Plinio Corrêa de Oliveira

AMBIENTES, COSTUMES, CIVILIZAÇÕES

Depósito de livros? Ou também símbolo da dignidade do espírito?

 

"Catolicismo" Nº 119 - Novembro de 1960

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Há dois modos de se conceber uma biblioteca. Um atende só ao aspecto material. Os livros, revistas, documentos, estantes, fichários e mesas devem ser conservados com segurança contra a umidade, os incêndios, as traças, os ladrões, etc. De outro lado, documentos, revistas e livros devem ser guardados de maneira a se encontrarem facilmente. Um edifício destinado a biblioteca, concebido "funcionalmente", deve pois corresponder a esse objetivo e não deve ir além desse fim prático.

Para realçar tal noção pode-se dar ao prédio, por exemplo, uma estrutura composta de quatro corpos sucessivamente mais altos, que sugerem a idéia de conjunto de uma imensa cômoda de linhas elementares, formada por quatro partes de tamanhos diversos, destinadas a guardar respectivamente e sem confusão objetos distintos por sua natureza. E, como nos móveis do gênero, podem-se colocar escaninhos por todo lado: são no prédio as janelas. Uma forte desproporção entre as partes da "cômoda" é o tributo pago à extravagância do século.

Está descrito assim, sumariamente, o edifício da Biblioteca Municipal de São Paulo.

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Admita-se, para efeito de argumentação, que esteja por essa forma atendido tudo quanto diga respeito ao livro, à revista, ao documento, ao fichário. E o homem? Melhor: e o leitor?

Entra aí a outra maneira de ver o edifício ideal para uma biblioteca. Concedido tudo quanto é necessário aos objetivos práticos, é preciso entretanto levantar as vistas mais alto. O prédio deve exprimir o aspecto fundamentalmente nobre do mister de ler e de estudar. Ele deve estar em relação com a hierarquia de valores que coloca, em certo sentido, o pensamento no ápice das atividades humanas, precedido apenas pela oração. E por isto deve o edifício ter, quanto possível, uma magnificência régia.

É a esta concepção que corresponde a biblioteca de Coimbra, construída na primeira metade do século XVIII.

Os livros, esplendidamente encadernados, estão dispostos em imensas e sólidas estantes, todas numeradas, onde podem ser facilmente classificados e encontrados. Com os recursos da época, era o que podia haver de "funcional". Mas por outro lado a suntuosidade da decoração tem algo de palácio e algo de igreja. O quadro do Rei de Portugal, D. João V, ao centro, ao mesmo tempo que presta homenagem ao monarca a quem se deve o prédio, põe em relevo quanta consideração tem aos estudiosos aquele que constitui o mais alto degrau na hierarquia política e social.

O edifício não atende só a um objetivo material, isto é, guardar papéis, pergaminhos, estantes, etc., mas também a um objetivo espiritual: realçar aos olhos de todos o prestígio do intelectual, tanto na ordem natural das coisas, quanto, conseqüentemente, na hierarquia de valores da sociedade temporal.

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Talvez objetasse alguém que a Biblioteca Municipal de São Paulo tem uma grandeza monumental que de algum modo constitui homenagem à intrínseca nobreza da vida intelectual.

A objeção não colhe. A nobreza não é um valor estritamente funcional, e não pode, pois, exprimir-se inteira e adequadamente, nem em termos de funcionalidade, nem em termos de tamanho. A nua e mera funcionalidade convém talvez às edificações de caráter industrial, em que a obtenção do produto preside a toda a concepção arquitetônica. Não, porém, a edifícios destinados a atender finalidades que, tendo embora algo de prático, transcendem entretanto do mero domínio da prática. No que diz respeito à quantidade, nela não se exprime tão adequadamente a nobreza, quanto na qualidade.


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