Plinio Corrêa de Oliveira
Morto o comunismo? E o anticomunismo também? Conversando com o "homem da rua"
Catolicismo, Outubro de 1989, N° 466, pags. 4 a 8 (*) |
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O "Homem da rua" mais característico não é única, nem principalmente, o analfabeto. O arquétipo dele é um homem – ou uma senhora – que fez curso secundário completo, ou até obteve um diploma universitário. Esse gênero de "homem da rua" tem certa cultura geral: ele lê os jornais (excetuados os pesados suplementos semanais especializados, ou quase tanto, ao alcance só de especialistas ou de pessoa apaixonada pela matéria tratada, da qual faz para si uma espécie de hobby). Mas sua experiência da vida (pessoal, familiar, social, profissional etc.) e o exercício de atividades comportando responsabilidades que preocupam ou fazem pensar, lhe conferiram certa capacidade intelectual e lhe proporcionaram, em conseqüência, inegável influência nos ambientes em que vive. Em outros termos, ele constitui um ponderável fator da opinião pública. De tudo isso lhe vem a preciosa função natural de equilibrar, com seu bom senso arejado, a influência, aliás a tantos títulos valiosa, dos intelectuais "puros", dos tecnocratas, ou dos burocratas. Estes tendem, por seus excessos, a uma espécie de totalitarismo tecnocrático, burocrático e livresco, cujo exclusivismo produz com freqüência planos e soluções engendrados numa atmosfera de irrealidade, de utopia, de ar confinado. Em tal atmosfera, a vitalidade se extingue, a realidade, em muito do que ela tem de mais subtil, foge e se esvanece, e as ideologias unilaterais e disparatadas assaltam e conquistam a opinião pública. Esta pode ser lançada assim num caos todo feito de confusão, de contradições e de dramas, nos quais podem estertorar pelas décadas, quando não pelos séculos afora, nações inteiras. É bem este o caso da Rússia atual. Estão sendo ali rotina os dramalhões políticos, que giram em torno de interpretações livrescas de textos de Marx, Engels, Trotsky e outros teorizadores da primeira era comunista. Vêm depois as disputas utópico-político-ideológicas sobre as reais ou supostas infidelidades de Lênin ao pensamento de Marx. Idem de Stalin com referência a Lênin. Em seguida (e para só mencionar os elos principais) de Kruchev, e depois Brejnev, sucessivamente questionados sobre o mesmo tema. E agora, por fim, o drama pega fogo em todo o império soviético. Comunistas radicais e mantenedores intransigentes do capitalismo de Estado, de um lado, e, do outro lado, autogestionários ávidos de atingir o desmantelamento desse mesmo capitalismo (como também do capitalismo privado no Ocidente), discutem se é o caso de substituir um e outro capitalismo pelo socialismo autogestionário. Este último, preconizado como arejado e salutar, é concebido por seus propugnadores como um tecido de grupos humanos de dimensões celulares. Tal tecido constituiria a organização social ideal para o homem de hoje. Cada grupelho celular se autogeriria em uma harmonia interna utópica e imperturbável, na qual tudo seria comum: bens, trabalhos, frutos, como até – dizem ou insinuam alguns, com alta verossimilhança – "esposas" e filhos. Qual seria a explicação desta harmonia interna, bem como da esperada harmonia dos grupelhos entre si? Intelectuais utopistas "poros" não se detêm excessivamente em problemas desses. Tais grupelhos, formando imensos magmas pacificos, pastorilmente simples e primitivos, constituem a meta desses utopistas. Seu "wishful thinking" (*). E, porque desejam ardentemente esse ideal, ipso facto passam a sonhar como seria a realização dele. (*) Em idioma inglês, um desejo ardente que leva o homem a pensar e agir como se a coisa desejada já fosse uma realidade. É nestas águas turvas da Rússia nova que, segundo querem uns – influenciados talvez pela meta consignada no Preambulo da Constituição soviética (*) – Gorbachev vai emigrando para a autogestão, navegando penosamente em frágeis embarcações como a perestroika ou a glasnost. E assim vai dando curso ao obscuro dramalhão soviético. Não espanta que ele tenha de enfrentar eventualmente uma perigosa reação anti-autogestionária e favorável à manutenção do capitalismo de Estado, segundo querem os "conservadores" soviéticos. (*) "O objetivo supremo do Estado soviético é edificar a sociedade comunista sem classes, na qual se desenvolvera a autogestão social comunista" (Constitución – Ley Fundamental – de la Unión de Repúblicas Socialistas Soviéticas, de 7 de outubro de 1977, Editorial Progreso, Moscou, 1980, p. 5) Apontando as falhas do atual sistema soviético, Gorbachev afirma, em seu livro "Perestroika – New Thinking for Our Country and the World": "Deixou-se pouco espaço para a idéia de Lênin de autogestão do povo trabalhador. A propriedade pública foi gradualmente excluída de seu verdadeiro proprietário – o trabalhador Esta foi a principal causa do que aconteceu: no novo estágio, o velho sistema de gestão econômica começou a transformar-se, de fator de desenvolvimento, em freio que retardava o avanço do socialismo..... "Um povo educado e dotado para concretizar o socialismo não pôde fazer uso pleno das potencialidades inerentes ao socialismo, de seu direito de tomar parte efetiva na administração dos negócios do Estado..... "Nestas condições, é supérfluo dizer que as valiosas idéias de Lênin sobre gestão e autogestão, controle de ganhos e perdas, e vincularão dos interesses público e pessoal deixaram de ser aplicadas e de se desenvolverem adequadamente" (op. cit., Harper & Row, Nova York, 1987, pp. 47-48). Segundo Gorbachev explana largamente em seu livro, a perestroika consiste na retomada dessas idéias de Lênin. E, por isso, o plano de reforma econômica que apresentou ao plenário da Comissão Central do Partido, em junho de 1987, "prevê a criação de novas estruturas organizacionais de gestão, para o desenvolvimento, em todos os seus aspectos, das bases democráticas da gestão, e para a ampla introdução dos princípios da autogestão" (op. cit., p. 84). A perestroika, portanto, não significa um recuo do comunismo – como muitos pensam – mas um passo avante na tentativa de realização da meta última da utopia marxista-leninista. E Gorbachev não perde ocasião, em seu livro, de dizer, alto e bom som, que os ocidentais não se iludam a esse respeito (cfr. op. cit., p. 36 ss.). Sobre este tema, ver Plinio Corrêa de Oliveira, O socialismo autogestionario: em vista do comunismo, barreira ou cabeça-de-ponte?, Mensagem das TFPs, "Catolicismo", nº 373-374, janeiro-fevereiro de 1982. Enquanto isto se passa no interior do território russo, o império soviético se vai descosturando em várias de suas mais longínquas partes. Movimentos separatistas sacodem "repúblicas unidas" distantes entre si como a Estônia e a Armênia, e da Ucrânia se estendem até o Kazaquistão, para atingirem em seguida os confins da Sibéria. Ao mesmo tempo, repúblicas comunistas "soberanas", como a Hungria, a Romênia, a Bulgária, e principalmente a Polônia corcoveiam ao influxo de impetuosas tendências centrifugas. No que dará tudo isso? Ninguém o sabe. E nem o pode saber, pois todo este quadro constitui um imenso bruaá de incógnitas que se agitam, se entrechocam ou se entreajudam convulsivamente, em uma penumbra de informações que a cada instante se torna mais sombria. Porém, há alguém que "o" sabe. Reside ele no Ocidente. Não é um homem, mas uma legião de homens, cuja imensa maioria é constituída de "homens da rua" como acima os descrevi. E abrange até figuras de relevo em alguns ambientes de especialistas vivendo exclusivamente no ar confinado de bibliotecas ou de laboratórios, das macro-burocracias, ou ainda nos escritórios das grandes empresas. * * * Toda essa gente que "sabe" onde dará tudo isso se recruta nas vastas áreas de opinião pública constituídas pelos otimistas do Ocidente. Tomando seus sonhos utópicos por pressentimentos "proféticos", interpretam a realidade presente como se a autogestão fosse realizar no mundo, afinal liberado das grandes estruturas, a era da concórdia perfeita e da paz eterna. Para alcançarem uma e outra, muitos são os utopistas que aspiram a que se fundam todas as nações, todos os sistemas filosóficos e religiosos, todas as ideologias, por mais opostas que sejam. Seria um fruto da "queda das barreiras ideológicas", seguida presentemente pela era do consenso universal, na qual não haveria mais polêmicas nem dissídios. E, portanto, deixaria de ser temerário e passaria até a ser desejável o desarmamento total. Seria a era ecumênica do diálogo que tudo resolve na concórdia. O comunismo, tornando-se autogestionário, se evanesceria como perigo para o Ocidente. E o Ocidente deixaria de ser um perigo para o mundo comunista. A humanidade inteira entoaria por fim o hino da convergência total. Por sua vez, a morte do comunismo traria – oh suprema ventura para os otimistas! – a morte do anticomunismo. Pois a extinção de uma doença torna inúteis os médicos nela especializados. Tudo isso se apresenta assim aos olhos de muito considerável parte dos "homens da rua", isto é, os otimistas, que sonham obsessivamente com a fartura universal, num mundo de que tenha sido por fim afastado o espectro da hecatombe nuclear. Mas os homens que sonham têm não raras vezes certo pudor de estarem sonhando. E por isto nem sequer chegam a explicitar para si próprios os seus sonhos. A fim de os conhecer, é preciso auscultar as opiniões que emitem sobre fatos concretos. Opiniões estas que freqüentemente existem incubadas nos comentários que o "homem da rua" otimista faz nas conversações correntes da vida cotidiana. Na análise destas opiniões pode-se perceber entretanto para que rumo caminham suas utopias. Neste artigo, todo voltado a dialogar com o "homem da rua", passo agora a considerar vários aspectos dos sonhos dele, o que me permitirá pôr a nu as diversas aspirações que o movem. Para maior brevidade na aplicação desse processo, exporei a matéria em duas colunas. Em uma se enuncia a posição do otimista. Na outra o desmascaramento polêmico que lhe inflige a TFP.
O sorriso de Gorbachev e a perestroika, motivos de esperança para os otimistas ocidentais, tem um precedente: o sorriso de Kruchev, que embaiu o Ocidente e incentivou a desastrosa política de "coexistência pacífica"
Um simples pintor de parede, Adolf Hitler, arrostou multidões porque ele lhes "caiu no goto". Proposições dos otimistas e respostas da TFP Otimistas: 1. A personalidade de Gorbachev, como também a de Raissa, sugerem ao discernimento psicológico dos observadores lúcidos e intuitivos a persuasão de que eles são "boas pessoas", amigos do seu povo, e desejando para eles tanta fartura quanto possível, a eliminação do despotismo policialesco e a supressão do espectro da guerra nuclear. TFP: O otimista desenvolve suas cogitações tipicamente assim: uma impressão pessoal, uma viva simpatia que ele experimente em relação a terceiros, lhe servem de razão suficiente para confiar nestes. E, com base nessa confiança, conceber sonhos deliciosos. Uma mera fotografia de jornal ou de revista, ou então a simples análise fisionômica feita quando a cara de uma pessoa aparece no vídeo de uma televisão pode arrastar assim os otimistas – indivíduos, grupos ou multidões – aos atos de confiança mais temerários. O conhecimento e a análise da biografia da pessoa em foco, de seus escritos, de seus feitos: tudo isto pouco importa. Basta ver-lhe a foto, ouvir-lhe a voz, para julgar... Otimistas: 2. Gorbachev e Raissa, por sua popularidade no Oriente como no Ocidente, são onipotentes, podem tudo quanto querem. Já que querem o que queremos, isto é, toda prosperidade para todos os povos do mundo, a conseqüência é que "o negócio está feito" de parte a parte. TFP: Mais uma vez, é bem este o ponto fraco dos otimistas. Sem nada conhecer dos antecedentes das pessoas, têm facilidade em atribuir as mais generosas e desinteressadas intenções àqueles que lhes tenham "caído no goto". Foi assim que multidões inteiras se entusiasmaram na década de 30, na Alemanha e fora dela, por um simples pintor de paredes que haviam "visto" e "ouvido", e que, ato continuo, lhes havia "caído no goto". Quando tais otimistas chegam a ser muito numerosos, sejam eles nazistas, fascistas, comunistas ou de qualquer outra espécie, está aberta uma era de triunfo fácil para os demagogos e para a demagogia. Otimistas: 3. O natural é que Gorbachev esteja firmíssimo no poder, pois é absurdo supor que um povo que sofre miséria há 70 anos não esteja rugindo de vontade de se enriquecer. TFP: Tal pode ser realmente a atitude de um povo sujeito a prolongada miséria. Mas pode também ser que um povo assim tratado, em vez de fugir, se sinta esmagado, desanimado, e por fim acomodado à sua invariável condição de escravo. Por que supor que a tão imensa população da Rússia soviética tenha, face à própria miséria, uma atitude unânime? Pode bem ser que junto ao Báltico os oprimidos fujam, e junto ao Mar Negro ou ao Mar Cáspio, pelo contrário, os oprimidos bocejem indolentemente conformados. Em coerência com sua propensão ao otimismo, o "homem da rua" lança, sem mais provas, a afirmação de que todos rugem. E a partir dai tira lá suas conclusões... também otimistas: o comunismo "já era". Merece esse modo frívolo de pensar, que se o refute com maior atenção? – Não o cremos (*). (*) No artigo Gorbachev em perigo, Bernard Lecomte, em "L’Express" (7-7-89), aponta três ameaças que pesam sobre o líder soviético, entre as quais coloca "o conservantismo .... de toda uma população aturdida, aniquilada, aterrorizada por uma longa luta entre um sistema de valores antigos e a utopia criminosa do ,homem novo,. Setenta anos de regime comunista tornaram este povo apático e irresponsável. Por detrás de uma elite intelectual .... há uma população de 286 milhões de soviéticos que não crerem nas reformas. Como poderia Gorbachev fazer evoluir esta sociedade que se tornou a mais conservadora do mundo?" (loc. cit., p. 30). É bem de ver que esse "conservadorismo" é fruto da acomodação e da apatia face a um regime antinatural e despótico. No mesmo número de "L'Express" (p. 38), Wladimir Berelavitch insiste na mesma idéia descrevendo "os habitantes da Rússia profunda" como um "gênero humano submisso, aterrorizado e irresponsável, modelado por décadas de despotismo. E se espera desta população que ela tome iniciativas, que ela aprove as reformas? .... O que caracteriza a população é uma apatia geral. Otimistas: 4. O regime policialesco comprimia no povo faminto e enfurecido a possibilidade de se revoltar. Gorbachev soltou a fera. Ninguém mais terá meios de a prender de novo. A agressividade da miséria é onipotente, e faz reconhecer, a justo título, em Gorbachev, o paladino da fartura para todos e o campeão da liberdade. Um homem que enfeixa assim em suas mãos todo o potencial incontenível da opinião pública ninguém o derrubará. TFP: No "povo... enfurecido"? – Como acaba de ser dito, esta afirmação contém uma simples hipótese, um mero pressuposto. Nem sempre a miséria e a opressão enfurecem. Pelo contrário, alquebram por vezes. Só os acontecimentos que estão em via de se desenrolar dirão se as massas russas estão todas elas seriamente enfurecidas, ou, pelo contrário, lamentavelmente alquebradas. Como na China, por ocasião da recente revolta, os fatos fizeram ver que a opressão restaurada em conseqüência da vitória dos comunistas duros e "conservadores" acabou por encontrar diante de si – pelo menos até o presente – a submissão da maioria desalentada. "Ninguém o derrubará". O vaticínio, baseado no vácuo de uma preliminar não comprovada, vale tão pouco quanto pouco vale essa mesma preliminar... Otimistas: 5. Todos os planos de Gorbachev são viáveis e serão vencedores. Todas as suas promessas são sinceras e serão cumpridas. Todas as suas garantias de desarmamento merecem confiança absoluta: seria absurdo que assim não fosse. Isto leva o Ocidente (governos, políticos, capitalistas, intelectuais e média) a apoiar deliberadamente Gorbachev (e fazem bem). O que lhe vale dentro da Rússia um imenso reforço de prestigio e de poder. TFP: Na verdade, o otimismo fácil do Ocidente está ajudando de todos os modos Gorbachev a se manter no poder: créditos estatais e privados espantosamente amplos; planos de desarmamento confiantes quase até a cegueira, com falta de garantia de fiscalização séria do desarmamento que a Rússia faria em contrapartida; negociações internacionais de todo gênero, altamente prestigiosas para Gorbachev; viagens ao exterior não menos prestigiosas e propagandistas, tudo isto vai sendo fornecido pelo Ocidente, "drogado" de otimismo, para ajudar Gorbachev a resistir eficazmente a oposições internas. Este frenesi de ceder, de recuar ante o poder soviético, de favorecer de todos os modos Gorbachev não é de muito bom agouro. Pois causa a impressão de que tal frenesi dos ocidentais é movido em boa parte pelo próprio pânico de que, se não dessem a Gorbachev essas benesses torrenciais e mordomias gigantescas, temeriam que ele ruísse. "Quando a esmola é demais, o pobre desconfia". Com efeito, não dá para desconfiar, à vista desta chuva de esmolas despejada pelo Ocidente sobre Gorbachev? Desconfiar, sim, que um verdadeiro pânico da derrota dele no interior da Rússia seja, conjuntamente com o otimismo frívolo dos benfeitores, uma das causas das vantagens de que Gorbachev vai sendo cumulado... Bastará, então, que um estalido súbito denuncie que Gorbachev está fraco, para que deixe de ser econômica e politicamente rentável apoiá-lo. Benesses e mordomias começarão então a retrair-se avaramente. E ai de Gorbachev! Otimistas: 6. O atual estado de miséria da Rússia tem algo de essencialmente instável aos olhos da burguesia e das massas do Ocidente, para as quais tudo quanto é trágico é improvável. E, quando chega a realizar-se, é efêmero. Assim, o natural é que Gorbachev se mantenha estavelmente com as rédeas na mão e que, se seus adversários "duros " alcançarem contra ele alguma vitória, esta seja meramente episódica e de curta duração. Desfechará assim numa catástrofe para os culpados e num happy end para as vítimas. O "conservantismo" stalinista está fadado, pois, à catástrofe. E a perestroika e a glasnost ao triunfo. É o resultado imperativo da fatalidade histórica. A admitir o contrário, a vida seria insuportável para o otimismo ocidental filantrópico. Logo, a opressão segundo o estilo stalinista terá que acabar de vez. TFP: Causa assombro que o pressuposto otimista sobre o efêmero da situação de miséria e de opressão na Rússia seja tomado como indiscutível por alguém. O Csarismo caiu em 1917. E de então para cá manteve ele toda a assim chamada União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, e inclusive o gigantesco Estado russo, na mais negra miséria. Uma miséria unida a uma pesada escravidão, a qual foi qualificada, a muito justo título, de "vergonha de nosso tempo" em documento da Congregação para a Doutrina da Fé, presidida pelo Cardeal Joseph Ratzinger (Instrução sobre alguns aspectos da "Teologia da Libertação", de 6 de agosto de 1984, XI, 10). A outra face da miséria no império soviético é na verdade a escravidão. As condenações à morte por motivos políticos, o inferno da Lubianka, as prisões intérminas na Sibéria, os hospitais psiquiátricos abismaticamente lúgubres, a opressão policialesca incessante e omnipresente: quando a Rússia ainda não conseguiu se libertar de todos estes horrores, depois de mais de sete décadas de pesadelo, falar no efêmero de tudo quanto é terrível constitui afrontosa negação da mais evidente realidade histórica. Quanto a este argumento, é melhor não perder tempo em refutá-lo; basta olhá-lo com desdém e passar adiante: "non ragioniam di 'lor' ma guarda e passa" (A Divina Comédia, Inferno, Canto III, v. 51) aconselhou Virgílio a Dante. E este seguiu o conselho. Façamos o mesmo. Otimistas: 7. Aliás, não é difícil normalizar a situação da Rússia: basta liberalizar tudo, que a ordem e a fartura, irrigadas pela liberdade, renascerão em todas as partes. TFP: A liberdade é um grande bem. Nunca deixou de o ensinar a Santa Igreja. E particularmente o fez Leão XIII na encíclica Libertas Praestantissimum. Mas – e a Igreja o ensina igualmente – essa liberdade só é um bem na medida em que seja circunscrita pelos princípios da moral cristã e da ordem natural. Observar esses princípios, encontrar na aplicação concreta de cada um deles a justa norma, a perfeita medida do proceder humano, dotar a autoridade de todo o poder necessário para o exercício de sua missão, mas evitar que esse poder se exceda, fixar os limites que ele não pode ultrapassar, instituir para isto o complexo e sapientíssimo sistema dos grupos intermediários entre o Estado e os indivíduos, e, por fim, estabelecer ainda as normas de equilíbrio nas relações entre tais corpos intermediários e as liberdades individuais, eis ai uma ciclópica massa de serviço, impossível de ser levada a bom termo sem a ajuda inestimavelmente preciosa da graça de Deus. Abstrair de tudo isso, imaginar que por um simples "soltar de cães" da liberdade, todas as coisas voltem espontaneamente aos seus eixos, é a utopia de mero primata. Otimistas: 8. Os movimentos autonomistas não ameaçam verdadeiramente Gorbachev. O império soviético é tão imenso que pode perder a maior parte de suas regiões não russas e ainda assim continuar muito grande. E, das repúblicas comunistas não integrantes da chamada URSS, várias delas poderão destacar-se do bloco soviético sem que este deixe de ser considerável. TFP: O assunto está mal focalizado pelos otimistas. Para todos os que se habituaram a ver o império soviético com as dimensões gigantescas a que chegou, não pode deixar de causar uma impressão penosa e profundamente desprestigiante o presenciar que deste moloch se destacam incontenivelmente mais e mais parcelas, como a um leproso vão caindo as carnes putrefatas. E o efeito devastador desse processo paraleproso não pode deixar de abalar o prestigio de Gorbachev, à mesma medida que as "carnes" forem caindo de sua área de mando. Otimistas: 9. O comunismo morreu. Alegria ainda maior para o otimista: morre ipso facto o anticomunismo, no qual o otimista ocidental vê um incomodo profeta de desgraças, um desagradável pregador de austeridade, de ponderação, de coerência, de seriedade de espírito. Assim libertado de seus pesadelos, o burguês ocidental pode entregar-se às delicias da aurora do relativismo absoluto, frívolo e borboleteante, que constituirá para ele o céu na terra. TFP: Realmente, segundo o provérbio clássico, aqueles que Deus quer perder, Ele previamente os torna loucos: "Quos Deus perdere vult, prius dementat". Assim, o otimista ocidental delirante se compraz de antemão, e precipitadamente, com a vitória do líder russo. Ora, nada garante que Gorbachev não seja um mero camuflador de propósitos que não tem, e construtor de planos que ele mesmo sabe só se poderem realizar no reino da utopia. O ocidental otimista à outrance confia assim no seu inimigo de ontem, que presumivelmente também é seu inimigo hoje e o será amanhã. Em sentido contrário, ele quer, ao mesmo tempo, ganhar distância dos anticomunistas, os dedicados e desassombrados paladinos da civilização ocidental e cristã. Se os magnatas do Ocidente conservarem esta mentalidade – quer vençam os comunistas, quer os anticomunistas – uma coisa é certa: esses otimistas cairão. Pois são sempre eles os grandes derrotados da História. E, merecidamente, novas elites, suscitadas pela Providência, os substituirão para a reta direção das coisas deste mundo. (*) O manifesto acima foi estampado em publicações das diversas TFPs e entidades afins, bem como em órgãos da imprensa. Entre estes destaca-se o mundialmente famoso The Wall Street Journal (3 de novembro de 1989, pag. B5B). |