Plinio Corrêa de Oliveira

 

Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana

 

Apêndice à edição Norte-Americana

Setembro de 1993

 

ESTADOS UNIDOS: NAÇÃO ARISTOCRÁTICA NUM ESTADO DEMOCRÁTICO

 

 

VIII

 

AS ELITES APÓS A GUERRA CIVIL

 

1. Revolução social conseqüente à Guerra Civil

A Guerra Civil foi uma encruzilhada, um marco na vida norte-americana. A vitória do norte configurou para sempre qual seria, daí em diante, o perfil da elite nacional norte-americana. A guerra acelerou o processo de industrialização e transformou profundamente a face da nação.

Nesse sentido ela foi também uma revolução social, uma colisão entre dois modos de vida, entre duas mentalidades. Ela subjugou a classe dos plantadores, que tendiam a uma ordem social tradicional, e impôs o capitalismo industrial como o regime sócio-econômico no qual as elites norte-americanas subseqüentes deveriam viver. E acima de tudo, influiu possantemente sobre a formação do tipo humano que serviria de modelo para futuras elites.

Realmente, mais importante que o prejuízo econômico foi a desmoralização do tipo humano do plantador, o desmantelamento do seu estilo da vida, do poder e da influência das elites tradicionais no sul: "O antigo patriciado sulista sofreu um desastre abrupto com a Guerra Civil. A tradição militar, o mito do cavaleiro, a determinação de defender a civilização sulista, as atitudes da elite realçando as obrigações especiais para proteger a ordem social, a coragem de liderar o combate e de enfrentar o perigo, tudo isso estimulou os aristocratas a se oferecerem para a luta armada.... Uma boa parte de sua aristocracia, que poderia ter liderado e sustentado a classe nas décadas subseqüentes, desapareceu na primavera da vida. O alto índice de mortalidade e uma grande destruição das propriedades, como resultado do conflito, que se desenrolou principalmente no sul, traumatizaram a classe alta e impediram uma restauração dos patrícios após a Guerra". (Frederick Jaher, The Urban Establishment, p. 399)

Mesmo após a humilhação da derrota e as penosas conseqüências que dela advieram, os hábitos de deferência para com a antiga classe dos plantadores permaneceu. "Cada comunidade tinha seu grande homem, ou seu pequeno grande homem, em torno do qual se reuniam seus conterrâneos quando desejavam alguma informação, e cujos monólogos eles ouviam com um respeito próximo à humildade". (George Tindall, America: a Narrative History, p. 715)

O norte, vitorioso na guerra, acelerou muito o impulso rumo ao capitalismo industrial. A transformação econômica e social dos Estados Unidos numa nação industrializada e dominada pelas elites urbanas e industriais daquela região, já em processo antes de 1860, chegou à sua plenitude na segunda metade do século XIX, como afirmam Dye e Zeigler: "A importância da Guerra Civil, para a estrutura das elites nos Estados Unidos, foi a posição de comando que o novo capitalista industrial conseguiu durante a luta.... Enquanto os plantadores sulistas eram removidos do cenário nacional, o governo em Washington tornou-se o domínio exclusivo das novas elites industriais". (Dye and Zeigler, The Irony of Democracy, p. 73)

Desta época em diante as elites tradicionais do sul ocuparam uma posição secundária em relação às elites industriais e financistas do norte. "A Guerra Civil reforçou muito o poder da aristocracia do norte, e deu às elites daquela região um grau de poder político nacional que elas até então jamais tiveram". (Douglas T. Miller, Jacksonian Aristocracy - New York, Oxford University Press, 1967, p. 180)

2. Os novos ricos e as elites tradicionais

Durante o meio século seguinte à Guerra Civil, a industrialização e o crescimento econômico lançaram nas fileiras das elites um grande número de novos ricos, cujas fortunas muitas vezes amesquinhavam a riqueza das gerações precedentes. Porém, a precedência social permaneceu com as antigas famílias.

A realidade desta linha divisória entre as antigas e as novas famílias é indicada por Herbert von Borch: "As antigas famílias, cuja fortuna data de época anterior a 1860, e que por isso são ricas há três ou quatro gerações, têm uma precedência social inquestionável. As grandes fortunas, que fizeram de alguns americanos os homens mais ricos do mundo, só foram feitas com a industrialização do país em escala continental, entre a Guerra Civil e a Primeira Guerra Mundial". (Herbert Von Borch, The Unfinished Society, p. 217)

Equipados com fortunas aparentemente inesgotáveis, desejando um estilo de vida refinado e um status social equivalente ao das elites tradicionais, os novos ricos da época proporcionaram espetáculos sem precedentes de ostentação e de esbanjamento.

Esta proliferação de novos ricos, pelo triunfo do industrialismo, provocou uma reordenação da classe alta norte-americana, sem reduzir a estratificação social, com o aparecimento de novas elites mais em sintonia com uma sociedade industrial.

"Após a Guerra Civil as aristocracias familiares e provinciais da costa leste dos Estados Unidos foram eventualmente substituídas por uma plutocracia associativa, exclusiva e competitiva, originada após a Guerra Civil, e que continua até hoje. Tal como ocorreu com muitas outras coisas na vida norte-americana, a década de 1880 testemunhou uma transformação na estrutura da classe alta". (Digby Baltzell, Philadelphia Gentlemen, p. 18)

Mais que uma substituição, o que houve realmente foi uma fusão entre as duas elites: "Nas metrópoles americanas, durante as duas décadas finais do século XIX, as aristocracias locais de berço e de educação fundiram-se com aquele mundo novo e mais colorido, conhecido como ‘sociedade’. Enquanto os milionários se multiplicavam e tinham que ser aceitos, e perdia-se a pista para saber ‘quem’ eram as pessoas e ‘o que’ valiam, o Registro Social tornou-se o índice de uma nova classe alta nas metrópoles americanas". (Digby Baltzell, Who’s Who in America and the Social Register, in: Class, Status and Power, Reinhard Bendix and Seymour Martin Lipset, eds. - New York, The Free Press, 1966), p. 274)

Max Lerner, porém, realça mais o aspecto do domínio da nova elite nacional das grandes metrópoles sobre as elites sociais das pequenas cidades: "O aparecimento de uma classe alta constituída por famílias de novos ricos transformou o mais alto nível do status social americano, tanto nas grandes como nas pequenas cidades, e introduziu um fermento de novos padrões morais. Anteriormente havia cidades que se vangloriavam de suas Old Families e de seus círculos fechados, em virtude do nascimento e da posição.... Porém, progressivamente, esta ‘sociedade’ local foi sendo subordinada aos centros de poder e aos ambientes sociais das grandes cidades, onde as celebridades se reúnem, o Registro Social classifica e homens tomam decisões para todo o país". (Max Lerner, America as a Civilization, p. 482)

3. A Revolução Industrial

a. A Revolução Industrial nos Estados Unidos

Nos anos subseqüentes à Independência, a vida sócio-política e econômica da nação foi marcada por um contínuo debate dentro das elites norte-americanas sobre a via que a nova república deveria seguir em seu desenvolvimento. De um lado estavam os que defendiam uma economia manufatureira e comercial, enquanto outros proclamavam que o bem-estar da nação só seria alcançado com a realização do ideal de uma sociedade predominantemente agrária, onde os produtores auto-suficientes fossem a maioria.

Embora na primeira metade do século XIX tanto o norte quanto o sul fossem afetados pelas forças que deram origem à Revolução Industrial, a vida social e econômica de ambas as regiões não reagiu da mesma maneira a tais forças.

O norte tornou-se cada vez mais voltado para o progresso e o bem material, mais urbano, mais industrializado e com uma economia mais diversificada.

No sul, a economia permaneceu, em boa medida, enraizada no regime das plantações. Era uma economia agrícola, que produzia matéria-prima para os mercados interno e externo, conjugada com uma quase auto-suficiência da propriedade rural no que diz respeito aos artigos de uso diário. Este último tipo de produção estava fora da economia de mercado. Com os lucros auferidos pela venda da matéria-prima agrícola, os plantadores compravam, no norte ou na Europa, artigos de luxo que não podiam produzir.

As cidades que surgiram no sul, ao contrário daquelas do norte, eram "um complemento do sistema das plantações, e não centros independentes de inovação social e econômica". (I.A. Newby, The South, p. 126)

Com a Guerra Civil, porém, o modelo sócio-econômico da Revolução Industrial foi imposto a todo o país. A migração de grande número de habitantes das áreas rurais para as cidades, concomitantemente com um maciço fluxo imigratório, transformou os hábitos e abalou os fundamentos de uma economia de base quase exclusivamente na vida rural.

b. Uma transformação de mentalidade

Porém, mais ainda que uma transformação de hábitos e de estruturas sócio-econômicas, a Revolução Industrial ocasionou o aparecimento de uma nova mentalidade, laica e pragmática, voltada principalmente para os problemas concernentes ao conforto e ao progresso material. E assim, com uma impostação diferente em relação aos problemas ideológicos e religiosos.

De fato, os mentores e dirigentes da Revolução Industrial difundiram a idéia de que o melhor para o país seria um progresso material rápido e pujante, obtido através da industrialização da produção. Um ilimitado progresso científico e tecnológico deixaria num segundo plano os debates e as desavenças sobre questões de ordem ideológica ou religiosa, as quais só serviriam para causar atritos e divisões entre os diversos setores da população, em prejuízo do bem comum. A promoção do culto da máquina — enquanto símbolo do progresso material e da riqueza que daí advém — seria a melhor maneira de manter a paz social e a concórdia entre as classes, tornando possível o que antes só era conseguido pela moral e pela religião.1

1 - Segundo Christopher Lasch, "a idéia de progresso, de acordo com uma interpretação comum, representa uma versão laicizada da crença cristã na Providência. Carl Becker apresenta a mesma idéia em outros termos: "Não é por acaso que a crença no progresso e a preocupação pela vida terrena cresceram na proporção em que a crença na Providência e a preocupação pela vida futura diminuíram". (In: Christopher Lasch, The True and Only Heaven - New York, W.W. Norton and Company, 1991, p. 40)

Porém, um mero progresso material laico tira o senso dos problemas religiosos. A laicização da ordem temporal — ou seja, sua velada ateização — produz uma transformação profunda da ordem moral e religiosa em qualquer sociedade. Como indica o sociólogo italiano Acquaviva, uma crise religiosa sempre acompanha o processo de industrialização. (Cfr. S.S. Acquaviva, The Decline of the Sacred in Industrial Society, p. XI)

A nova classe trabalhadora, integrada dentro do sistema industrial, é profundamente influenciada por um ambiente onde dominam os valores laicos e materialistas. O mundo das empresas industriais forma uma complexa rede de relações psicológicas, tudo sustentado pela ciência, pela máquina, pela tecnologia e pelas novas condições urbanas e massificadas de vida, que causam, em seu conjunto, um efeito dessacralizante sobre a sociedade. (Cfr. Idem, p. 151)

Isto aconteceu não só nos Estados Unidos, mas na maior parte das sociedades do mundo ocidental. Nelas os interesses de ordem material subjugaram os sentimentos e os princípios religiosos.

Porém, o progresso material assim obtido é falso e efêmero, porque solapa as bases de um edifício social cuja solidez é fundamentada nos valores de ordem moral e espiritual, segundo as tradições da Civilização Cristã.

A promoção desse falso progresso materialista serviria então como etapa para jogar o país em uma crise de valores morais e religiosos, que acabaria por levá-lo a um estado de coisas ainda mais revolucionário que a própria Revolução Industrial.

c. Super-produção e super-consumo — Equilíbrio e temperança

Entre as más conseqüências de ordem econômica, que surgiram com o advento da Revolução Industrial, estão a super-produção e o super-consumo.

É inegável que existe hoje em dia, especialmente nos países do chamado primeiro mundo, uma super-produção de alimentos e de muitos artigos de consumo. Esta super-produção vem, em boa medida, da idéia cândida de que produzir 500 é sempre melhor que produzir 5. Porém, uma vez produzidos os 500, não sabem o que fazer deles.

Deve ser estabelecido então um equilíbrio: nem miséria nem super-produção.

Este equilíbrio estava certamente presente em determinado tipo de regime econômico, que vigorou em épocas passadas e depois foi sendo progressivamente abolido, especialmente com o advento da Revolução Industrial.

Uma propriedade rural produzia não apenas aquilo que era colhido diretamente da terra, mas também tecidos, móveis e objetos de artesanato variado, freqüentemente de boa qualidade. Era uma produção suficientemente abundante para se viver com muita folga, e a carência era inexistente. Não havia uma super-produção desnecessária, e até prejudicial. Isso porém não impedia a venda e até a exportação do principal produto da região, cujo lucro revertia para a importação de artigos não encontrados na mesma. Nos Estados Unidos, como foi visto, este sistema teve sua expressão mais aproximada nas plantações do sul. Porém em todo o país era generalizada a propriedade familiar e rural semi-auto-suficiente. "Os americanos estavam habituados a considerar a propriedade rural familiar auto-sustentável como a norma da organização econômica e social, e o lugar onde as virtudes cívicas se desenvolviam e se manifestavam. Esse povo teve uma compreensível dificuldade em acomodar-se ao sistema de produção, de trabalho e de recompensas implantado pela industrialização". (Cfr.: The Philosophy of Manufactures - Michael Brewster Folsom and Steven D. Lubar, eds., Andover, Mass., MIT Press, 1982, p. XXII)

O consumo equilibrado controlava não só a quantidade, mas também a qualidade da produção. Este equilíbrio evitava também a formação da grande cidade e da super-indústria.

Nesse sistema de economia de base rural, havia um verdadeiro apreço pelos bens do espírito, que um lazer adequado proporciona. Não havia desejo de produzir febrilmente, mas de produzir equilibradamente. A formação religiosa assegurava ao homem, através da virtude da temperança, este senso da proporcionalidade, que o fazia desejar somente o razoável e o equilibrado.

Este desejo de equilíbrio era próprio à estrutura de espírito do homem medieval. O fim da Idade Média, o Humanismo e o Renascimento marcaram uma época em que o homem mudou de mentalidade, perdendo o senso do equilíbrio e da proporção, passando a desejar grandes riquezas, grandes destinos e grandes papéis, inteiramente desproporcionados com sua condição.

Esta apetência desequilibrada acarretou o excesso de produção e de consumo, o excesso do desejo de prazer, etc.

Quanto aos verdadeiros valores do espírito — os valores religiosos, morais e culturais — foram sendo desprezados e relegados ao esquecimento.

Assim, a aflição do homem contemporâneo para produzir, consumir e desejar desequilibradamente é fruto dessa mentalidade nascida do Renascimento e do Humanismo, que rompeu o equilíbrio interno do homem e se reflete em todos os campos da atividade humana.

d. O mito do "self-made man"

Junto com a proliferação dos novos milionários, conseqüente à revolução industrial, surgiu o mito de que tais milionários eram, em sua maioria maciça, "self-made men". Inerente nesse mito estava a idéia, difundida pelo mundo inteiro, de que a grande maioria dos bem sucedidos homens de negócios neste país, a partir da segunda metade do século XIX, era constituída por homens que haviam nascido em famílias pobres, de baixo nível social ou filhos de imigrantes, e que, pelo próprio esforço e pelas oportunidades que uma sociedade democrática e igualitária lhes oferecia, conseguiram fazer grande fortuna e atingir o nível mais alto da escala social e econômica.

Tal concepção sociológica tem sido refutada por pesquisas mais recentes. Este tipo de ascensão social, embora existisse, era raro e constituía uma anomalia.

Segundo John Ingham, as novas elites econômicas e industriais "vinham geralmente da alta classe média e de famílias de brancos, anglo-saxões e protestantes". (John Ingham, The Iron Barons: A social analysis of an American Urban Elite, 1874-1965, p. 1). O mesmo autor declara ainda: "Embora seja agradável pensar em milionários que vieram da pobreza, o fato é que a vasta maioria daqueles que ocupavam postos executivos no século XIX, e continuaram como parte de uma classe alta rica e poderosa no século XX, era originariamente de uma boa situação familiar e cultural". (John Ingham, The Iron Barons: A Social Analysis of an American Urban Elite, 1874-1965, p. 222)

Referindo-se agora aos milionários do ferro e aço, criados pela industrialização do século passado, Ingham afirma: "Os empresários do aço de Pittsburgh pouco diferiam dos homens de negócios de Filadélfia ou dos Estados Unidos em geral. Durante muito tempo houve uma idéia estereotipada sobre eles. Tal idéia via a cidade como o canteiro dos ‘milionários em mangas de camisa’, dos meninos descalços de famílias pobres, que haviam constituído grande fortuna e poder pelo esforço do seu próprio trabalho e inteligência. Porém, como este estudo vai mostrar, os homens do ferro e aço de Pittsburgh eram geralmente filhos de homens de negócios originários da alta classe média e da classe alta". (John Ingham, The Iron Barons, p. 5)

O sociólogo Robin Williams chega a conclusão semelhante em sua análise da mobilidade na sociedade norte-americana: "Os movimentos verticais de ordem profissional geralmente ocorrem passo a passo — de operário não especializado a especializado, de escriturário a gerente, e assim por diante — e não por subidas espetaculares do mito Horatio Alger ou das recentes histórias de sucesso de Hollywood.

"Estudos mais recentes mostraram que desde o início do século XIX os líderes do mundo dos negócios nos Estados Unidos vieram de famílias economicamente abastadas, numa proporção que se manteve estável por longo tempo, variando entre 3/5 e 3/4. Menos de 1/5 da elite dos homens de negócios vêm das categorias de trabalhadores, artesãos, pequenos empresários, funcionários burocratas de nível inferior ou fazendeiros". (Robin Williams, American Society - A sociological Interpretation, pp. 117, 123)

Herbert Von Borch constata que o mesmo fato continua a ser observado ao longo do século XX: "A riqueza possuída por alguém, cada vez mais se origina de uma riqueza herdada. E se torna cada vez mais raro que uma pessoa suba até a classe dos milionários partindo das classes mais baixas da sociedade. Atualmente, os self-made men constituem apenas 9% do grupo de mais alta renda; 23% têm suas origens na classe média, e 68% na classe alta, cuja riqueza provinha de longa data". (Herbert Von Borch, The Unfinished Society, p. 219)

Edward Pessen, referindo-se a outras pesquisas, afirma: "Estudos recentes a respeito do status e das origens familiares de 500 importantes homens de negócios, entre 1870 e 1900, revelaram que eles eram, em sua grande maioria, de alto nível social e de famílias extraordinariamente bem sucedidas. William Miller, ao estudar as origens dos mais importantes homens de negócios dos Estados Unidos em 1900, constata que apenas 3% deles foram meninos pobres, imigrantes ou procedentes da zona rural. E conclui ironicamente que os meninos pobres que se tornaram líderes dos negócios sempre foram mais notados nos livros sobre a história dos Estados Unidos do que na própria história americana". (Edward Pessen, Riches, Class and Power Before the Civil War, p. 79)

Por sua vez, William Domhoff também cita Miller ao afirmar: "O trabalho de William Miller e seus colaboradores, no Centro de Pesquisas de História Empresarial em Harvard, mostrou que importantes líderes do mundo dos negócios e advogados de corporações, de 1870 em diante, têm sido pessoas nascidas em famílias anglo-saxônicas de elevado status social e de religião protestante, filhos bem educados de pais norte-americanos que também eram homens de negócios ou profissionais liberais.... Os poucos casos existentes, de pessoas que passaram da pobreza para a riqueza, trombeteados pelos meios publicitários e aceitos sem espírito crítico por alguns historiadores de uma geração anterior, constituíram raras exceções, e não a regra geral". (William Domhoff, The Higher Circles, the Governing Class in America, p. 73)

Também Seymour Martin Lipset e Reinhard Bendix indicam, em seu exaustivo estudo sobre a mobilidade social numa sociedade industrializada, que essa mobilidade nos Estados Unidos tem-se mostrado muito pouco diferente daquela observada nas sociedades industriais de outros países, como os da Europa Ocidental. (Cfr. Seymour Martin Lipset and Reinhard Bendix, Social Mobility in Industrial Societies, p. 13)

4. As instituições privativas: preservação e assimilação

Na reordenação da estrutura social da classe alta, os antigos hábitos e modos de vida das elites tradicionais foram sendo institucionalizados em associações onde a tradição das classes altas mais antigas modelava os estilos de vida e as aspirações das elites mais recentes. Essas instituições "estruturaram este processo de assimilação, fornecendo meios e modos para que os antigos e novos ricos pudessem jogar, aprender e praticar juntos o mesmo culto". (Digby Baltzell, Philadelphia Gentlemen, p. 10)

John Ingham também descreve a emergência de instituições da classe alta para conter e assimilar os novos ricos: "Muitas instituições de classe alta surgiram com esta finalidade. Eram instituições que agrupavam moradores de um mesmo bairro e também igrejas exclusivas da classe alta, o que não constituía propriamente uma novidade na época, pois apresentava antecedentes. Havia também instituições educativas e clubes sociais exclusivos, os quais eram relativamente novos no cenário da classe alta. Estas instituições formais uniram-se a uma instituição informal mais antiga — o casamento — para estabelecer um sistema complexo, razoavelmente lógico, pelo qual as novas elites eram selecionadas, rotuladas e classificadas de acordo com o status. O sistema também estabeleceu com nitidez graus e estados que a nova elite teria que escalar antes de ser admitida àquela área mais fechada da assimilação social, ou seja, o casamento dentro das "melhores" e mais antigas famílias". (John Ingham, The Iron Barons, pp. 84-85)

Digby Baltzell explica como o modo de ser da classe alta tradicional foi transmitido pelas suas instituições educacionais privativas: "No decurso do século XX.... as escolas privativas da Nova Inglaterra, e as universidades do leste mais na moda, começaram a educar uma classe alta que procedia de todo o país. Estas instituições ensinavam aos filhos dos novos ricos e dos antigos — fossem eles de Boston, Baltimore, Filadélfia ou San Francisco — os matizes sutis do modo de vida da classe alta". (Digby Baltzell, Philadelphia Gentlemen, p. 10)

Assim, embora as elites tradicionais não tivessem mais a influência política de antigamente, sua influência social continuou a mesma, em virtude das instituições educativas que fundaram: "A classe alta aristocrática, da época colonial do nordeste, havia se retirado de uma participação direta na vida política, em meados do século XIX. Porém ela passou a dirigir instituições educativas, que orientaram socialmente gerações posteriores de elites de diversas origens. Deste modo ela continuou a deixar sua marca nas elites da era industrial". (George Marcus, Elite Communities and Institutional Orders, in: Elites: Ethnographic Issues - Albuquerque, New Mexico, University of New Mexico Press, 1983, p. 43)

a. Trusts e fundações familiares

Os antigos patrimônios familiares foram protegidos contra a sua dissolução por um sistema de "trustes" familiares. No "trust" o patrimônio familiar é conservado íntegro, e administrado em benefício dos membros da família em conjunto. Isto permitiu, ao longo das gerações, a manutenção do status econômico e da coesão familiar, e, conseqüentemente, de suas tradições.

Tal realidade é apresentada por George E. Marcus em seu estudo sobre a preservação do patrimônio das famílias da classe alta norte-americana: "A família, organizada burocraticamente pelos trusts, estava agora subordinada, como unidade social, às instituições que ela criara, e que assumiram as suas funções. Os trusts e as fiduciárias preservaram as famílias organizadas, porém as marginalizaram, enquanto unidades, para os setores colaterais das atividades financeiras, ao mesmo tempo que liberavam seus membros para assumir profissões e ocupar posições de liderança no novo complexo das instituições culturais e financeiras".(George E. Marcus, Idem, p. 238)

Este processo estritamente legal, utilizado primeiramente pela elite tradicional de Boston na década de 1820, foi plenamente desenvolvido a partir da década de 1880. Tornou-se então um precioso instrumento para a preservação do patrimônio de muitas famílias da classe alta tradicional, em meio às transformações da era industrial, através das gerações até nossos dias. (Cfr. George E. Marcus, Idem, p. 230)

Em alguma medida, a existência dos "trustes" familiares tornou virtualmente obsoleta a noção da riqueza individual, entre as grandes fortunas do país. Para efeitos práticos, a maioria das fortunas familiares está na posse de famílias, e não de indivíduos. Em certo sentido elas são uma propriedade coletiva de toda a família. (Cfr. Michael Patrick Allen, The Founding Fortunes - New York, Truman Talley Books, 1987, p. 103)

A fundação filantrópica, ilimitada em sua duração e oferecendo consideráveis vantagens fiscais, também forneceu uma estrutura institucional para inúmeras modalidades de serviço público e para a "legitimação moral" das dinastias familiares. "A fundação filantrópica que apoiava as profissões liberais e a educação tornou-se o lugar adequado no qual a perpetuação de certas famílias pôde ser realizada". (George E. Marcus, Idem, p. 239)

Com os patrimônios assegurados em "trustes" familiares, e administrados por profissionais que os aplicam em grandes empresas, pode-se falar hoje de uma classe alta com uma inegável continuidade.

Essa continuidade, fruto da eficácia de suas instituições, proporciona a essa classe uma influência e um prestígio crescentes, no mundo marcado pelo signo de um igualitarismo democrático. William Domhoff, referindo-se às fases mais recentes da evolução das classes altas norte-americanas, declara: "Nos Estados Unidos ‘os ricos’ não são um punhado de excêntricos insatisfeitos, jet setters e últimos rebentos de antigas famílias decadentes, que foram empurrados de lado pela ascensão de grandes sociedades anônimas e de burocracias estatais. Em vez disso, eles são membros plenos de uma florescente classe social, que se encontra em tão boas condições como ela sempre esteve". (William Domhoff, The Powers that Be - New York: Random House, 1978), p. 4).2

2 - O juízo popular favorável às dinastias locais e regionais é indicado na reportagem de capa "The Rich in America", de Paul Gastris, em: U.S. News and World Report, Novembro/1991: "Enquanto os nababos da distante Wall Street podem ser rejeitados, as dinastias das cidades do interior tendem a inspirar reverência, respeito, e mesmo afeto.... Elas não são nomes famosos no país. Porém, em suas respectivas cidades, são celebridades de incomparável poder". (p.40)