Plinio Corrêa de Oliveira

AMBIENTES, COSTUMES, CIVILIZAÇÕES

Paz de alma no Tabor

e no Calvário

 

"Catolicismo" Nº 111 - Março de 1960

Bookmark and Share

 

O presente comentário constitui uma tentativa para ilustrar, dentro da linha típica desta seção, a Mensagem de natal do Santo Padre João XXIII ( vide "Catolicismo", nº 110, de fevereiro de 1960 ). Magnífica Mensagem, na verdade, de um Papa que em tão pouco tempo já se impôs à consideração de todos como um grande Papa; mas Mensagem que, para ser inteiramente assimilada pelo contemporâneo, tão exposto a influências contrárias, precisa ser comentada e lembrada a cada passo.

De certa forma, duas verdades constituem como que as colunas sobre que se baseiam os múltiplos ensinamentos daquele documento.

a) - a paz é indivisível; para existir na esfera internacional, precisa existir também em cada país ( na esfera política, social e econômica, na família, na cultura, em todos os terrenos enfim ) e principalmente no interior de cada pessoa;

b) - essa paz, que é a tranqüilidade da ordem, só em Nosso Senhor Jesus Cristo, e pois na Santa Igreja, sua Mística Esposa.

Parece-nos interessante ilustrar com duas fotografias a noção de paz de alma, essa paz que o homem moderno procura e não encontra, e que entretanto está a dois passos dele, no recesso amoroso da única e verdadeira Igreja de Deus.

*   *   *

Um amanhecer no pátio interno do Convento de Saint-Gildard. Casa Mãe das Irmãs da Caridade de Nevers na França. A essa Congregação, correntemente chamada das Irmãs da Caridade de Nevers, pertenceu Santa Bernadette. A vida religiosa da vidente de Lourdes transcorreu precisamente nessa casa, e foi entre suas paredes benditas que ela exalou seu último suspiro.

Ordem grave, profunda e entretanto radiosa tranqüilidade na natureza, serenidade das linhas arquitetônicas da fachada... as folhas dos imensos castanheiros dir-se-iam lâminas delgadíssimas de prata ou de cristal, nas quais se condensam os raios solares castos e jubilosos desse esplêndido amanhecer. Paz, enfim, uma grande paz natural nesse ambiente onde a presença de uma religiosa, como se fora a de um Anjo, parece trazer como riqueza transcendental, algo da paz sobrenatural indizivelmente mais preciosa que habita na alma dos filhos da luz.

E assim como os raios solares, penetrando nas folhas, parecem transformá-las em gotas de sol, dir-se-ia que a paz da natureza e, sobretudo, a paz inefável da graça penetram na alma dessa Religiosa, transformando-a como que numa personificação ou num símbolo vivo da paz interior.

Quando Santa Bernadette passeava por este jardim, quem sabe se todas essas austeras e doces magnificências a ajudavam um pouco a lembrar-se da figura indescritivelmente bela, toda inundada de paz sobrenatural, d’Aquela que o Apocalipse (12, 1) descreve como a Mulher vestida de sol, do sol da verdadeira paz, que é o dom das almas unidas a Deus.

O que são, perto das alegrias dessa paz de alma, as correrias, a agitação, as tempestades passionais, as angústias, a que o mundo, sempre mentiroso, chama de alegria?

É para essa paz que, como novo João Batista, o grande Pontífice que Maria Santíssima nos deu quer preparar todos os homens.

É a paz do Tabor.

Pensando nisto, teríamos o desejo de dizer à humanidade as palavras de Nosso Senhor à Samaritana: "Se conhecesses o dom de Deus"... ( Jo. 4, 10 ).

*   *   *

Não é porém só para a paz do Tabor que nos convida o Vigário de Cristo. É também para a paz do Calvário.

"Ecce in pace amaritudo mea amarissima". Essa frase do Rei Ezequias ( Isai. 38, 17 ) costuma ser transcrita junto a estampas representando Nosso Senhor ou Nossa Senhora durante a Paixão.

Quem sabe vislumbrar através dos traços de uma fisionomia um estado de alma não pode deixar de pensar que essas palavras mereceriam estar escritas ao pé desta segunda fotografia, que nos mostra uma figura sorridente mas indizivelmente dolorosa.

O sorriso não procura esconder a dor, mas afirmar-se por um prodígio de virtude, de fidelidade à graça, apesar da dor. Os lábios sorriem só porque a vontade quer que eles sorriam, e a vontade o quer porque essa alma tem fé, e sabe que depois das provações e das trevas desta vida terá como prêmio Aquele que disse de Si: "Serei Eu mesmo vossa recompensa demasiadamente grande" (Gen. 15, 1). Essa recompensa será Aquele de quem Santa Teresa de Ávila proclamou: "Ainda que não houvesse Céu eu Vos amara, ainda que não houvesse inferno eu Vos temera". Nessa alma há ordem, e há aquela tranqüilidade inconfundível que vem da ordem: apesar de um oceano de dor, há verdadeira paz.

De um oceano de dor, dizíamos. Um desses oceanos de aridez e sofrimento tão grandes que não cabem na terra, e só em uma alma católica e generosa podem caber.

Vítima do Amor misericordioso, Santa Teresinha se oferecera em holocausto, e esse holocausto fora aceito. Ela estava a dois passos da morte, por efeito de uma moléstia implacável, e provas interiores misteriosas e terríveis enchiam sua alma. Dias antes de morrer, escreveu. "O demônio anda em volta de mim: não o vejo, mas sinto-o, porque me está atormentando e segurando-me com mão de ferro, sem me deixar o menor alívio, para com a força das dores me fazer desesperar... Quão necessária é aquela oração de completas: "Livrai-nos, Senhor, dos fantasmas da noite" (Hist. de uma Alma, cap. XII).

É toda essa dor que se exprime no olhar luminoso e triste, que parece chorar enquanto os lábios sorriem.

É uma tristeza ordenada, sem revolta, nem sentimentalismo, nem vaidade. Uma tristeza que na mera criatura lembra o divino modelo da tristeza profunda, mas santamente sujeita à vontade divina, do Cordeiro de Deus.

Junto à Santa, dois símbolos: o lírio e a cruz fria e nua de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Ai está a tranqüilidade da ordem, em meio à aridez e à dor.

E ainda aqui, se poderia dizer à humanidade: "Se conhecesses o dom de Deus..." ( Jo. 4, 10 ).

*   *   *

Se todas as almas, na alegria como na dor, procurassem a paz verdadeira, então sim, o mundo teria essa paz que não é Kruchev que lhe poderá dar.

Mas, dirá alguém, isto é para Freiras. Objeção ignóbil e ridícula, como a do indivíduo que, vendo um regimento desfilar com garbo ou morrer com bravura, dissesse: "Patriotismo não é comigo. É coisa para soldado".