de Nossa Senhora Aparecida, Rainha deste pobre País.
Ademais, é preciso reconhecer que
a opinião pública, em todas as ocasiões que se lhe apresentaram – eleições em
Pernambuco, São Paulo e Rio Grande do Sul – se manifestou tão claramente
anti-esquerdista, que seria realmente temerário querer impor-lhe uma orientação
que ela peremptoriamente repudia.
Nem mesmo o engodo do assim
chamado esquerdismo católico – que em 1963, mais do que nunca, favoreceu às
escancaras a extrema esquerda – conseguiu voltar o Brasil contra si mesmo, isto
é, contra as normas sagradas da civilização cristã, as quais constituem o traço
mais essencial do espírito brasileiro.
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Umas das notas confortadoras dessa
realidade foi que 7.400 universitários de seis Estados subscreveram uma
interpelação, da qual aliás já se tem ocupado “Catolicismo”, documento esse em
que pediam ao Deputado André Montoro esclarecesse em que consiste a chamada
terceira posição.
Esse abaixo-assinado constitui a
expressão de um anelo de coerência, clareza e vigor de atitudes, que não se
coaduna com as ambigüidades da terceira posição, as quais tão manifestas
ficaram na resposta resvaladia e incolor que o
Deputado A. Montoro pretendeu dar aos universitários brasileiros.
Quando jovens que são o prenúncio
do futuro da Pátria ainda tomam tais atitudes, pode-se afirmar que o País ainda
tem reservas que nem com golpes nem com murros podem ser aniquiladas pelas
forças da confusão ou pelo poder das trevas.
O soco brutal desferido por um
truculento adepto da terceira posição contra o estudante Joaquim Augusto
Pereira, em Belo Horizonte (ver “Catolicismo”, n.o 154, de outubro
p.p.), e a enérgica reação da opinião pública contra a estúpida agressão, têm
nesse sentido todo o valor de um símbolo.