"O A.U.C.", Ano VI (nova série), nº 14, abril de 1935 (p. 6)

 

Ponto 37

 

Muitos não compreenderam, talvez, a razão que me levou a destacar particularmente, em meu programa, a questão religiosa e a militar no Brasil Império, entre tantos outros fatos relevantes da nossa história política na monarquia.

 

É que a Guerra do Paraguai, a questão da maioridade e outros fatos análogos são episódios definitivamente relegados para as cogitações meramente históricas, já não exercendo, sobre os fatos e as idéias do Brasil contemporâneo, qualquer espécie de influência, ao menos direta.

Algum separatista poderá objetar, é certo, que não deveria eu ter preferido estas questões aos movimentos revolucionários da regência e do Segundo Império, que projetam luz singular sobre o problema da unidade brasileira.

A meu ver, porém, tal não se dá. Os movimentos separatistas, no Brasil, têm apenas servido para provar a força de nossa coesão nacional, pela perfeita soldadura que se estabelece, logo que cessado o conflito, entre a região insurrecta e a grande Pátria brasileira.

Aliás, o caráter regionalista de tais movimentos é freqüentemente deturpado pelos maus intérpretes, que lhes emprestam matizes separatistas inexistentes.

Foi o que se deu, por exemplo, com a Revolução Paulista de 1932, em que São Paulo se levantou para reconquistar para o Brasil o regime legal, movido pelo intuito, portanto, de fazer uma obra de sentido marcadamente nacional, e não separatista; e em que não faltou, entre os adversários do movimento, quem procurasse ver nele finalidades separatistas, apregoando-as em todo o Brasil por intermédio de falsas irradiações, com o manifesto propósito de o impopularizar e de obter contra ele a solidariedade das tropas nordestinas. Não vejo, pois, especial importância nas revoluções do Império.

A questão religiosa e a questão militar, pelo contrário, se revestem de importância muito maior, pois que, a meu ver, na raiz de todas as perturbações da nossa vida política presente estão estas duas velhíssimas questões que determinaram a queda do Império, e que a República não soube resolver.

* * *

Dizem os médicos que as grandes moléstias produzem, freqüentemente, apenas pequenos sintomas.

Por esta razão, quando o doente procura pelo médico, é porque o mal já conquistou insidiosamente todo o organismo, tornando difícil senão impossível a cura.

Foi o que se verificou entre nós. Duas questões gravíssimas, que afetariam interesses vitais para qualquer país, passaram durante todo o Império e a República quase inteiramente despercebidas.

Na vida moral, intelectual, artística e social de um país, a religião tem uma influência preponderante, pois que ela preocupa o espírito humano exatamente na mais nobre esfera de suas cogitações, e da solução que um povo dá ao problema religioso depende toda a orientação das suas múltiplas atividades. Qualquer erro neste terreno pode acarretar conseqüências gravíssimas, e desde que penetre neste terreno o vírus da anarquia e da desordem, está comprometido, próxima ou remotamente, o destino do País.

Por outro lado, a questão militar ocupa também importantíssimo lugar. Se se permitir que o desprezo pelo militar conquiste os civis, teremos um exército de sicários vis que, tendo perdido a noção da dignidade de suas funções, já habituado ao desprezo público, outra coisa não procura senão desforrar-se de sua situação de inferioridade pela conquista do poder.

Se, pelo contrário, o desprezo pelo poder civil invade as classes militares, as Forças Armadas passarão a ser pepineiras de pretensos Lycurgos ou Solons, desejosos de tutelar a nação, impondo-lhes ingênuos sistemas de governo, fabricados com todo o desplante e a sans-gêne de que são capazes, em matéria política, aqueles que não estão habituados a estudar, em toda a sua complexidade, os fenômenos sociais e jurídicos de um país.

Se, finalmente, os civis não sabem respeitar a dignidade das classes armadas, teremos a reedição indefinida do eterno episódio de nossa história: clics de políticos oposicionistas a bater de porta em porta, nos quartéis, para convidar à indisciplina e à violação do dever de honra às classes militares, envolvendo-as em "bernardas" e conspiratas em que o exército e o Brasil só têm a perder.

Ora, questão religiosa e questão militar apaixonaram apenas ocasionalmente - embora com grande veemência - nossa opinião pública. Enquanto o Brasil todo se enchia com os ecos da Guerra do Paraguai, ou absorvia a sua atenção em acompanhar os debates parlamentares, muito poucos foram, no Império, os que colocaram em primeira plana questões tão relevantes. Os chefes de partido, os líderes da opinião e os estudiosos da época raramente lhes consagraram estudo mais profundo. Poucos viram neles sintomas de um grave desequilíbrio a ferir os alicerces da Nação. O que impressionou, tanto na questão dos bispos como nos conflitos dos ministérios com os generais do Império, foi principalmente sua repercussão no momento, e seus aspectos exteriores e acidentais.

A manifestação exterior da questão religiosa foi o "caso" de D. Vital e D. A. de Macedo Costa. O que mais debateu a opinião pública a este respeito? Foi o caso em si, e não o seu sentido profundo; deveriam os bispos ser presos ou não; competia à Coroa imiscuir-se no governo da Igreja ou não; dever-se-ia consentir nesta tentativa de emancipação do Poder espiritual em relação ao temporal, ou não; aprovaram a Santa Sé e o Superior dos Capuchinhos, de quem dependia D. Vital, a atitude deste ou não; teria ou não sido escrita a bula Gesta tua non laudantur; eis o que interessava à opinião.

Na questão militar, o mesmo se dava. Discutiam-se principalmente as minúcias dos incidentes através dos quais a questão costumava explodir. O intuito da quase totalidade dos políticos era atirar o exército contra os... ( Infelizmente, falta uma página no original disponível, não tendo sido possível encontrar o restante do artigo. )

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Lente da História da Civilização do Colégio Universitário