Plinio Corrêa de Oliveira

Plinio Corrêa de Oliveira

Os dedos do caos

e os dedos de Deus

 

"Catolicismo", n° 499, Julho de 1992, págs. 11 e 12 (www.catolicismo.com.br)

 

Há não muito tempo, quem dissesse que o mundo vai imergindo no caos, seria ouvido com displicência: como dar crédito a tal previsão, à vista da prosperidade e da boa ordem que pareciam reinar no Ocidente? Como se o mundo não ocidental não fizesse parte do planeta, pelo que bastaria a boa ordenação da Europa e da América, para se dizer que tudo ia bem, e o caos era impossível.

Conceituava-se então o caos como um catastrófico auge de todas as desordens e desgraças. Como admitir, então, que de uma situação "evidentemente" ordenada pudesse originar-se tal paroxismo de desordem? Tal seria a refutação, aparentemente indestrutível, que o otimismo, então reinante, oporia aos que ele certamente alcunharia de "profetas de desgraças".

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Vai correndo rápido e convulsionado o ano de 1992. E o exame mais superficial da realidade deixa ver que a palavra "caos" – ainda há pouco um espantalho de tantas gentes tidas por sensatas – passou a ser uma palavra da moda.

Com efeito, nos círculos intelectuais de vanguarda, que se gabam de pós-modernos, a palavra "caos" é algo de faceiro, de elegante, mais ou menos como um bibelô que todos gostam de ter entre os dedos, para com ele brincar, e ver mais de perto. Em lugar de despertar horror, o caos é tido hoje como fonte de esperança. Pelo contrário, a palavra "moderno", que tanto sorria aos ocidentais, parece ter caído na decrepitude. Reluzente de mocidade ainda há pouco, nela nasceu subitamente uma cabeleira branca, não consegue esconder suas rugas e usa dentadura. Pouco lhe falta para cair no lixo da História. Ser moderno, que beleza há dez anos! Hoje em dia, que velheira! Quem não queira ser envolvido na decrepitude do que é moderno, deve dizer-se pós-moderno. Eis a fórmula...

Cada vez mais, "caos" e "pós-modernidade" são conceitos que se vão aproximando, a ponto de tenderem a fundir-se um com o outro. E há até quem veja em hecatombes eventuais, conjeturadas para o dia de amanhã, o ponto de partida de um radioso depois-de-amanhã.

Assim, gente que ainda ontem não tinha suficientes apodos a lançar contra a Idade Média, argumenta precisamente com esta para justificar seu otimismo.

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O Batismo de Clóvis por São Remígio

O batismo do Rei dos Francos, ministrado por São Remígio, constituiu marco decisivo para a conversão ao Cristianismo dos povos bárbaros que invadiram o Império Romano

Em outros termos, o território do Império Romano do Ocidente se encontrou, a certa altura, convulsionado ao mesmo tempo por duas forças inimigas, que lhe trituravam os restos moribundos: os bárbaros procedentes das orlas do Reno, e os árabes que haviam transposto o Mediterrâneo e invadido largas faixas do litoral europeu. A Europa caiu no caos. Toda a estrutura do Império Romano do Ocidente se pulverizou. De pé, só restou a estrutura eclesiástica, que recebera de Roma a palavra de ordem de não abandonar os territórios em que exercia sua jurisdição espiritual. Na ordem temporal, era o caos.

Porém, do entrechoque dos exércitos, das raças e das batalhas, em meio ao pandemônio geral, lentamente se foi formando, nos campos, a estrutura feudal. E, nas bibliotecas dos conventos, os livros em que se havia refugiado a cultura greco-latina começaram a projetar sua luz sobre novas gerações que lentamente foram aprendendo que viver não é só lutar, mas também estudar.

Aos poucos, sem que quase ninguém se desse conta, os dedos febris e desordenados do caos foram produzindo um tecido novo: a cultura medieval, cujos esplendores os pós-modernos – para vantagem de sua argumentação – descobrem agora, como se ontem ainda não os ignorassem ou os vilipendiassem.

E, como um prestidigitador tira de repente um coelho de dentro de uma cartola, os atuais profetas do caos e da pós-modernidade tiram das penumbras e das agitações de hoje, bem como das dramáticas turbulências da mais Alta Idade Média, motivos para embair nossos contemporâneos com as esperanças e as luzes de uma nova era.

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São Bruno - Cartuxa de Miraflores - Burgos - Espanha

A civilização medieval foi tecida por mãos benditas, como as de São Bruno (séc. XI), fundador da Ordem dos cartuxos, e que construiu na França a famosa abadia denominada “Grande Cartuxa”

Mas há algo que eles esquecem de incluir no quadro histórico que lhes serve de argumento. E' a Igreja. A Igreja, sim, na qual não cessaram de reluzir Santos que deixaram na terra a sabedoria de ensinamentos e a força viva de exemplos que até hoje o mundo não esqueceu. Sacerdotes muitos, os quais, fiéis à doutrina e às leis da Santa Igreja, foram por toda parte suscitando almas que começavam a brilhar nas trevas, como originariamente se puseram a brilhar no céu as estrelas, por ação do Criador. Essas foram as mãos sagradas que gradualmente limparam do caos o espírito, as leis e os hábitos dos povos europeus.

A civilização foi tecida por essas mãos benditas, e não pelos dedos trêmulos, sujos e poluídos do caos.

Tendo isto em vista, o leitor se voltará naturalmente para a Igreja de hoje, esperando dela a mesma ação, desenvolvida a partir da Alta Idade Média. E tem razão, pois da Igreja se pode dizer o que diz de Nossa Senhora a Salve Regina: Ela é "vita, dulcedo et spes nostra". Mas a História jamais se repete com mecânica precisão. Como diferem das condições de então, as condições presentes da Santa Igreja de Deus.

Assim como um filho sente redobrar seu amor e sua veneração quando vê sua própria mãe atirada ao infortúnio e opressa pela derrota, assim é com redobrado amor, com veneração inexprimível que me refiro aqui à Santa Igreja de Deus, nossa Mãe. Precisamente neste momento histórico em que a Ela caberia refazer, à eterna luz do Evangelho, um novo mundo, vejo-A entregue a um doloroso e deprimente processo de "autodemolição", e sinto dentro dela a "fumaça de Satanás", que penetrou por infames fissuras (cfr. Paulo VI, alocuções de 7-12-68 e 29-6-72).

Para onde voltar então as esperanças do leitor? – Para o próprio Deus, que jamais abandonará sua Igreja santa e imortal, e que por meio dela fará, nos dias longínquos ou próximos, cujo advento sua Misericórdia e sua Justiça marcaram, mas permanecem misteriosos para nós, o esplêndido renascimento da civilização cristã, o Reino de Cristo pelo Reino de Maria.

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