Publicamos hoje quatro clichês,
dois quais dois reproduzem obras de arte do séc. XV, e os outros dois
obras de nossos dias.
Os
dois quadros do séc. XV são da autoria de Giovanni da Fiesole, o famoso
Fra Angélico, e representam respectivamente a Anunciação de Nossa Senhora,
e S. Domingos em oração.
O trabalho em metal é da autoria
do artista H. Breucker, e também tem por tema a Anunciação. A escultura de
A. Wider, outro artista contemporâneo, representa São Bento, o Patriarca
dos Monges do Ocidente.
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Já que nossa secção é
eminentemente comparativa, entremos em matéria comparando as duas
Anunciações.
A cena famosa da aparição do
Arcanjo S. Gabriel a Nossa Senhora constituiu para a humanidade uma hora
de graça. Abriu-se o Céu que a culpa de Adão havia cerrado, a dele baixou
um espírito de luz e pureza, trazendo consigo uma mensagem de
reconciliação e de paz. Essa mensagem se dirigia à criatura mais formosa,
mais nobre, mais cândida e mais benigna que nascera da estirpe de Adão.
Postas em presença as duas Pessoas, o diálogo se estabelece. Conhecemos
pelo Evangelho qual foi a elevação e a simplicidade inefável das palavras
então pronunciadas. Tratando de tal tema, a tarefa do artista consiste em
exprimir nas fisionomias, nas atitudes, nos gestos, no ambiente, nas
cores, nas formas, os valores morais do incomparável acontecimento.
Se tivéssemos impressão a cores,
nossos leitores poderiam sentir melhor quanto Giovanni da Fiesole foi
feliz neste objetivo. A nobreza própria à natureza angélica, sua fortaleza
leve e toda espiritual, sua inteligência e pureza, tudo enfim se espelha
admiravelmente na figura altamente expressiva de S. Gabriel. Nossa Senhora
é menos etérea, menos leve, menos impalpável diríamos quase. E com razão,
pois é criatura humana. Entretanto, um que de angélico se nota em toda a
compostura da Rainha dos Anjos. E sua fisionomia excede em
espiritualidade, nobreza e candura a do próprio emissário celeste.
Descrito assim cada um dos personagens, consideremos a atitude de um e
outro. O Anjo é superior a Nossa Senhora por natureza. Entretanto a Virgem
é superior ao Anjo por sua santidade, e por sua incomparável vocação de
Mãe de Deus. Daí a alta dignidade que ambos - a Virgem e a Anjo -
exprimem, e também a recíproca veneração com que se falam. Mas esta
atitude tem ainda outra razão mais profunda. Invisível, Deus entretanto
manifesta Sua presença na luz sobrenatural que parece irradiar de ambos os
personagens e comunicar o esplender de uma alegria pura, tranqüila,
virginal, a toda a natureza. Sente-se
quase a temperatura suavíssima, a brisa levíssima e aromática, a alegria
que perpassa em toda a atmosfera. Como pintar melhor uma hora de graça?
Com um senso profundo das coisas, Fra Angélico soube encontrar as linhas e
cores necessárias para exprimir todo o conteúdo teológico e moral do
episódio evangélico mil vezes famoso. Seu quadro é, porém, mais do que
isto: vale por uma pregação, pois forma, eleva, anima para o bem, quem o
contempla.
Antítese berrante de tudo isto é a
Anunciação moderna. Se um débil mental ou um doente com muita febre se
pusesse a divagar sobre a Anunciação, concebê-la-ia talvez assim.
Extravagância suma, carência dos valores mais rudimentares, de qualquer
expressão já não diremos elevada ou sobrenatural, mas simplesmente
equilibrada e sadia, tudo enfim se conjuga para fazer da obra moderna a
antítese brutal chocante do quadro do século XV. Este é uma maravilha de
espiritualidade e de fé. A outra é produto de uma mentalidade que não sabe
ver senão a matéria, de uma psicologia fechada ao sobrenatural, de um
temperamento que se compraz plenamente em horizontes sem beleza, sem
nobreza, sem nada daquilo que para a alma é luz, oxigênio, vida, esperança
de eternidade.
Em sua alocução de 24 de maio de
1953, o Santo Padre define o chamado espírito moderno como "o
pensamento materialista transposto na ação". A arte de que temos aqui
um espécime é o pensamento materialista transposto na arte.
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Consideremos
agora o quadro que representa S. Domingos. Os elementos espirituais nele
transparecem admiravelmente. É mais um retrato da alma que do corpo. O
esforço do pensamento, isto é a aplicação na leitura, a tensão serena mas
forte do trabalho intelectual, a expressão fisionômica própria a quem está
entendendo e nisto se compraz, tudo enfim se exprime aqui com uma
discrição, uma intensidade, uma veracidade sem par. E há ainda outros
traços de alma que transparecem: o ânimo e o viço do espírito juvenil, o
equilíbrio, a candura, a piedade e a temperança do perfeito religioso.
Em
face desta outra obra prima do séc. XV, consideremos a estátua no séc. XX.
Por certo tal comparação mostra diferenças consideráveis, decorrentes de
varias fatores: a) os recursos da pintura e da escultura são diversos; b)
os talentos e o temperamento dos artistas são diversos também; c) por fim,
o espírito dos dois personagens, S. Domingos e S. Bento, também não é o
mesmo. Mas há choque, oposição, violento contraste? De modo nenhum. Merece
a escultura de A. Wider as censuras que fizemos à obra de H. Breucker?
Não.
Pelo contrário, aquela estátua
exprime com muita propriedade, precisão e força a idéia que se pode ter do
Patriarca dos Monges do Ocidente: modelo de gravidade, de austeridade, de
tranqüilidade varonil, de profundo recolhimento, de alta sabedoria.
Ninguém pode negar que esta escultura corresponde satisfatoriamente às
exigências de uma arte autentica e de uma piedade ortodoxa e equilibrada.
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Somos contra o "moderno"? Por esta
palavra se entende o que é, não só próprio, mas típico de nossa época,
algo que: a) lhe é inerente; b) a diferencia do passado; c) a distinguirá
do futuro. Ora, em matéria de arte - e em muitas outras - uma propaganda
hábil, pertinaz, onímoda, vai inculcando cada vez mais certo espírito de
materialismo, de sensualidade, de extravagância delirante. O estilo
animado por este espírito preside à construção ou reconstrução de cidades
inteiras, marca em todas as partes do mundo o aspecto externo e a
decoração interior da maioria dos edifícios novos de importância grande,
media ou até pequena, expõe suas produções em certames de arte universais,
etc., etc.. Contra ele, o "homem da rua" contemporâneo reage
instintivamente, mas levemente. De sorte que esse espírito ou já é ou está
a caminho de ser o estilo de nosso século, por onde este se diferencia dos
anteriores e queira Deus dos posteriores. Se a isto e só a isto se chama
moderno, se ser moderno é aceitar a marca, o estigma do materialismo, não
só do materialismo cru, mas do materialismo "moderado" com todas as suas
colorações e despistamentos, então é inegável que somos antimodernos
porque somos católicos.
Mas se se toma em conta que, à
margem dessa péssima corrente nosso século conta com artistas animados por
outro espírito, e se entende que é moderno tudo quanto é contemporâneo
qualquer que seja sua inspiração, não podemos ser antimodernos porque não
somos idiotas. Pois outro qualificativo não mereceria quem no oceano da
produção cultural do séc. XX julgasse preconcebidamente mau,
indistintamente mau, o que é engendrado pelos filhos da luz, e as obras em
que se nota a influência do espírito neopagão, isto é, do espírito das
trevas.
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Destas duas acepções de "moderno",
qual a mais verdadeira? É um problema de palavras. Todavia uma coisa é
positiva: se o estilo materialista não se deve chamar "moderno",
deve-se-lhe arranjar outro nome, pois ainda não apareceu. E este nome
deverá levar em conta que a torrente "moderna" contém não só os
ingredientes materialistas de que falamos mas ainda os elementos gnósticos
e satanistas de que nosso brilhante colaborador Cunha Alvarenga tão bem
tem tratado.
Dar nome a esta corrente é tarefa
interessante, para a qual convidamos a sagacidade de nossos leitores.
Entretanto, o mais urgente não é
isto. O "homem da rua" do séc. XX ainda não aderiu ao "moderno" no fundo
de sua alma. Preservemo-lo desta desgraça. Assim seremos "modernos" no
sentido de que agiremos em função dos problemas e perigos de nosso século.
É o que nesta folha procuramos
fazer, em meio ao estrépito de muitos aplausos, e ao rosnar surdo e
furioso de alguns ódios, mas certos, em qualquer caso, de cumprir um dever
sagrado.
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