Plinio Corrêa de Oliveira
O socialismo autogestionário:em vista do comunismo,barreira ou cabeça-de-ponte?
"Washington Post" (Estados Unidos) e "Frankfurter Allgemeine Zeitung" (Alemanha), 9 de dezembro de 1981 |
O duplo jogo do socialismo francês: na estratégia gradualidade – na meta radicalidade
Mensagem das Sociedades de Defesa da
Tradição, Família e Propriedade — TFP
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ÍNDICE Prof. Plinio Corrêa de Oliveira 2. Golpe de vista sobre o PS real 4. Posta a vitória do PS, o que fazer? – A encruzilhada 5. A escolha da estratégia: aspectos do socialismo francês II. Doutrina e estratégia no projeto de socialismo para a França 1. “Liberdade, igualdade, fraternidade” no “Projet socialiste” 3. PS e comunismo – A estratégia da gradualidade 4. Autogestão na empresa: mini-revolução sócio-econômica 5. A autogestão deve abranger toda a sociedade e o homem inteiro 6. Por que a reforma da empresa exige a reforma do homem 7. A sociedade autogestionária e a família 9. O controle das condições de vida 11. O direito de propriedade no regime autogestionário 12. A propriedade rural no “Projet socialiste” III. O cerne doutrinário do “Projet socialiste”: laicidade – “liberté, égalité, fraternité” 1. Direitos do Homem na sociedade autogestionária: informar-se, dialogar e votar 2. A Religião e as religiões, no “Projet” 3. O Episcopado francês ante o PS IV. Intervenção nos assuntos internos da França? V. Glorioso porvir da França segundo São Pio X Quadro IV — A empresa autogestionária ideal proposta pelos socialistas
O socialismo autogestionário:em vista do comunismo,barreira ou cabeça-de-ponte?
A Revolução Francesa, em fins do século XVIII, os sismos revolucionários de 1848, a Comuna de Paris em 1871, a explosão ideológica e temperamental da Sorbonne em 1968 foram marcos importantes da História da França. E também da História de todo o Ocidente. Com efeito, esses movimentos, cada qual à sua maneira e em suas proporções específicas, deram expressão internacional a aspirações e doutrinas – nascidas algumas na França e outras alhures – mas que nesse país haviam fermentado com uma carga de comunicatividade toda peculiar. Os acontecimentos históricos assim gerados na França encontraram e puseram em movimento, no espírito dos vários povos do Ocidente, aspirações, tendências e ideologias cujo surto marcou a evolução psicológica, cultural, política e sócio-econômica deles nos séculos seguintes. O mesmo vai ocorrendo com a “revolução” incruenta, mas nem por isso menos profunda, que a vitória eleitoral do PS nas eleições de 10 de maio do ano de 1981 – e a conseqüente ascensão de Mitterrand à Presidência da República – começa a desdobrar em série. As crises que afetam (em medida aliás desigual) os regimes comunista e capitalista despertam no mundo inteiro tendências e movimentos que se gabam de especialmente modernos e crêem encontrar no socialismo autogestionário, agora instalado no poder em Paris, a expressão clara, concisa e vitoriosa de tudo ou quase tudo quanto pensam e desejam. O que, naturalmente, os vai pondo em marcha rumo à conquista de análogos êxitos nos respectivos países. Isto para proveito e gáudio, note-se, do comunismo internacional, do qual o socialismo autogestionário é apenas caudatário e “companheiro de viagem”.
[N.R.: Para uma visão abrangente sobre o presente documento e suas repercussões, vide: Um homem, uma obra, uma gesta – Homenagem das TFPs a Plinio Corrêa de Oliveira, Segunda seção, 12. Socialismo autogestionário: denúncia da TFP atinge 33,5 milhões de exemplares e é publicada em 52 países] Prof. Plinio Corrêa de OliveiraPresidente do Conselho Nacional da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade Plinio Corrêa de Oliveira nasceu em São Paulo (Brasil), em 1908. Formado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Largo do São Francisco), destacou-se em sua juventude como orador, conferencista e jornalista católico. Um dos fundadores e diretor da Liga Eleitoral Católica, foi o deputado mais votado na Assembléia Constituinte de 1934. Professor de História da Civilização no Colégio Universitário da Universidade de São Paulo, bem como de História Moderna e Contemporânea nas faculdades São Bento e Sedes Sapienciae da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Foi presidente da Junta Arquidiocesana da Ação Católica de São Paulo e diretor do órgão católico "Legionário". Colaborador destacado do mensário "Catolicismo" escreve também para o jornal "Folha de São Paulo" desde 1968. Principais obras: Em Defesa da Ação Católica; Revolução e Contra-Revolução; Reforma Agrária — Questão de Consciência (em colaboração com outros autores); Acordo com o regime comunista: para a Igreja, esperança ou autodemolição?; Baldeação ideológica inadvertida e Diálogo; A Igreja ante a escalada da ameaça comunista — Chamamento aos Bispos Silenciosos; Tribalismo indígena, ideal comuno-missionário para o Brasil no século XXI; Sou Católico: posso ser contra a Reforma Agrária? Em 1960 fundou a SOCIEDADE BRASILEIRA DE DEFESA DA TRADIÇÃO, FAMÍLIA E PROPRIEDADE — TFP, e foi desde então presidente do Conselho Nacional da entidade. Inspiradas em Revolução e Contra-Revolução e em outras obras do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, TFPs e associações congêneres se constituíram em doze países das Américas e da Europa.
· Confirmação da laicidade estatal – o casamento equiparado à união livre – plena liberdade sexual – “reabilitação” da homossexualidade – livre acesso e gratuidade dos anticoncepcionais – liberdade de aborto para gestantes maiores e menores de idade – agonia e morte do ensino privado – educação estatal a partir de dois anos. · As grandes e médias empresas urbanas nacionalizadas – socialização progressiva da vida rural – a via autogestionária – a assembléia operária, poder supremo em cada empresa – a função obediencial dos dirigentes e dos técnicos nas empresas sem empresário individual – a luta de classes – a participação dos consumidores na direção da empresa. · O modelo autogestionário na família: função autogestionária dos filhos, luta de classes com os pais – na escola: a função autogestionária dos alunos, a luta de classes com os professores. · A sociedade autogestionária modela um novo tipo de homem – agnóstico – com uma moral oposta à cristã – com teto de progresso individual muito limitado – sujeito em tudo à maioria em comitês nos quais é eleitor – que o “ajudam” planificando-lhe até o lazer, a diversão e o arranjo doméstico. · Liberté – Egalité – Fraternité radicais: o achatamento das classes sociais, a desagregação do Estado – a galáxia das micro-comunidades – enquanto houver empresários, a monarquia não terá acabado de ser derrubada na França. · A autogestão socialista, meta internacional a serviço da qual o PS prometeu instrumentalizar o governo, a riqueza, o prestígio e o rayonnement mundial da França.
Na França A vitória do PS pôs em uma encruzilhada a maioria do eleitorado centrista e direitista
No Ocidente: A vitória eleitoral proporciona ao PS amplos meios diplomáticos e propagandísticos para incremento da guerra psicológica revolucionária no interior de todas as nações
O socialismo autogestionário:em vista do comunismo,barreira ou cabeça-de-ponte?
I – O centro e a direita ante o socialismo francês: a ilusão otimista, o alcance da derrota e a encruzilhada
Para o “homem da rua” da maior parte dos países do Ocidente, o Partido Socialista francês resulta, como tantos outros, da conjugação de interesses e de vaidades em torno de um programa partidário aceito com mais convicção, ou menos. É explicável. O grande público internacional se informa sobre o socialismo principalmente na televisão, no rádio e na imprensa. E a imagem do PS, apresentada parte implicitamente, parte explicitamente por tais veículos de comunicação costuma ser esta: a) um eleitorado constituído em sua maioria por trabalhadores manuais imbuídos, em níveis diversos, da mentalidade do Partido, mas abarcando também não poucos burgueses, cujas tendências sócio-econômicas conciliatórias se conectam em um ou outro ponto com vagas simpatias filosóficas por um socialismo “filantrópico”; b) quadros dirigentes formados – pelo menos nos níveis alto e médio – por políticos profissionais, preocupados sobretudo com a conquista do poder. E, explicavelmente, habituados a todas as flexibilidades, a todas as audácias, como também a todas as formas de concessão e de prudência que conduzam ao sucesso. Porém, esta visão global do socialismo tem pouco de objetivo. Ela corresponde às ilusões otimistas de tantos dos opositores políticos do PS. Ilusões estas que contribuíram em considerável medida para a recente vitória desse partido. E que abrem agora, ante o eleitorado francês de centro e de direita, uma encruzilhada decisiva.
2 . Golpe de vista sobre o PS real Observado sem ilusões nem otimismo, o PS deixa ver um caráter ideológico monoliticamente forte. Dos princípios filosóficos que aceita, ele deduz sistematicamente todo o seu programa político, econômico e social. E a aplicação integral e inexorável deste último a cada indivíduo, a cada nação – à França, portanto, como a todo o gênero humano – é a meta de chegada da ação concreta que o Partido preconiza. Qual o meio para a obtenção desse objetivo gigantesco? A manipulação gradual – servida por táticas de dissimulação sofisticadas – tanto da cultura, quanto da ciência, do homem e da natureza. E também a instrumentalização dos órgãos do Estado, no caso de o Partido alcançar o poder. Segundo o PS, essa gradualidade deve ser lenta, pois as circunstâncias quase sempre o exigem; mas se deve acelerar sempre que elas o comportem. Ao longo de toda essa trajetória, nenhuma palavra deve ser dita, nenhum passo deve ser dado, que não tenha por objetivo supremo a anarquia final (no sentido etimológico da palavra), fim, aliás, visado também pelos teóricos do comunismo. Esse cunho do PS se patenteia nos documentos oficiais do Partido, nos livros de autores representativos do pensamento do PS, e ainda nos escritos de circulação interna, destinados mais bem à formação de seus membros. Todo esse material, além de absorvido nas fileiras do PS, tem circulação em outros ambientes: esquerdas de distintos matizes, intelectuais e políticos extrínsecos à esquerda etc. E aí vai alargando processivamente o número de simpatizantes do Partido. Porém, é pouco ou nada lido pelo homem da rua alheio ao PS [1].
3 . O alcance real da ascensão do socialismo na França – Abstenção, grande fator da derrota do centro e da direita Observadores e analistas das recentes eleições presidenciais francesas têm como certo que o candidato vitorioso das esquerdas se beneficiou dos votos de uma parcela ponderável do eleitorado do centro e de direita. Tendo sido de 1.065.956 votos (3,51% dos “votos expressos”, isto é, os votos apurados, dedução feita dos brancos e nulos) a diferença de F. Mitterrand sobre seu opositor, no segundo turno das eleições, o vazamento de votos do centro-direita para o candidato socialista representou um fator ponderável – quiçá decisivo – na apertada disputa eleitoral. Para isso basta considerar que o deslocamento da metade dessa diferença resultaria no empate eleitoral (ver Quadro I – De como 500 mil votos decidiram as eleições presidenciais francesas).
Tal vazamento causa espanto. Há cerca de vinte anos, todo centrista, todo direitista cioso de sua autenticidade, julgaria trair sua causa sufragando um candidato que fosse proposto pelo PS. Máxime se este se apresentasse em ostensiva coalizão com o Partido Comunista [2]. Em 1981, em muitos centristas e direitistas de diversas idades, esse sentido de coerência não agiu [3]. E com uma tranqüilidade por vezes irrefletida, por vezes indolente, votaram em Mitterrand. Como pôde isto acontecer? Mas as falhas da direita e do centro não ficaram apenas nisto. Toda a campanha eleitoral feita por uma e por outro foi desinteressada, sem o impulso, sem a força de impacto indispensáveis para arrastar multidões. Predicados que do lado socialo-comunista não faltaram. Nas eleições legislativas, essa falta de empenho foi, naturalmente, ainda mais acentuada, e produziu também outra conseqüência: o aumento das abstenções. Num pleito tão importante para os rumos da França e do mundo, nada menos do que 10.783.694 eleitores (... 29,6% do corpo eleitoral) se abstiveram, no primeiro turno. É significativo que o número de abstencionistas tenha sido então superior à quantidade de votos obtida pelo PS (9.432.537). O bloco que sofreu o grande recuo no último pleito foi o de centro-direita, que caiu de 14.316.724 votos no primeiro turno das eleições presidenciais (26 de abril), para 10.892.968 votos no primeiro turno das eleições legislativas (14 de junho), perdendo assim 3.423.756 eleitores nesse curtíssimo período. Como o número de abstencionistas cresceu de 3.900.917, entre as duas eleições, e o conjunto das esquerdas, de outro lado, acusou um pequeno aumento (ver Quadro II – Abstenções e dispersão no centro e na direita favoreceram as esquerdas, nas últimas eleições legislativas francesas), tudo indica que a maior parte das novas abstenções se verificou nas fileiras do centro e da direita. Entre estes normalmente terão sido muito mais numerosos os que tomaram a decisão de não votar, seja em conseqüência de querelas partidárias, seja por preferirem simplesmente viver o domingo eleitoral como lhes parecia mais cômodo e divertido.
Tal fato – capital nesta emergência – se explica em boa medida pela ilusão de que não teria conseqüências dramáticas a eventual vitória de um partido, esquerdista sem dúvida, mas bonachão. Igualmente em razão dessa visão otimista, diferentes pequenas razões circunstanciais de ordem pessoal, regional etc., como também o deslumbramento ante a vitória de Mitterrand, tiveram suficiente força para levar não poucos eleitores provenientes do centro e da direita a votar no PS, contribuindo assim para vazamentos semelhantes aos ocorridos nas eleições presidenciais. Em suma, tudo leva a pensar que a maior parte, quer das abstenções, quer dos votos dados por eleitores de um partido à legenda de outro, deve ter ocorrido nos partidos menos rigidamente estruturados. A não ser que se imaginasse um PS ou um PC em vias de amolecimento disciplinar, ou empenhado em apostar corrida abstencionista com os adversários do centro ou da direita... O PS venceu, pois. Mas sua vitória não tem o significado de um aumento do eleitorado socialista, que a propaganda esquerdista vem habilmente difundindo pelo mundo. Comparadas as eleições legislativas de 1978 com as que acabam de se realizar, verifica-se que o contingente eleitoral de esquerda permaneceu praticamente inalterado: 14.169.440 em 1978: 14.026.385 em 1981 (dados referentes ao primeiro turno, único em que é possível fazer a comparação, devido às peculiaridades do sistema eleitoral francês). Considerando-se que o número de eleitores aumentou de 1.138.675 nesse período, a permanência no mesmo patamar representa uma queda percentual efetiva no conjunto do corpo eleitoral. Assim, as esquerdas, que conseguiram o apoio de 40,25% do corpo eleitoral de 1978, agora só obtiveram 38,59%, o que está bem longe de representar a maioria do corpo eleitoral (ver Quadro III – Estagnação do eleitorado de esquerda nas eleições legislativas de 1978 a 1981).
A vitória eleitoral do PS nas recentes eleições se deve, pois, não tanto a um fortalecimento efetivo da esquerda, mas em maior medida a um desinteresse e uma dispersão do centro e da direita. Dispersão esta provocada em parte – como adiante se verá – pela desorientação e pela fragmentação de considerável parcela do eleitorado católico. Se se tratasse do aumento do número de eleitores especificamente esquerdistas, o fenômeno talvez fosse dificilmente reversível. Mas, vindo a derrota da desorientação do centro e da direita, tudo pode ainda ser reconquistado. À vitória socialista de 81 poderá suceder, pois, uma derrota da esquerda nos prélios eleitorais futuros. Sirvam estas considerações de alento às pessoas que imaginam ser definitiva a conquista do terreno pelo socialismo. E que, assim, em lugar de se organizarem desde já numa oposição ordeira mas briosa, inarredável e fecunda, correm em direção aos vencedores para estender-lhes a mão e colaborar com eles. Desse modo renunciam a lutar para deter seu país na rampa (que eles mesmos reconhecem resvaladia) do socialismo, rumo ao comunismo (que eles mesmo reconhecem mortal). Explicação que apresentam: a vitória socialista é um fato consumado. Aliás, seria o caso de perguntar se há fatos consumados neste mundo instável de hoje.
4 . Posta a vitória do PS, o que fazer? – A encruzilhada De momento, porém, os fatos aí estão... O PS tem hoje o Poder Executivo. E mesmo sem levar em conta o apoio dos 44 deputados do Partido Comunista, e de 20 outros deputados de pequenos partidos de esquerda, o PS dispõe da maioria absoluta na Câmara, com 265 deputados num total de 491 cadeiras. Para a reconquista de tudo que acaba de perder, a França do centro e de direita está pois na contingência de optar sobre qual a melhor estratégia em relação ao PS. Mas para tal, é necessário que ela defina para si mesma o que é o PS, que opte entre a versão algum tanto folclórica de um PS oportunista e bonacheirão; e a cognição da realidade, isto é, de um PS propulsionador eficiente da marcha gradual mas decidida para o coletivismo integral.
Face ao incremento das esquerdas que a vitória do PS e a instauração do regime socialista na França acarretarão – por via de repercussão e pelas já anunciadas ingerências do governo francês atual – nos outros países, análoga questão estratégica se põe também nestes, para os elementos de centro e de direita. A vitória do socialismo francês já começou a despertar em políticos de esquerda da Europa e da América a impressão de que a bandeira socialista se carregou subitamente, em todo o Ocidente, de um novo poder de atrair as multidões. Imaginam eles que o socialismo revelou na França uma força eleitoral muito maior do que a verdadeira. E fogachos de entusiasmo socialista autogestionário começam a se fazer sentir em várias nações. Se a verdadeira imagem do PS corresponde à do bonacheirão, estas perspectivas socialistas não apresentam risco maior. Se, pelo contrário, o socialismo francês visa exatamente as mesmas metas finais do comunismo, então é necessário esclarecer e alertar a opinião pública. Tanto mais quanto ninguém sabe até onde pode chegar, em nossos dias, a instrumentalização de qualquer tendência esquerdista na opinião pública, por obra da guerra psicológica revolucionária que Moscou move, com evidente êxito, em todo o mundo.
5 . A escolha da estratégia: aspectos do socialismo francês Sendo certo que a escolha dessa estratégia tanto mais adequada e rapidamente se fará quanto mais fiel e objetiva for a imagem que desde já o público se forme do PS – e na impossibilidade de abarcar no presente resumo global tão vasto tema – parece este o momento oportuno para divulgar vários traços característicos da doutrina e das táticas do PS francês, de maneira a fazer cair desde logo as ilusões otimistas que podem propiciar a lentidão e a frouxidão na luta contra tão grave perigo.
II – Doutrina e estratégia no projeto de socialismo para a França
1 . “Liberdade, igualdade, fraternidade” no “Projet socialiste” É próprio ao lema ser substancioso e preciso. Não corresponde a isto a trilogia da Revolução Francesa: “Liberdade, igualdade, fraternidade”. Entre as múltiplas interpretações e modos de aplicação a que tem dado azo, algumas deixaram na História marcas de impiedade, de desvario e de sangue que jamais se apagarão [4]. Uma das interpretações mais radicais a que a trilogia se presta pode ser enunciada como segue. A justiça preceitua que haja uma igualdade absoluta entre os homens. Só esta, suprimindo qualquer autoridade, realiza inteiramente a liberdade e a fraternidade. A liberdade só admite um limite: o indispensável para impedir que homens mais dotados constituam em proveito próprio alguma superioridade de mando, de prestígio ou de haveres. A verdadeira fraternidade decorre do relacionamento entre os homens inteiramente iguais e livres. De 1789 até 1794 os sucessivos líderes revolucionários se foram inspirando em interpretações da famosa trilogia, cada vez mais próximas deste enunciado radical. Já agonizante, a Revolução Francesa tão aparatosamente moderada em seus primeiros dias, teve espasmos de significado nitidamente comunista. Como que repetindo em câmara lenta o processo dessa Revolução, o mundo democrático levou – ou está acabando de levar – às suas últimas conseqüências o nivelamento político das classes, muito embora ainda conserve aspectos hierárquicos em sua cultura, como em seu regime social e econômico. Pode-se discutir os fatos, os lugares e as datas em que, no século XIX, começaram os principais movimentos em favor do nivelamento cultural sócio-econômico. O certo é que, em meados do século, eles se tinham estendido a muitos países e haviam adquirido forte consistência em vários. A ponto de inspirarem acontecimentos como, na França, a Revolução de 1848 e a Comuna de 1871. Ademais, é patente em nosso século a presença deles entre os fatores profundos da Revolução russa de 1917, e em conseqüência a propagação do regime comunista aos países além das cortinas de ferro e de bambu, e outros [5]. Sem falar de todas as revoluções e agitações comunistas que têm abalado diversas partes do mundo. Entre as quais a explosão da Sorbonne de maio de 1968. O Projet Socialiste pour la France des années 80 – com base no qual o PS concorreu às últimas eleições (cfr. Nota 1) – se insere explícita e até ufanamente neste movimento geral [6]. Lendo-o, constata-se claramente que sua meta última é a igualdade completa, da qual nasceriam a liberdade e a fraternidade integrais [7]. Para ele, o fim principal do poder consiste em impedir que a liberdade produza desigualdades [8]. É verdade que a supressão inteira da autoridade, ele a qualifica de utopia. Mas a utopia não é, na lógica dele, um vazio, transposto o qual se despenca no caos do anarquismo. Pelo contrário, é um horizonte em direção ao qual se deve voar mais e mais, valendo-se de todos os meios para chegar tão perto (ou tão pouco longe) quanto possível do irrealizável. Isto é, da supressão desse mal necessário, mas quão antipático, que é, segundo ele, a autoridade [9].
2 . O PS, o centro e a direita Nesta perspectiva global se explica todo o Projet [10]. O Projet aceita, e assume por inteiro, a herança política radicalmente igualitária acumulada na França a partir de 1789. Estima como medidas úteis as diversas leis postas em vigor até estes dias, para reduzir as desigualdades sociais e econômicas. E, ademais, quer pôr resolutamente em marcha a França de hoje, rumo à aplicação mais radical da discutida trilogia [11]. A fronteira entre o PS de um lado, o centro e a direita de outro, está em que estes dois últimos – pelo menos em sua maioria – aceitam a trilogia, não porém na interpretação radical que lhe dá o PS. De sorte que, em lugar de se afirmarem desejosos de alcançar a meta igualitária última, dizem ou deixam entrever que desejam parar a uma distância indefinida desta [12].
3 . PS e comunismo – A estratégia da gradualidade Tem o PS uma fronteira definida que o distingue do comunismo, na estratégia rumo à meta última que é a igualdade total? Sim: a) o PS teme que uma efetivação imediata da igualdade total desperte reações de tal vulto, que mais convém evitá-las; b) por esta razão, toda de circunstância, oportunidade e estratégia, segundo o PS a aplicação dos princípios comunistas deve ser gradual, e as etapas dessa gradualidade devem ser medidas de forma a evitar choques excessivos [13]. Certa moderação inicial dos socialistas franceses, na transição para a igualdade total, não é pois efeito de simpatia, compaixão ou indulgência para com o adversário vencido. É a transposição para a ação de um cálculo estritamente utilitário, e muito anterior à vitória. Convém entretanto sublinhar que o igualitarismo radical do PS francês procura beneficiar-se da experiência sócio-econômica – que sabemos dura e decepcionante – de todos os países em que o comunismo tem ou teve vigência. Por isso evita ele, em larga medida, as estatizações, tão características do comunismo old style, e visa implantar na totalidade – ou quase tanto – das empresas até aqui privadas, outra forma de igualitarismo democrático e radical. É a autogestão. [14]
4 . Autogestão na empresa: mini-revolução sócio-econômica A autogestão constitui, em miniatura, a implantação dos princípios e da forma de governo da Revolução de 1789, na empresa [15]. Todo o Projet parece ver nas relações patrão-assalariado uma imagem residual das relações rei-povo. Ele quer “destronar” o “rei”, extinguir-lhe a “soberania” na empresa, e transferir todo o mando ao nível da “plebe” empresarial, isto é, os assalariados. Mais especialmente aos trabalhadores manuais. A Revolução empregou diversas medidas para evitar que se reconstituíssem, no plano político, aristocracias de diversas índoles. Analogamente, o Projet se empenha em evitar que os diretores e os técnicos sobrevivam como aristocracias na empresa “republicanizada”. O proprietário individual desaparece desde já nas empresas “grandes”. O próprio conceito tradicional de empresa é alargado. Participam de um direito real sobre ela, e sobre o que ela produz, não só os que trabalham, como também delegados de organizações representativas dos consumidores, dos fornecedores etc. Ou seja, da sociedade inteira, especificada nos corpos ou grupos proximamente atinentes à empresa (ver Quadro IV – A empresa autogestionária ideal proposta pelos socialistas). À maneira de uma república democrática, cada empresa, regida em suprema instância pelo sufrágio universal dos trabalhadores, terá suas assembléias laborais para receber informações sobre o curso de todas as coisas a ela atinentes, terá suas eleições de ‘representantes’, ou seja, ‘deputados’, os quais constituirão um comitê diretivo (mais ou menos um soviet), e este, por sua vez, terá como meros executores de sua vontade os empregados-diretores. Esse regime a si próprio se define como autogestionário, e se afirma como o lógico desdobramento sócio-econômico da soberania popular no campo político. Uma república seria uma nação politicamente autogestionária. Um regime autogestionário importaria na “republicanização” da estrutura sócio-econômica [16]. Ou seja, na implantação de um regime empresarial no qual a direção dos especialistas e dos técnicos é sujeita a assembléias e órgãos nos quais preponderam membros do corpo social de menor desenvolvimento intelectual.
5 . A autogestão deve abranger toda a sociedade e o homem inteiro
Tal “republicanização” deve abranger toda a estrutura social, e não só a empresa. Realmente, segundo o Projet, a plena efetivação da autogestão supõe uma transformação profunda no homem, e a implantação das conseqüências mais exacerbadas da trilogia em todos os setores de atividade que, ademais da empresa, integram a sociedade: a família, a cultura, o ensino, o próprio lazer [17].
6 . Por que a reforma da empresa exige a reforma do homem A reforma do homem: a tal respeito, o Projet esbarra exatamente nas mesmas dificuldades que o comunismo estatista. Os princípios econômicos vigentes no Ocidente, mesmo quando tenham dado ocasião a abusos, emanam da própria natureza humana. Eles podem caracterizar-se, resumidamente, pela afirmação da legitimidade da propriedade individual, bem como da iniciativa e do lucro privados. Os socialistas se propõem, no entanto, implantar outro sistema econômico, orientado para outras finalidades e a partir de outros incentivos (cfr. Projet, p. 173). À idéia do que eles qualificam de lucro só para alguns deve substituir-se progressivamente o critério da utilidade social, determinada pela vontade soberana do povo. Ou seja, os socialistas, como os comunistas, afirmam que o indivíduo existe para a sociedade, e deve produzir diretamente, não para seu próprio bem, mas para o da coletividade a que pertence. Com isto, o melhor estímulo do trabalho cessa, a produção decai forçosamente, a indolência e a miséria se generalizam por toda a sociedade. Com efeito, cada homem procura, pela luz da razão como também por um movimento instintivo contínuo, possante e fecundo, prover antes de tudo a suas necessidades pessoais e às de sua família. Quando se trata da própria conservação, a inteligência humana mais facilmente luta contra suas limitações, e cresce tanto em agudeza como em agilidade. A vontade vence com mais facilidade a preguiça e enfrenta com maior vigor os obstáculos e as lutas. Em suma, o trabalhador atinge o nível de produtividade quantitativa e qualitativamente correspondente às reais necessidades e conveniências sociais. É a partir desse impulso inicial – túmido de legítimo amor de si e dos seus – que o homem projeta as ondulações mais largas do amor ao próximo, as quais devem abarcar, em última etapa, todo o corpo social. E assim sua atividade, longe de beneficiar apenas o seu pequeno grupo familiar, toma amplitude proporcionada à sociedade. O socialismo, abolindo este primeiro estímulo natural e poderoso do trabalho, e instaurando, pelo contrário, um regime salarial cada vez mais igualitário, no qual os mais capazes não vêem compensado proporcionadamente seu maior serviço, instila o desânimo em todo trabalhador. Assim, todo o jorro da força de trabalho nacional se torna baixo, fraco, insuficiente, como acontece de modo tão evidente na Rússia e nos países satélites. Como acontece também, embora de modo talvez menos evidente, na Iugoslávia. E como acontecerá analogamente na França autogestionária [18]. Importa acentuar aqui a força de estímulo da desigualdade e o efeito depressivo da igualdade geral, bem como das desigualdades microscópicas. Numa sociedade igualitária, é inevitável que o ganho do trabalhador tenha um teto, igual para todos, ou tetos muito pouco desiguais. Quanto nela seja pequena essa desigualdade, torna-se patente se a coompararmos às desigualdades de tetos do regime sócio-econômico em vigor no Ocidente. Convém ponderar que, pela própria natureza das coisas, a capacidade de trabalho varia imensamente de homem para homem, e que a produtividade global do trabalho de uma nação supõe o pleno estímulo de todas as capacidades, notadamente a dos super-capazes. No regime sócio-econômico em vigor no Ocidente, os horizontes para as legítimas ambições dos super-capazes são indefinidos. Postos eles a caminho, estimulam de proche en proche toda a hierarquia das capacidades necessariamente menores, as quais têm também, diante de si, possibilidades de êxito proporcionadas. Limitado o surto dos super-capazes ou dos capazes, o ímpeto de produção do trabalho diminui. Aliás, onde os super-capazes efetuam um trabalho menor do que suas forças, os capazes são, por sua vez, desestimulados, e todo o nível da produção baixa. O igualitarismo conduz, assim, e necessariamente, a uma produção inferior à soma das capacidades de trabalho de um país. E tanto menor quanto esse igualitarismo for mais radical. Ora, não parece que o teto concedido pelo Projet faça mais do que atender as modestas aspirações dos medianos.
7 . A sociedade autogestionária e a família Pelo visto, o Projet parece imaginar que a família, como objeto imediato do amor do homem e escalão intermediário entre este e a sociedade, não transmite multiplicado, mas, pelo contrário, veda o élan do amor do homem a todo o corpo social. Por isto, sem proibi-la (o que seria desde logo chocante e pouco gradualista), ele a declara veladamente desnecessária para o bem comum, pondo-a no mesmo nível que o amor livre e a união homossexual [19]. A função procriativa, intrínseca à família, é desvinculada, pelo Projet, de seu fim natural, e é considerada como mera realização do indivíduo. A esterilidade dessa função é permitida e facilitada de todos os modos [20]. A igualdade entre o homem e a mulher deve ser a mais completa possível, não só quanto ao acesso às mais variadas profissões, como no cumprimento dos afazeres domésticos [21]. Instável, estéril, no socialismo autogestionário a família se desidentificará naturalmente de si mesma, e se confundirá com qualquer união. Ruirá assim uma das muralhas que apoiam a personalidade de cada indivíduo. E, como se verá, a missão educativa, tão naturalmente própria à família, o Projet visa entregá-la por inteiro, e desde os primeiros anos, à escola, de preferência única, laica e socialista. Assim, avulso desvinculado da família, reduzida aliás ao mero casal, o homem só tem como ambiente a empresa autogestionária, a qual fica nas condições mais favoráveis para o absorver todo inteiro, bem à maneira socialista.
Para essa absorção, o PS – tão totalitário em benefício da sociedade autogestionária, como o é o comunismo em benefício do partido – se empenha também em organizar e em instrumentalizar o lazer humano. Com efeito, o Projet entra também neste campo que, a não ser regulamentado por ele, seria um refúgio último da liberdade humana no mundo autogestionário. Pois no lazer o homem encontra peculiares possibilidades de se conhecer a si próprio, de se exprimir, de formar relações e amizades. Sempre gradualista, o PS afirma reconhecer o direito do homem ao lazer. O leitor mediano, bem impressionado com isto, não se dá conta assim de que o PS – fundamentalmente organizador e diretivo no que diz respeito ao trabalho – professa uma concepção nova do lazer... a qual apaga as fronteiras entre este e o trabalho, e estabelece o planejamento simultâneo de um e de outro. O PS não é simpático ao lazer individual e personalizante. Ele deseja o lazer coletivo. E até o lazer no domicílio é por ele planejado, a fim de manipular melhor os homens, preparando-os para as pesadas e estéreis labutas da vida autogestionária [22].
9 . O controle das condições de vida Na sociedade autogestionária, a empresa organiza totalitariamente o trabalho-lazer. Quem organizará o lazer-trabalho? A constituição de organismos dirigistas se impõe neste campo, mesmo porque o PS visa anemizar e, por fim, destruir a família, campo natural, por excelência, do lazer verdadeiro. O PS estimula assim a criação de associações de bairro e similares, das quais parece esperar uma ação decisiva na distribuição das moradias, e na redistribuição não-segregativa dos bairros existentes ou por serem construídos. Mais ainda: do próprio arranjo interior das residências. Assim, organismos correlativos com a empresa absorverão em favor do plano socialista os instantes, os restos de energia, os próprios haustos de vida que a atividade da empresa não tenha absorvido. A vítima de tanta absorção é o indivíduo, arregimentado e “enquadrado” nos “quadros de vida” (“cadres de vie”) autogestionários, e absorvido inteiramente pelo todo empresa-associações paralelas [23]. O esquema da argumentação com que o PS procura justificar essa gigantesca absorção é sempre o mesmo: a ) proclamação de um direito individual; b ) afirmação de uma função social desse direito; c ) planejamento dirigista do exercício desse direito, sob a alegação que deve desempenhar sua função social; d ) conseqüente absorção do direito por meio de lei planejadora.
Resta ainda tratar da formação socialista e autogestionária da infância e da juventude. Segundo o Projet, a educação começa ao mais tardar aos dois anos, quando é absolutamente desejável que a criança seja entregue a uma escola de grau pré-primário ou maternal. Entretanto, a sociedade deve estar aparelhada para receber, com toda normalidade, as crianças cujas mães prefiram entregá-las à educação socialista a qualquer momento, inclusive quando recém-nascidas [24]. Como tudo isto confere com a esterilidade planificada, da família autogestionária! Em um período de transição “gradualista”, certas escolas poderão ainda continuar em regime de ensino particular. Mas, mesmo estas serão conectadas com a máquina estatal de ensino, a qual abrangerá todas as etapas desde o pré-primário até o universitário e o pós universitário. Seus diretores, professores e funcionários terão assim, na escola pública ou privada, papel muito análogo, se bem que não idêntico, ao dos diretores e dos técnicos na empresa autogestionária. Dentro do princípio da “planificação democrática”, dela participarão igualmente os pais e as mães, como os demais interessados no processo de educação. A “plebe” escolar, isto é, o corpo discente, terá no regime da autogestão – em toda a medida do imaginável, e até em muito do inimaginável – direitos análogos aos dos trabalhadores da empresa autogestionária [25].
Mais ainda. Na escola como na família, a “plebe” infantil ou juvenil será motivada e estimulada à luta de classes sistemática contra as autoridades docentes ou domésticas, terá suas assembléias, seus órgãos de apelação e de julgamento etc. [26]. O currículo escolar, o conjunto do pessoal docente e o sentido socialista e laico da formação da inteligência deverão estar sob a autoridade do Poder público nas escolas estatizadas ou autogestionárias [27]. O Projet não é inteiramente claro no que diz respeito às escolas que irão sobrevivendo... ou morrendo, em regime privado, na medida em que o disponha a estratégia gradualista. Porém não é difícil conjeturar que elas só conseguirão se subtrair a essa influência e a esse poder, em escassa medida e a título precário. Se tanto... [28]. Tal rede educacional não é totalitária? – O Projet tenta subtrair-se a esta pergunta embaraçosa alegando o plano de direção do ensino, a ser elaborado democraticamente, de modo que todos e cada um possam exprimir sua opinião. Assim, tal plano representaria a vontade de todos. Neste sofisma se baseiam os socialistas para afirmar que o sistema unificado de ensino não é um monopólio. Como tachar de monopólio – dizem eles – um sistema único, é verdade, mas no qual todos estão convidados a participar? Bem se vê que o Projet realiza muito a seu modo a trilogia “liberté, égalité, fraternité”: no momento da decisão coletiva, todos são iguais: o poder decisório toca à maioria. Cabe-lhe decidir por inteiro da matéria educacional. E à minoria toca obedecer. Onde então se realiza a liberdade individual? No momento mesmo em que se dá a votação: pois cada um é livre de discutir e de votar como entenda. E só nesse momento.
11 . O direito de propriedade no regime autogestionário Toda a matéria até aqui exposta torna claro o sentido socialista global (e não apenas empresarial, como imaginam muitos) do regime autogestionário. E também evidencia o caráter gradualista da estratégia do PS. Convém analisar agora especialmente a empresa autogestionária. O leitor habituado às empresas atuais talvez imagine que a aplicação dos padrões da democracia política à vida econômica e social das empresas autogestionárias tem um alcance mais bem literário e demagógico do que real. Engana-se. Como já foi dito, o Poder soberano, a quem compete decidir sobre todas as grandes questões da empresa autogestionária, é realmente a assembléia dos trabalhadores. Dessa assembléia emanarão, por via de votação (pormenor importante: o Projet não fala em voto secreto...), os órgãos diretivos. Por ela serão eleitos os componentes desses órgãos. Para que esse “sufrágio universal” acerte em suas escolhas, o Projet prevê reuniões do operariado de cada empresa, nas quais, ao que parece, os órgãos diretivos darão informações concernentes à empresa, a serem debatidas pelos presentes. Dir-se-ia que cada assembléia operária tentará reproduzir, em alguma escala, a democracia direta dos antigos municípios gregos... Bem entendido, em certa faixa de assuntos, as deliberações deverão ser tomadas em comum com os consumidores, ou usuários, e representantes da coletividade (ver Quadro IV – A empresa autogestionária ideal proposta pelos socialistas). Subsistirá a propriedade privada no regime concebido pelo Projet? Acautele-se o leitor. Pois, segundo a linguagem do Projet, poderá ele receber, de um socialista francês, respostas das mais tranqüilizantes... e ao mesmo tempo das mais vazias. Na linguagem corrente, opõe-se à propriedade estatal a propriedade privada [29]. Neste sentido, a empresa autogestionária pode ser qualificada – sob certos aspectos – de privada. Pois sua situação em face do Estado não se confunde com a da empresa estatizada. O Projet qualifica a empresa autogestionária de “socializada”. Ou seja, não-estatal (privada) sim, mas também não pertencente a indivíduos, pois grosso modo as atribuições do proprietário individual passam para a assembléia dos trabalhadores. A propriedade particular sobreviverá no regime socialista? Só durante um prazo muito exíguo – responde o Projet – no tocante à empresa média e à pequena, numa duração algum tanto maior, e condicionada a múltiplas circunstâncias [30]. A partir de que nível uma empresa deixará de ser qualificada de pequena, e passará a ser tida como média? Analogamente, a partir de que nível a empresa média passará a ser qualificada de grande? Segundo nossos hábitos mentais, formados no atual regime, temos a tal respeito noções genéricas, inspiradas no bom senso. Mas estes hábitos mentais não coincidem com a sociedade nova, a qual gerará outros. Assim, ficará dependendo da lei a fixação desses limites. O que abrirá para o Poder público a possibilidade de ir achatando “gradualisticamente” os níveis das propriedades [31]. De tal forma que em certo número de anos venham a suportar as severas taxações de grande propriedade, empresas agora consideradas médias. E sejam consideradas como propriedades médias, as empresas agora havidas como pequenas. Tudo para que o número de propriedades individuais pequenas (favorecidas de momento no plano fiscal) se restrinja cada vez mais. Bem entendido, na fisionomia geral do Projet, a propriedade privada, mesmo quando reduzida a tão exíguas proporções, toma aspecto de uma contradição. Pois mantém seu caráter individual no seio de uma ordem de coisas todas ela social. De onde decorre que o termo da gradualidade socialista será a completa extinção de toda propriedade individual [32]. Com efeito, o Projet adota a estratégia gradualista, a qual recusa a extinção sumária de todas as propriedades e dispõe as etapas para a extinção gradual delas. Segundo o Projet, o regime autogestionário comportará, durante certo tempo, propriedades pequenas, médias e até grandes. Mas – pelo menos estas duas últimas categorias – em estado agônico, como há pouco foi dito. Como afirmar que, na lógica do seu igualitarismo férreo, o Estado autogestionário não visa, para depois da extinção das propriedades médias e grandes, também a das pequenas? Aliás, como poderá um trabalhador do regime autogestionário aceder à condição de proprietário, com o simples acúmulo do que recebe para seu sustento? Ao cabo de quanto tempo de trabalho? Para fruir então de sua propriedade apenas alguns poucos anos? Para deixá-la ao filho havido de algumas de suas ligações, entregue na primeiríssima infância ao Estado, e cuja mentalidade tenha sido modelada exclusivamente por este, de sorte que seja um estranho para seus próprios pais, aliás verossimilmente estranhos também um para o outro, pois unidos numa ligação instável? Essas perguntas tornam bem claro quanto a propriedade, mesmo a pequena, se incrusta de modo forçado na contextura do mundo autogestionário. Ou seja, só vai sobrevivendo neste por gradualismo [33].
12 . A propriedade rural no “Projet socialiste” O Projet se deixa conhecer muito mais em suas metas, do que nas etapas que admite ou tolera por necessidade estratégica. Nesta perspectiva, qual a situação da propriedade rural – isto é, da propriedade pequena e de dimensões familiares – na sociedade modelada pelo PS? A pergunta supõe já eliminadas as grandes e médias propriedades. O Projet – como também a Declaração de política geral do Governo feita pelo Primeiro-Ministro Pierre Mauroy – são vagos e ambíguos nesta matéria. O Projet propõe medidas que, à primeira vista, seriam de sentido comum e de proteção ao agricultor: desenvolvimento da produção, organização dos mercados, revalorização da condição do agricultor e garantia da terra. A única exceção é um sistema de proteção dos preços dos produtos agrícolas, logicamente só – ou quase só – para os pequenos produtores: os demais produtores, gradualisticamente tolerados, sobrevivam como puderem, ou definhem. Pergunta-se qual a consistência dos direitos do pequeno proprietário, já que o elemento principal das proposições socialistas é a criação de “conselhos fundiários” (“offices fonciers”), os quais organizarão os mercados e, entre outras coisas, estarão “encarregados de promover uma melhor distribuição e utilização da terra”. Ademais, esses “conselhos fundiários” consistirão na autogestão coletiva do conjunto dos pequenos proprietários e dos consumidores sobre o conjunto das terras cultiváveis. O que sujeitaria a cada momento toda pequena propriedade a modificações dos limites, divisões ou amalgamações em uma situação de reforma agrária permanente, e em uma ditadura sobre os preços agrícolas [34]. Visto assim no conjunto o que o Projet dispõe sobre a sociedade autogestionária, ocorrem duas perguntas concernentes ao âmago do pensamento que o inspira: é ele realmente liberal? Contém ele algo sobre religião? – É o que se passa a expor.
III – O cerne doutrinário do “Projet socialiste”: laicidade – “liberté, égalité, fraternité”
1 . Direitos do Homem na sociedade autogestionária: informar-se, dialogar e votar Já foi visto que o PS se dispõe a educar o cidadão desde o nascimento até a morte, modelando-lhe a alma no trabalho e no lazer, na cultura e na arte, e influindo até mesmo no arranjo de sua moradia. Que reflexo tem este pendor sobre a liberdade individual? Confirma-se a esta altura o que foi dito de início sobre as relações entre liberdade e igualdade, na trilogia da Revolução Francesa. Se por liberdade se entende o não ter acima de si nada, nem ninguém, e em conseqüência fazer absolutamente o que se queira – pois esse é o significado radical e anárquico do termo – o cidadão autogestionário só será livre na aparência. Efetivamente, porém, não o será em nenhum instante de sua vida. O cidadão autogestionário verá restringir-se cada vez mais a esfera de sua escolha puramente individual, na qual externe o caráter único e inconfundível de sua personalidade. Pois no trabalho, como no lazer, ele terá liberdade de ser informado, de dialogar e de votar. Mas de ordinário a decisão tocará à coletividade. Sua liberdade se cingirá em dizer o que entenda nos debates públicos, e em votar como queira. Como eleitor quando das escolhas de nomes, e um votante quando das assembléias deliberativas, ele é livre. Como indivíduo, ele é empurrado pelo Projet até os limites do não-ser. [35] Não imediatamente em benefício do Poder público, mas de um tecido ou um mecanismo social composto por grupos autogestionários empresariais e não-empresariais. O gráfico real do Poder na sociedade autogestionária, a partir das assembléias, passando pelos comitês e demais órgãos da sociedade, deverá ter por outro extremo o Estado. Bem entendido, enquanto a autogestão não rume para a desagregação final do Estado e a disseminação dos poderes deste em pequenas comunidades autocéfalas [36]. Na ótica do trabalhador, esse gráfico poderia ter o traçado de um losango. Em um ângulo estaria sua própria empresa, dentro da qual ele é molécula falante e votante. No ângulo oposto estaria o Estado. Mas este último se situaria no ápice do losango, e a assembléia dos trabalhadores no vértice inferior. Não que, uma vez implantada a autogestão, esta seja mera fachada atrás da qual o Estado manipule tudo. Tal pode suceder. Porém, não se consideram aqui as deformações que a sociedade autogestionária pode sofrer na prática. Só se tem em vista a miragem socialista se em sua inteira genuinidade ela fosse posta em prática. Assim, o que vem ao caso salientar é que, na lógica do Projet: a) implantada a sociedade autogestionária, os poderes do Estado irão minguando “gradualisticamente”; b) porém, no ato de a implantar por lei, ele é onipotente. E enquanto tal lei servir de fundamento e de norma a essa sociedade, é em virtude da onipotência do ato estatal que a constitui e que a organizou que ela viverá. Ato estatal que ao Poder público será facultado abrogar, ou ampliar como e quando entenda... pelo menos enquanto existir; c) tão amplos poderes o Estado não exerce nas sociedades do Ocidente. Os Estados do Oriente e do Ocidente adotaram em tese o princípio da soberania do sufrágio universal. Mas essa soberania é autocoibida no Ocidente pelo reconhecimento de liberdades individuais mais amplas, ou menos. Enquanto no Oriente esse princípio não tem valia efetiva. E, como se vê, não o terá na sociedade autogestionária, na qual a liberdade do indivíduo só consiste no uso da palavra e do voto nas assembléias. Assim, o Estado é quem dispõe tudo sobre a sociedade autogestionária. Ele aniquila a família, e a substitui. Ele outorga às moléculas autogestionárias o farrapo de direitos que lhes restará na sociedade, ele tem o poder ilimitado de legislar sobre a autogestão empresarial, docente, ou de qualquer outro tipo. Ele ensina. Ele forma, ele nivela, ele preenche os lazeres. Em suma, ele se instala na mente do indivíduo. A este só resta a condição de autômato, cujos sinais de vida própria são tão-só informar-se, dialogar e votar. Esta trilogia seria a efetivação concreta da outra: “Liberdade, igualdade, fraternidade”. Em uma palavra, a sociedade autogestionária tem uma moral, uma filosofia próprias [37], que o trabalhador autômato inalará até mesmo no ar que respira.
2 . A Religião e as religiões, no “Projet” A sociedade autogestionária não se limita a eliminar ou tolher as liberdades do indivíduo, mas, como se viu, procura formar até a sua própria consciência. Estas considerações conduzem naturalmente a analisar até que ponto os direitos da Religião são mutilados pelo Projet. a) Este último é laico em cada uma de suas palavras, dir-se-ia em cada uma de suas letras. Ele não cogita de Deus. Para ele, a fonte de todos os direitos não é Deus, mas o homem, a sociedade. O Projet ignora inteiramente a outra Vida, a Revelação, a Igreja como Corpo Místico de Cristo [38]. b) A Religião – para o Projet, as religiões, pois ele não reconhece o caráter sobrenatural de nenhuma – são apenas fatos sociais que sempre existiram, e ainda existem. Fatos extrínsecos à sociedade autogestionária, e frontalmente discrepantes da laicidade dela. Isto induz a prever que a sociedade autogestionária, a qual tende a destruir tudo que lhe é extrínseco e contraditório, trabalhará para extinguir “gradualisticamente” as religiões. É bem certo que o Projet lhes garante a liberdade de culto. Mas circunscrita a um limite verdadeiramente mínimo, pois toda a ordem temporal será concebida e efetivada em sentido oposto ao da Igreja: a economia, a organização social, o totalitarismo político, a perpetuação da espécie humana, a família e até o próprio homem [39].
O Projet implica em uma visão de tal maneira global da sociedade, que tem necessariamente – se bem que de modo implícito – como pressuposto uma visão também global do Universo. Pois este último é, de algum modo, o contexto da sociedade. Uma sociedade global, laica e fechada em si mesma corresponde a um universo analogamente laico, global e fechado em si mesmo. Por sua vez, uma visão do Universo implica na afirmação ou na negação de Deus. Negação perfeitamente autêntica, ainda que sua forma de expressão seja o mutismo [40]. O Projet é portanto “a-teu”, sem Deus: ateu. O silêncio dele acerca de Deus – é lícito perguntar – não é mera etapa “gradualista” rumo a algum panteísmo, verossimilmente evolucionista? A referência a este eventual panteísmo corresponde à função por assim dizer redentora que o Projet atribui à coletividade, na qual o indivíduo se resgata do naufrágio em que o põe sua própria condição individual. É a via para a solução de todos os problemas [41]. Por sua vez, a referência ao evolucionismo se relaciona com o caráter arbitrário, antinatural e artificial, do reformismo socialista. E, mais ainda, do relativismo fundamental que professa [42]. A partir de concepções filosóficas muito obscuras, mas cuja influência o percorre de ponta a ponta, o Projet nega os princípios mais fundamentais da ordem natural (como a diferenciação entre a missão do homem e da mulher, a família, a autoridade marital, o pátrio-poder, o princípio da autoridade em todos os níveis e em todos os campos, a propriedade individual, a sucessão hereditária). O Projet visa reconstruir – a bem dizer em pé de guerra contra a obra do Criador – uma sociedade humana ao revés da natureza que Deus criou para o homem. Tudo isso pressupõe que a natureza, postulada pelo PS como indefinidamente maleável, pode ser modelada pelo homem como ele entenda. O que faz pensar no sistema evolucionista.
3 . O Episcopado francês ante o PS
Feitas estas considerações, como católicos não podemos calar nosso assombro – que, passada a atual confusão dos espíritos, será o de todas as nações do mundo até o fim dos tempos – à vista de que, ante eleições aptas a abrir o caminho do Poder aos mentores e propulsores do PS, a Conferência Episcopal Francesa não tenha tido uma só palavra de advertência sobre o perigo que o país assim corria. E com ele a Igreja, bem como os escombros ainda vivos da Cristandade. Pelo contrário, nas duas declarações que então divulgou (10 de fevereiro e 1º de junho p.p.), o Conselho Permanente do Episcopado francês manifestou sua neutralidade ante os vários candidatos, afirmando não “querer pesar sobre as decisões pessoais” dos católicos franceses e fazendo um apelo para que a campanha eleitoral fosse vivida “no respeito dos homens e dos grupos, inclusive os adversários” (Nota do dia 10 de fevereiro de 1981) [43]. Na declaração do dia 1º de junho, “por ocasião das
eleições legislativas”, os Bispos assinalaram que “é próprio de uma sociedade democrática” escolher entre projetos e programas que "se proclamam e se opõem”. Assim, a Igreja Católica, ao apresentar “sua própria reflexão sobre o futuro próximo de nossa sociedade”, fazia-o “não para apoiar um grupo ou se opor a quem quer que seja, mas para atrair a atenção sobre os valores essenciais da vida pessoal e comunitária dos homens”. Com tal procedimento, pretendiam os Bispos contribuir “para a dignidade e a generosidade do debate” [44]. Tal atitude é coerente com o documento Pour une pratique chrétienne de la politique, aprovado pela quase unanimidade dos Bispos em Lourdes, em 1972 (cfr. Politique, Eglise et
Foi, Le Centurion, Lourdes, 1972, pp. 75-110). Nesse documento os Prelados constatam que “os católicos franceses cobrem hoje todo o leque do tabuleiro [sic] político”(op. cit., p. 80), ou seja, também o PS e o PC. Ante esse fato monumental, os Bispos afirmam simplesmente a legitimidade do pluralismo e comentam com evidente simpatia o engajamento de “numerosos cristãos” no “movimento coletivo de libertação” animado pela luta de classes de inspiração marxista, a qual não condenam em termos definidos [45].
Diante desses precedentes, já não causa maior estranheza o fato – de si também assombroso – de que a doutrina socialista há cerca de dez anos venha penetrando impunemente no rebanho confiado pelo Espírito Santo ao zelo e à vigilância dos Pastores franceses. De forma que a votação dos católicos tresmalhados para o eleitorado socialista colaborou ponderavelmente para a vitória autogestionária nas últimas eleições [46]. Considerando esses fatos – e tantos outros há no mundo contemporâneo – compreende-se melhor toda a realidade de que a Santa Igreja se encontre hoje, como constatou Paulo VI, num misterioso processo de “autodemolição” (alocução de 7-12-68), e de que nEla haja penetrado, segundo o mesmo Pontífice, a “fumaça de Satanás” (alocução de 29-6-72).
IV – Intervenção nos assuntos internos da França? Tanto a eleição de um Chefe de Estado quanto a dos deputados à Câmara Legislativa constitui, para cada país, um assunto interno, e sua liberdade de proceder a esses atos sem ingerência do Exterior é um elemento fundamental da própria soberania. Nessas condições, poder-se-ia estranhar que treze associações, sendo doze de outros países que não a França, se julguem no caso de dar a público em todo o Ocidente uma Mensagem cujo tema essencial é um comentário das recentes eleições francesas. Comentário este, por sua vez, voltado a propiciar a escolha de uma estratégia ante o resultado que elas trouxeram. Mas tal objeção só é concebível da parte de quem ignore o inteiro alcance do Projet socialiste, a natureza do PS francês, bem como a inevitável e ampla repercussão da vitória socialista na vida política e cultural dos vários povos do Ocidente. De fato, o Projet afirma ter como uma de suas metas, a interferência na política interna, e mais especialmente na luta de classes dos demais países. Portanto, uma vez que se assenhoreou do Poder, é de temer que utilize os recursos do Estado francês, e da irradiação internacional da França, para levar a cabo tal propósito [47]. Assim, para as doze associações estrangeiras, tomar posição em documento publicado na França e em suas respectivas nações, ao lado da querida e promissora TFP francesa, acerca das metas e da atuação do PS, não é intervir em assuntos exclusivamente internos de outro país. Mas é prevenir o dia de amanhã de suas próprias pátrias. Publicando o presente pronunciamento, as TFPs e entidades congêneres do Brasil, Argentina, Bolívia, Canadá, Chile, Colômbia, Equador, Espanha, Estados Unidos, Portugal, Uruguai e Venezuela, conjuntamente com a TFP da França, não fazem senão exercer seu direito de legítima defesa. É pois coerente que entidades de doze países do Ocidente se dirijam a seus conacionais alertando-os para os problemas que a ascensão do PS francês faz prever. E que, com o apoio dos irmãos de ideal franceses, também tornem presente ao povo da França as complicações internas nas quais este possa ver-se emaranhado pela concepção prevalentemente ideológico-imperealista que o Projet tem acerca da política internacional. A Providência deu à França uma situação tal no conjunto das nações do Ocidente que os problemas surgidos, bem como os debates que a propósito destes nela se travam, correspondem, com habitual freqüência, a problemas universais. O gênio francês, ágil em conscientizar, lúcido no pensar, brilhante no exprimir, sabe debater esses problemas numa clave que os relaciona, em numerosas conjunturas históricas, com as cogitações universais da mente humana. Assim, tratando da atual situação na França, as sociedades que subscrevem esta Mensagem se dão claramente conta de que muitas questões atualmente em fermentação mais ou menos latente em seus respectivos países poderão ter seu curso apressado e quiçá arrastado ao ponto crítico, em função da repercussão mundial do que na França destes próximos meses venha a se passar (cfr. Cap. I, no. 4). Razão a mais para afirmar que presentemente o socialismo autogestionário não cria graves perspectivas só para a França mas para o mundo.
V – Glorioso porvir da França segundo São Pio X
É-nos grato encerrar estas considerações pedindo a Nossa Senhora, Medianeira Universal das Graças, que torne confirmadas pelos fatos as palavras, com ressonâncias proféticas, do santo e inexcedível Pontífice São Pio X, concernentes à França:
“Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará”, prometeu Nossa Senhora em Fátima. É o que Lhe pedimos para a França e para o mundo.
No 64° aniversário da última aparição de Nossa Senhora em Fátima São Paulo, 13 de outubro de 1981
NOTAS [1] A caracterização do PS, aqui feita, se baseia em segura documentação. Do Congresso de Epinay, em 1971, nasceu o atual Partido Socialista. A nova entidade política vem desde então dando à luz diversos documentos oficiais de caráter doutrinário e programático, especialmente por ocasião de seus congressos nacionais (de dois em dois anos) e das campanhas eleitorais. Ao que se soma um significativo número de publicações internas, destinadas à formação de seus aderentes, ou a difundir as conclusões de diversos colóquios e jornadas de estudo do Partido. Na impossibilidade de utilizar todos os textos oferecidos por essa abundante produção, serão citados aqui de preferência três documentos absolutamente fundamentais do PS: A) O Projet socialiste pour la France des années 80 (Club Socialiste du Livre, Paris, maio de 1981, 380 pp.), apresenta as ambições do socialismo francês para os próximos dez anos. O Projet redefine as prioridades socialistas e anuncia de antemão as grandes iniciativas que marcarão diante do povo francês o sentido da ação do PS. Cumpre notar que ele não abroga os textos e programas anteriores do Partido (aos quais se fará referência em seguida). Antes “Ele os prolonga, ampliando-lhes ao mesmo tempo o campo de ação e o panorama”(op. cit., p. 7). Foi o Projet aprovado por 96% dos votos, na Convenção nacional do Partido, reunida em Alfortville em 13 de janeiro de 1980. No Projet se inspirou o posterior Manifesto de Créteil, de 24 de janeiro de 1981, bem como as 110 Propositions pour la France, que o acompanham. Com base nesses dois documentos, aprovados por unanimidade no Congresso de Créteil, o Partido Socialista lançou a campanha presidencial de Mitterrand (cfr. “Le Poing et la Rose”, no. 91, fevereiro de 1981). B) Em 1972, o PS e o PC entraram em negociações para estabelecer um contrato de governo, do que resultou um Programme commun de gouvernement de la gauche, válido por cinco anos. Em 1977, não tendo havido entendimento entre os dois partidos para a renovação do acordo, o PS atualizou sob sua única responsabilidade tal Programa comum. No início de 1978, durante a campanha eleitoral, o PS divulgou o programa atualizado, com o intuito de proporcionar à opinião pública “a possibilidade de julgar com base em documentos” o que o partido faria caso vencesse as eleições, bem como permitir “a todos de acompanhar a sua aplicação”(cfr. Le programme commun de gouvernement de la gauche – Propositions socialistes pour l’actualisation, Flammarion, Paris, 1978, 128 pp. – Prefácio de François Mitterrand, p. 3). C) Finalmente, as Quinze thèses sur l’autogestion, adotadas pela Convenção nacional do Partido Socialista em 21 e 22 de junho de 1975 (cfr. “Le Poing et la Rose”, suplemento do no. 45, 15 de novembro de 1975, 32 pp.), oferecem particular interesse, visto que os socialistas franceses apresentam a perspectiva de uma sociedade autogestionária como “a contribuição própria do PS, no plano teórico por ora, à história do movimento operário”(cfr. “Documentation Socialiste”, Club Socialiste du Livre, suplemento do no. 2, sem data, pp. 42-43) e pretendem ter dado conteúdo novo à idéia autogestionária (cfr. “Documentation Socialiste”, no. 5, sem data, p. 58). Com esses documentos, o PS reputava dar ao leitor comum um conjunto de noções suficientemente amplo, de modo a lhe obter a adesão refletida, e o voto. Eles constituem, pois, por assim dizer, a imagem de si mesmo desenhada pelo PS. Imagem cuja fidelidade não pode ser questionada, uma vez que se deve presumir como capaz de definir-se uma corrente que acaba de conseguir tão destra vitória estratégica. Aliás, os socialistas assumem decididamente a responsabilidade sobre o que publicam como se lê no Projet socialiste – onde se afirma: “Somos os únicos a assumir o risco de expor nossas teses preto sobre o branco, com a irremissibilidade do papel impresso. ... Nós nos mostramos tais como somos”(op. cit., p. 11). Já instalado no Poder, o Primeiro-Ministro socialista Pierre Mauroy apresentou, na sessão da Assembléia nacional do dia 8 de julho, uma Déclaration de politique générale du gouvernement. Nessa Déclaration, e no debate parlamentar que se seguiu, o Primeiro-Ministro confirma a linha geral do Projet socialiste, pelo que fornece também importantes subsídios para a caracterização ideológica e programática do PS (cfr. “Journal Officiel – Débats Parlementaires”, 9 e 10 de julho de 1981). Aliás, o Primeiro-Ministro afirmou expressamente, nessa ocasião, que tinha obtido “do Conselho de Ministros, a autorização de empenhar, nesta declaração de política geral, a responsabilidade do Governo, de acordo com o art. 49 da Constituição” (“Journal Officiel”, 9-7-81, p. 55). • A referência a estes documentos será feita, neste trabalho, de forma abreviada: Projet, Programme commun – Propositions pour l’actualisation, Quinze Thèses, Déclaration de politique générale, respectivamente. Os destaques em negrito nas citações são nossos. • As publicações do PS usam a expressão Projet socialiste seja para designar especificamente o documento Projet socialiste pour la France des années 80, seja, de forma mais genérica, o novo projeto de sociedade que propõem para a França e para o mundo, e que denominam projet autogestionaire. Neste caso, Projet socialiste e projet autogestionnaire são sinônimos. No texto do presente trabalho se mantém o mesmo uso ambivalente da expressão (ora específico, ora geral). O leitor facilmente se dará conta de um emprego e de outro, tanto mais que as citações aqui feitas, das fontes socialistas, não deixam margem a confusão. [2] Embora a aliança entre o PS e o P C seja ostensiva, deve apenas ser ligeiramente dissimulado o beneficiário dela. Ou seja, os socialistas devem assumir posição de destaque. “O Partido Comunista deve aceitar esta evidência da política francesa: a maioria dos franceses não confiará à Esquerda o governo do País se não estiver certa de que o socialismo irá instituir a liberdade em nossos dias. Queira-se ou não, é preciso para tanto que o Partido Socialista surja como a força de animação da aliança. Tal não diminuí em nada o papel que nela deve desempenhar o Partido Comunista”(Projet, p. 366). De seu lado, os comunistas compreenderam bem o seu papel. Segundo o secretário-geral do PS, Lionel Jospin, um milhão e meio de eleitores do PC (um quarto do contingente desse partido) votaram em Mitterrand já no primeiro turno das eleições presidenciais (cfr. “Le Poing et la Rose”, no. 83, 30-5-81, p. 1). [3] Nas referências do presente trabalho à direita, não se inclui a direita tradicionalista francesa, freqüentemente de inspiração católica, cuja presumível atuação nas eleições de 1974, 1978 e 1981 é difícil de discernir, e portanto de avaliar. [4] Na Carta Apostólica Notre Charge Apostolique, de 25 de agosto de 1910, em que condena o movimento francês Le Sillon, de Marc Sangnier, São Pio X assim analisa a célebre trilogia:
São Pio X se insere, portanto, na esteira de seus Predecessores, que desde Pio VI condenaram os erros sugeridos pelo lema da Revolução Francesa. Na Carta Decretal de 10 de março de 1791 ao Cardeal de la Rochefoucauld e ao Arcebispo de Aix-en-Provence, sobre os princípios da Constituição Civil do Clero, Pio XI assim se exprime:
Pio VI condenou reiteradas vezes a falsa concepção de liberdade e de igualdade. No Consistório Secreto de 17 de junho de 1793, confirmando as palavras da Encíclica Inscrutabile Divinae Sapientiae de 25 de dezembro de 1775, declarou o seguinte:
[5] Além das cortinas de ferro e de bambu, o comunismo se implantou nos seguintes países: Coréia do Norte (1945), Vietnã do Norte (1945), Guiné (1958), Cuba (1959), Tanzânia (1964), Iêmen do Sul (1967), Congo (1968), Guiana (1968), Etiópia (1974), Guiné-Bissau (1974), Benin (1974), Cambodge (1975), Vietnã do Sul (1975), Cabo Verde (1975), São Tomé e Príncipe (1975), Moçambique (1975), Laos (1975), Angola (1975), Granada (1979), Nicarágua (1979). No Afeganistão, está no poder um governo de esquerda desde 1978, o qual permitiu, no ano seguinte, que as tropas russas entrassem no país. Entretanto, a guerrilha anticomunista controla a maior parte do território. Além destes, cumpre ter presente os governos marxistas mais ou menos disfarçados vigentes em diversas partes do mundo. [6] “Houve momentos privilegiados em nossa História, que ficaram gravados na memória coletiva: 1789, 1848, a Comuna de Paris e, mais perto de nós, a Frente Popular, a Libertação [da ocupação nazista] e Maio de 1968”(Projet, p. 157). “Da explosão de maio de 1968, o PS recolheu uma boa parte da energia e das aspirações positivas”(Projet, p. 23). “Esta extrema-esquerda difusa (que apareceu aos olhos da opinião pública sobretudo depois de maio de 68) tem o mérito de levantar algumas questões incômodas para todos, o que é útil” (“Documentation Socialiste”, no. 5, p. 36). “Assim, uma sensibilidade nova no seio da Esquerda viu na “Revolução Cultural” nascida na Califórnia durante os anos sessenta – e da qual uma certa ideologia reportando-se a maio de 1968 foi a versão francesa – o advento de uma ‘crítica de Esquerda do Progresso” (Projet, pp. 30-31). [7] “... a própria igualdade, uma das exigências mais importantes, do movimento operário” (Projet, p. 127). “A idéia de igualdade continua sendo uma idéia nova e forte” (Projet, pp. 113-114). “É sem dúvida a inspiração do socialismo francês, mas é também a de Marx que suscita a idéia da tomada do poder pelos produtores imediatos, a da eliminação da divisão do trabalho entre funções de direção e funções de execução, entre trabalho manual e intelectual, e, depois da Comuna de Paris, a do deperecimento do Estado” (Quinze thèses, p. 6). “O questionamento das hierarquias de remuneração deve logicamente ser acompanhado de uma revalorização do trabalho manual e de um desenvolvimento da rotatividade das funções” ( Quinze thèses, p. 10). “Os teóricos socialistas mostraram como as desigualdades apresentadas como ‘naturais’ pelas classes dirigentes poderiam ser progressivamente superadas” (Quinze thèses, p. 10). “A atual divisão do trabalho se verá progressivamente questionada com tudo o que implica de exploração e de alienação. ... Os valores hierárquicos instituídos pela sociedade capitalista concernem a todos os setores da vida social, abrangendo as relações entre homens e mulheres, jovens e adultos, professores e alunos, ativos e inativos etc.”(Quinze thèses, p. 10). “Acabem-se com os preconceitos: que sejam abolidas as barreiras e as hierarquias entre atividades físicas, lúdicas, esportivas... e as outras atividades ditas ‘intelectuais’” (Projet, p. 302). [8] “As sociedades do Leste podem reivindicar, à primeira vista, traços que as aproximam do ‘perfil tradicional socialista’ .... - apropriação jurídica, pela coletividade, dos meios de produção essenciais; - planificação da economia; .... Mas, em contrapartida, quantos traços tornam manifesto que as sociedades do Leste nada têm a ver com o socialismo. Elas continuam sociedades não igualitárias ... A divisão social do trabalho reveste formas que não são substancialmente diferentes das que existem nos países capitalistas. ... Os dirigentes ... exercem, em nome do proletariado, uma ditadura ... sobre o proletariado ... Não só o Estado não se extinguiu, como se tornou uma máquina extremamente eficaz de controle social e policial. ... Por isso, embora os valores afirmados sejam os do socialismo (o que, aliás, não é destituído de importância), não podemos considerar as sociedades do Leste como “socialistas”. A existência de classes sociais diferenciadas e a manutenção de um aparelho de Estado coercitivo ... são inerentes às relações de produção” (Projet, pp. 67-69, 71). [9] “Alguém me dirá: o Sr. fala de autogestão e negligencia precisar-lhe o funcionamento; o Sr. a apresenta como um objetivo abstrato, um caminho quimérico que conduziria a um vago paraíso terrestre. É verdade. Mas há uma razão para isto. Nós não queremos construir uma nova utopia, tão perfeita no papel quão impossível de realizar na prática. A autogestão é uma obra permanente e jamais acabada. ... dizendo isto, permanecemos fiéis ao espírito do marxismo: Marx nunca pretendeu que o fim do capitalismo acarretaria ipso facto a instituição de um regime perfeito por toda a eternidade” (Pierre Mauroy, Héritiers de l’Avenir, Stock, Paris, 1977, pp. 278-279). “A crise de autoridade é uma das dimensões maiores da crise do capitalismo avançado. Maio de 1968 foi, na França, a revelação mais espetacular desse fato: o professor, o patrão, o pai, o marido, o chefe grande ou pequeno, histórico ou que aspira a sê-lo, eis de agora em diante o inimigo. Todo poder é cada vez mais sentido como uma manipulação. ... O detentor da menor parcela de autoridade é por isso mesmo contestado, quando não já desacreditado. Aos olhos do Partido Socialista, a existência desta crise é positiva. ... Desde que ela chegue até o seu termo: o advento de uma democracia nova” (Projet, pp. 123-124). “Uma coisa é certa: não se voltará atrás. As formas tradicionais de autoridade não serão restauradas. E isso, em particular, na família: a revolução contraceptiva, por exemplo, criou as condições de um equilíbrio novo no casal” (Projet, p. 125). [10] “O Projeto socialista é um projeto global e radical de reorganização da sociedade, ainda que deva ser gradual” (Projet, p. 121). “Qualquer que seja o terreno considerado, a iniciativa autogestionária não tem sentido senão quando se insere em uma perspectiva global” (Projet, p. 234). “O Projeto socialista é fundamentalmente cultural. Dois postulados devem ser tomados em consideração ....: a ) A cultura é global: ela ... concerne a todos os setores da atividade humana” (Projet, p. 280). [11] “Declaramos desde logo que consideramos como nossa, por direito de sucessão, a herança da democracia política inaugurada pelos burgueses togados do tempo do rei Luís XVI” (Projet, p. 15). “A perspectiva autogestionária dá sentido às lutas pelo controle, por parte dos trabalhadores, de seu próprio trabalho ...: lutas por vezes confusas, ampliadas após Maio de 68, mas que são o eco de uma longa tradição e de uma exigência tanto moral como material, que se concretizou outrora na Comuna. Enfim, nela desfecha a tradição especificamente francesa da responsabilidade acrescida dos cidadãos, responsabilidade de que os revolucionários de 1789-1793 e de 1848 foram portadores. O projeto autogestionário, tal como o PS o concebe, é inseparável do pleno desenvolvimento das liberdades individuais e coletivas” (“Documentation Socialiste”, suplemento do no. 2, p. 43). “Por todas as ações, a França restabelecerá seus vínculos com uma história que explica, em larga medida, sua audiência no mundo. Não há ... irradiação da França separável de sua cultura e de seu passado. A França, no estrangeiro, é antes de tudo a França da revolução de 1789, a França da audácia. ... Queremos que nosso País, retomando sua tradição, erga alto e conduza longe os valores dos direitos humanos, da fraternidade ...” (Déclaration de politique générale, “Journal Officiel”, 9-7-81, p. 55). [12] A direita tradicionalista francesa, não incluída nas referências genéricas à direita aqui feitas, leva muito mais longe sua rejeição da trilogia. [13] “Os socialistas não aceitam nem as soluções voluntaristas do extremismo de esquerda, nem a política dos pequenos passos dos reformistas, nem o mito da coligação do populismo. ... O extremismo de esquerda é aquela forma particular de voluntarismo chamada maximalismo e que consiste em querer queimar as etapas para alcançar imediatamente o máximo. O maximalismo despreza e rejeita as medidas de transição, para saltar desde logo no socialismo realizado. Não distingue entre objetivo final e reformas intermediárias” (“Documentation Socialiste”, no. 5, pp. 32-33). “Recuso-me a entrar no debate reforma ou revolução. Debate puramente formal. Porque é-se reformista quando se aceitam melhorias temporárias da situação dos trabalhadores, e é-se revolucionário quando se considera necessária uma transformação fundamental da sociedade. Os sindicatos e os grandes partidos operários franceses sempre o admitiram; e fazem disso a base de sua política de todos os dias. Eles não aplicam o jogo irresponsável do “tudo ou nada” (Pierre Mauroy, Héritiers de l’Avenir, Stock, Paris, 1977, p. 274). “O verdadeiro significado de maio de 1968 ... é que a transformação da sociedade exige um programa cujo conteúdo explore o possível. Mudar a sociedade ... é recusar a ilusão de uma revolução que fosse uma derrubada e uma transformação instantânea. Não há transformação instantânea, não há solução rápida e definitiva. É preciso realizar um trabalho de grande fôlego, seguindo uma linha que eu chamaria de “reformismo duro”. Para nós, a revolução é a mudança gradual das estruturas do regime vigente” (idem, ibidem, pp. 295-296). [14] “A noção de autogestão ... se situa no ponto de encontro do socialismo científico com o socialismo utópico (pelo qual Marx e Engels, embora criticando-o, tinham algo mais do que simples respeito)” (“Documentation Socialiste”, suplemento do no. 2, p. 42). “Hoje ... o socialismo pode cada vez mais dificilmente ser edificado segundo um modelo centralizado. É preciso fixar outras metas. O projeto autogestionário é – a partir da propriedade coletiva dos principais meios de produção e da planificação – a inversão da lógica que caracterizou até o presente a evolução das sociedades industriais” (Quinze thèses, p. 6). “Tal projeto autogestionário dá novo conteúdo à noção de utilidade social. Rompendo com uma visão por demais ‘economicista’ do socialismo, não se limita ele à esfera da produção, mas procura resolver os imensos problemas socioculturais. ... O projeto autogestionário associa sua finalidade igualitária ... à intervenção de mecanismos democráticos que permitirão pôr em causa ... a divisão social do trabalho” (Quinze thèses, p. 11). [15] “A democracia francesa [atual] é largamente manipulada. Ela é também cuidadosamente circunscrita. Ela se detém à porta da empresa” (Projet, p. 231). “Estamos resolvidos a promover um progresso decisivo da democracia econômica e social. Cidadãos nas suas comunas, os franceses devem sê-lo também em seu local de trabalho. Os empregadores não devem temer nem contrariar esta evolução desejável e necessária” (Déclaration de politique générale, “Journal Officiel”, 9-7-81, p. 49). “Em nossas sociedades ocidentais, a democracia é mais ou menos tolerada por toda parte. Menos na empresa. O patrão, seja ele um industrial independente ou um alto funcionário do Estado, conserva em mãos os poderes essenciais. Em detrimento de todos. ... A empresa é uma monarquia de estrutura piramidal. Em cada nível, o representante da hierarquia é todo-poderoso: suas decisões são inapeláveis. O trabalhador de base torna-se um homem sem poderes, que não tem direito nem à iniciativa nem à palavra” (Pierre Mauroy, Héritiers de l’Avenir, Stock, Paris, 1977, p. 276). [16] “Democracia econômica e democracia política são indissociáveis, seu desenvolvimento conjunto implica em que todo trabalhador, todo cidadão tenha, em todos os niveis, a possibilidade e os meios de participar de pleno direito na elaboração das decisões, na escolha dos meios, no controle da execução e dos resultados” (Programme commun – Propositions pour l’actualisation, p. 50). “Democracia econômica e democracia social constituem um todo só com a democracia política” (“Documentation Socialiste”, suplemento do no. 2, p. 145). “Os socialistas querem que os franceses deixem afinal de estar sob tuela. A descentralizaçào está no cerne da experiência do governo de esquerda; o qual, nos três meses seguintes a sua ascensão ao poder, procederá à reforma mais significativa destes tempos incertos, devolvendo o poder aos cidadãos. A República se verá por fim livre da monarquia” (Pierre Mayroy, Héritiers de l’Avenir, Stock, Paris, 1977, p. 295). [17] “Para que o homem se veja livre das alienações que o capitalismo lhe impõe, para que deixe de sofrer a condição de objeto ... é preciso que ele tenha acesso à responsabilidade nas empresas, nas universidades, bem como nas coletividades em todos os níveis” (Estatutos do Partido – Declaração de Pincípios. “Documentation Socialiste”, suplemento no. 2, p. 48). “Uma estratégia global e descentralizada da ação educativa e cultural – é uma dimensão decisiva de nossa luta pela autogestão. É essa uma das primeiras condições para que a mudança de mentalidades possa produzir-se. ... [A autogestão] provocará uma modificação das concepções atuais sobre a família e o papel das mulheres” (Quinze thèses, p. 21). [18] Este efeito psicológico negativo é intrínseco à autogestão. Tal não importa, entretanto, em que toda e qualquer empresa autogestionária, individualmente considerada, conduza a um fracasso. Pois fatores circunstanciais, de natureza psicológica ou outra, podem excecionalmente – em algum caso concreto – contrabalançar ou atenuar esse efeito da autogestão. Mas isto, que só esporadicamente pode ocorrer, não é de molde a constituir fundamento estável do conjunto empresarial de toda uma nação. [19] “Se nas possibilidades de desenvolvimento da vida pessoal, o Partido Socialista considera que a família desempenha um papel muito importante, ele reconhece que existem, sem dúvida, outras formas de vida privada (celibato, união livre, paternidade ou maternidade celibatárias, comunidades). O PS se pronuncia, enfim, contra a repressão ou as discriminações que atingem os homossexuais. Seus direitos e sua dignidade devem ser respeitados. Não lhe cabe legislar sobre a maneira como cada um entende orientar sua vida”(Projet, pp. 151-152). A radical equivalência entre o casamento e outras formas de relação sexual é afirmada de modo implícito, mas chocante, pelo atual governo socialista. Antes mesmo de iniciar-se o período legislativo, começou este a satisfazer as promessas feitas durante a campanha eleitoral aos grupos de homossexuais, cujo apoio recebeu: a ) O Ministério da Saúde decidiu que a França deixará de aplicar a classificação adotada pela Organização Mundial da Saúde, que qualifica a homossexualidade de enfermidade mental (cfr. “Le Monde”, 28/29-6-81). b ) A pedido dos homossexuais, o Ministério do Interior baixou instruções no sentido de suprimir os chamados “grupos de repressão” dos homossexuais, da polícia de Paris (inspetores encarregados do controle dos estabelecimentos homossexuais, em especial de fazer respeitar os horários de fechamento) e os fichários de homossexuais (cuja existência, aliás, a prefeitura de polícia nega peremptoriamente. – Cfr. “Le Monde”, 28/29-6-81). [20] “A fraca difusão dos métodos contraceptivos, as condições restritivas para a interrupção voluntária da gravidez e a má aplicação da Lei Veil [sobre o aborto] fazem com que a maioria das mulheres não tenha o domínio de sua sexualidade nem o de sua maternidade. ... Pôr fim a essa situação significa educação sexual a partir da escola e livre acesso á contracepção, bem como sua gratuidade”. (Projet, p. 247). [21] O Projet afirma, citando um discurso de Mitterrand em Marselha, em maio de 1979: “Não é possível ... ser socialista sem ser feminista” (p. 45). Mas o feminismo do Projet se opõe ao reconhecimento e à glorificação dos predicados da mulher enquanto tal. Pois nisto vê, “oculta sob um discurso modernista e pretensamente liberal ... a velha noção de ‘feminilidade’ que insiste nas aptidões particulares das mulheres na força de seus instintos, na riqueza de seu mundo interior... Em suma, reencontra-se a idéia de uma ‘natureza feminina’ diferente da dos homens e que serviu sempre para justificar a marginalização das mulheres e sua dominação" (pp. 50-51). É precisamente essa diferença tão natural entre homem e mulher, que o PS contesta. ... E por isto, segundo o PS, “a escola deve encorajar ambos os sexos a terem as mesmas ambições quanto aos estudos e às carreiras profissionais. O ensino deve se tornar verdadeiramente misto, a fim de que não haja mais aulas práticas em que, por exemplo, só as moças são relegadas ao aprendizado da costura ou do secretariado, enquanto os rapazes constituem a maioria nas secções técnicas, industriais e comerciais. A meta deve ser que todas as opções sejam mistas” (Projet, p. 249). Por fim, o Projet afirma que a participação nas tarefas domésticas “deve começar bem cedo, porque a criança também as compreende muito cedo e delas pode participar desde então. Tal participação, alcançada quando jovem, não deve diminuir para os rapazes nem aumentar para as moças na idade adulta. E, naturalmente, essa participação deve ser mantida também durante a velhice” (Projet, p. 307). [22] “Na vida não há apenas o trabalho. A criação do Ministério do Tempo Livre corresponde a uma grande ambição: fazer com que o tempo livre seja tempo de viver, tempo libertado. A sociedade do tempo livre deve ser uma sociedade de cultura. ... O florescimento cultural será uma das missões das coletividades locais” (Pierre Mauroy, Debates sobre a Déclaration de politique général, “Jounal Officiel”, 10-7-81, pp. 82-83). “A separação atual entre trabalho e tempo livre será questionada. ... A empresa socialista evoluirá assim para formas de vida cada vez mais comunitárias, em seu seio ... como em sua periferia (serviços sociais, lazer, cultura, formação, etc.)” (Projet, p. 158). “Citemos por exemplo a possibilidade da utilização em comum de certos equipamentos domésticos ou de certos equipamentos de lazer. ... Realizar-se-á igualmente um esforço sistemático para transformar e animar o meio urbano, torná-lo mais comunitário e melhorar as condições de moradia coletiva. Empreender-se-á um esforço considerável para tornar esta última tão atraente ... quanto a casa particular, grande consumidora de espaço de energia” (Projet, p. 177). “O movimento associativo será o suporte privilegiado da nova cidadania, em particular pela valorização do tempo livre. .... Caberá a nós em particular apagar as segregações sociais no domínio do tempo livre. Dedicar-nos-emos ... ao desenvolvimento de formas sociais do lazer e do turismo” (Déclaration de politique générale, “Journal Officiel”, 9-7-81, p. 51). “Viver de modo diferente é, pois: - primeiro, modificar seriamente o conteúdo do trabalho para que dentro de algum tempo a distinção entre trabalho e lazer não mais tenha o mesmo significado que hoje. Mas se é verdade que este objetivo não pode ser atingido, primeiro e antes que tudo, a não ser pela transformação do trabalho, os socialistas devem propor paralelamente também uma transformação do lazer; ... Mas é preciso ir mais a fundo rumo às outras concepções do lazer: - lazer de fim de dia, após o trabalho, na proximidade do domicílio ou no próprio domicilio, que permita estabelecer progressivamente novos ritmos de vida, mudar a vida quotidiana, e que necessita, por exemplo, do desenvolvimento de equipamentos coletivos leves, de usos vários. Este lazer é um dos meios de ter uma vida familiar, cultural, militante; - lazer de fim de semana ... - lazer de aposentadoria ... Sem dúvida, o conteúdo do tempo livre será profundamente modificado pelas propostas que são feitas em outros campos: escola, formação contínua, família, descentralização, vida associativa, esporte, informação, saúde, consumo. Elas permitirão progressivamente fazer deste tempo livre um tempo autogerido. De qualquer maneira, no Projeto socialista deve haver lugar para um tempo livre concebido como aquele que escapa às coerções e permite a cada um de se desenvolver, seja pelo esforço individual, seja por sua participação nas atividades coletivas” (Projet, pp. 307-309). “... uma concepção global da vida social, na qual o tempo de educação, o tempo de trabalho, o tempo de lazer não são mais considerados como momentos isolados da existência individual e coletiva, mas como elementos de um conjunto coerente” (Projet, p. 289). A “coerência”, bem entendido, não será a do pobre trabalhador “autogestionário”, mas a do PS. Este o “paraíso” de liberdade e democracia do regime socialista autogestionário. [23] “O ‘quadro de vida’ (‘cadre de vie’) faz parte dos tais conceitos novos surgidos nos anos 60, e que eclodiram em Maio de 1968. ... .... Este amplo conceito, que engloba tantas coisas, desde o habitat aos transportes, passando pelo urbanismo e a arquitetura, até o tempo livre muitas vezes esquecido, não foi nunca definido em sua globalidade. ... O ‘quadro de vida’ não pode ser isolado, cortado das realidades econômicas e sociais. Que quadro para qual vida? Percebe-se que a resposta é política e global: é transformando a vida, especialmente no trabalho, que se mudará o ‘quadro de vida’” (François Mitterrand no prefácio do livro de Jean Glavany e Philippe Martin, Changer le cadre de vie, Club Socialiste du Livre, Paris, 1981, p. VII). “É preciso pôr fim a uma das mais inadmissíveis segregações: as cidades ... vão se tornando cada vez mais as cidades dos mais ricos, enquanto os subúrbios vão se tornando os subúrbios dos mais pobres. É preciso fazer com que a cidade seja, de uma maneira exemplar, o lugar onde precisamente os diferentes meios sociais, convivam lado a lado"”(Pierre Mauroy, Debates sobre a Déclaration de politique générale, “Journal Officiel”, 10-7-81, p. 81). “Tornar os franceses novamente senhores de sua vida quotidiana é também associá-los à edificação e à gestão do ‘quadro de vida’ (cadre de vie) ... As coletividades locais controlarão os mercados imobiliários, o que significa o fim da especulação, e poderão levar avante um urbanismo voluntário ... Restituiremos aos habitantes plenos poderes sobre seu ‘quadro de vida’. ... O habitat e o ‘quadro de vida’ serão terras de eleição da nova cidadania” (Déclaration de politique générale, “Journal Officiel”, 9-7-81, p. 51). [24] “O governo tomará as medidas necessárias para que o acesso de todas as crianças de dois a seis anos à escola maternal seja possível .... O governo tentará a organização de casas para a infância, que acolham crianças desde o nascimento até aos seis anos” (Programme commun – Propositions pour l’actualisation, p. 30). “As casas para a pequena infância ... serão peças-chaves do dispositivo inicial. É nessa fase que começa a luta contra as desigualdades e as segregações sociais” (Projet, p. 287). “A luta pela igualdade começa na escola maternal” (Projet, p. 311). “Mas como então despertar o senso democrático, hoje anestesiado? Antes de tudo, pela escola, concebida como o lugar por excelência do aprendizado da autogestão” (Projet, p. 132). [25] “A gestão tripartite (pais e filhos, funcionários, coletividades públicas), deve liberar as iniciativas, permitir, após livre discussão, a definição e a avaliação em comum dos objetivos e da responsabilidade que daí decorrem para cada um. ... O espírito de responsabilidade exige ... o desaparecimento do controle hierárquico prévio”(Projet, p. 286). “As liberdades elementares nas instituições escolares e universitárias e no exército fazem parte igualmente das exigências do Projeto socialista: liberdade de expressão e de reunião nos colégios, liceus e universidades; residências sócio-educativas geridas diretamente pelos estudantes: participação efetiva dos alunos na vida e na gestão de seus estabelecimento escolar; direito dos delegados de classe de participarem plenamente de seu conselho de classe, e dos alunos de a eles assistirem; direito dos alunos de participarem da ordenação interna de seu liceu ou colégio; ... controle dos estudantes sobre a organização da universidade, sobre o conteúdo dos programas ..., instituição de um verdadeiro estatuto do estudante” (Projet, p. 314). “Empreenderemos uma transformação profunda de nosso sistema educativo. Todos devem participar dele; pais, delegados dos alunos, associações, representantes dos empregados e dos empregadores e, antes de tudo, os professores ... A unificação do serviço público de educação será o resultado de um acordo e de uma negociação” (Déclaration de politique générale, “Journal Officiel”, 9-7-81, p. 51). [26] “O Projeto socialista reconhece às crianças seu lugar pleno na sociedade: a igualdade, a liberdade, a responsabilidade não são exclusivas dos adultos. Desde a escola deve-se reconhecer o direito à expressão, à atividade criadora, à tomada de decisão”(Projet, p. 311). “A juventude tem também uma posição específica: ela está sob tutela [na sociedade atual]. ... Seja qual for a classe social a que pertençam, os jovens não têm nenhuma responsabilidade real, e pouco controle de sua vida. Há uma distância considerável entre suas possibilidades e aquilo que eles têm o direito de fazer na sociedade”(Projet, pp. 311-312). “Nada, portanto, é hoje mais importante do que reconhecer à juventude o direito de ser ela mesma. Na família, o direito dos jovens de serem eles mesmos comporta: a possibilidade de recurso dos jovens face a uma decisão concernente a ele (orientação escolar ou profissional, modo de vida...); a democratização e o desenvolvimento de residências para o acolhimento de jovens em conflito com a família; ... facilidades para o aluguel de apartamento pelos jovens ...; o livre direito à contracepção e a supressão da autorização paterna para a interrupção voluntária da gravidez pelas menores, um desenvolvimento considerável da educação sexual na escola e a revisão das atitudes sistematicamente repressivas concernente à sexualidade dos menores” (Projet, pp. 313-314). [27] “... a concepção generosa e empreendedora dos socialistas por um grande serviço público unificado e laico de ensino, administrado democraticamente” (Projet, p. 284). “O governo definirá como objetivo a constituição desse corpo único de professores para todas as disciplinas, para o período de escolaridade que engloba a escola maternal, o primeiro e segundo graus, o segundo ciclo geral e o profissional” (Programme commun – Propositions pour l’actualisation, p. 35). “Todos os pais poderão proporcionar a seus filhos, fora dos estabelecimentos escolares e sem o concurso de fundos públicos, a educação religiosa e filosófica de sua escolha”. (ibidem, p. 32). [28] “Todos os setores do ensino inicial e uma parte importante da educação permanente serão reunidos em um serviço público, nacional e laico, dependente unicamente do Ministério da Educação nacional. Desde a primeira legislatura, a instituição do serviço público de educação nacional será objeto de negociações... Os estabelecimentos privados – sejam eles patronais, com fim lucrativo ou confessional – que recebem subvenção pública, serão em regra geral nacionalizados. ... As necessárias transferências de prédios excluirão qualquer espoliação. A situação dos imóveis ou do pessoal dos estabelecimentos privados não subvencionados pelo Poder público poderão ser objeto, a seu pedido, de um exame em vista de sua eventual integração” (Programme commun – Propositions pour l’actualisation, pp. 31-32). [29] Segundo a doutrina tradicional da Igreja, o direito de propriedade resulta da ordem natural criada por Deus. Os seres animais, vegetais e minerais existem para uso dos homens. Estes – cada um destes – tem, pois, em virtude de sua própria condição humana, o direito de submeter a seu domínio qualquer daqueles bens. É a apropriação. Esta última tem algo de exclusivo, no sentido de que o bem apropriado não pode ser usado por outros que não o seu dono. A esse respeito, diz Pio XI na Encíclica Quadragesimo Anno, de 15 de maio de 1931: “Títulos de aquisição da propriedade são a ocupação das coisas sem dono e a indústria (ou especificação, como a chamam), segundo claramente atestam a tradição de todos os tempos e a doutrina de Nosso Predecessor Leão XIII. De fato, não faz injustiça a ninguém, por mais que alguns digam levianamente o contrário, quem se apossa de uma coisa abandonada ou sem dono; por outro lado, a indústria que o homem exerce em nome próprio, e por força da qual as coisas se transformam ou aumentam de valor, é um título que confere àquele que trabalha o direito sobre tais frutos” (Acta Apostolicae Sedis, Typis Polyglottis Vaticanis, Roma, 1931, vol. XXIII, p. 194). A propriedade também nasce do trabalho. Naturalmente dono de si, o homem o é de seu trabalho. Em conseqüência, cabe-lhe o direito de cobrar uma remuneração pelo serviço que presta. E assim lhe pertence o que adquirir, a título individual, com o fruto de seu trabalho. Tal é o ensinamento de Leão XIII na Encíclica Rerum Novarum, de 15 de maio de 1891: “Na verdade, como é fácil compreender, a razão intrínseca do trabalho empreendido por quem exerce uma atividade lucrativa, o fim imediato visado pelo trabalhador, é adquirir um bem que possuirá, por direito particular, como coisa sua e própria. Pois se coloca à disposição de outrem suas forças e sua indústria, não o faz por outro motivo senão para obter os bens necessários a seu sustento e desenvolvimento; e por isso, com o seu trabalho, procura alcançar o direito verdadeiro e perfeito não só de cobrar um salário, mas de dispor dele como entenda. Portanto se, reduzindo suas despesas, poupou algo, e para mais seguramente conservar o fruto de suas economias, as aplica em um imóvel, evidentemente, em tais condições, este não é outra coisa senão o salário transformado; e, por conseguinte, o bem de raiz assim adquirido pelo trabalhador será propriedade sua a mesmo título que a remuneração de seu trabalho. Mas é precisamente nisto, como facilmente se entende, que consiste o direito de propriedade mobiliária e imobiliária. Assim, com essa conversão da propriedade particular em propriedade comum, que os socialistas tanto pleiteiam, eles agravam a situação de todos os assalariados, pois ao retirar-lhes a livre disposição do seu salário, por isso mesmo os despojam de toda esperança e possibilidade de acrescerem o seu patrimônio e melhorarem a sua condição” (Acta Sanctae Sedis, Typographia polyglotta S. C. de Propaganda Fide, Roma, 1890-1891, vol. XXIII, p. 642). Por fim, a propriedade pode ainda ser adquirida por sucessão. Os filhos, continuidade natural dos pais. Lhes herdam naturalmente os bens. Sobre esse caráter familiar da propriedade, afirma Leão XIII, na Encíclica Rerum Novarum: “Portanto, aquele direito de propriedade que, segundo demonstramos, a natureza confere ao indivíduo, importa atribuí-lo também ao homem enquanto chefe de família: e não apenas isso, como esse direito é até mais enérgico quando se considera que, na sociedade doméstica, a pessoa humana abarca um círculo mais amplo. É uma lei sagrada da natureza que o pai de família proveja ao sustento e a tudo que diz respeito à educação de seus filhos; como também decorre da mesma natureza que ele queira formar e dispor para seus filhos – como aqueles que refletem a sua fisionomia e de algum modo constituem um prolongamento de sua pessoa – um patrimônio com que honestamente possam defender-se na perigosa jornada da vida, contra as surpresas da má fortuna. O que não pode alcançar efetivamente sem a propriedade de bens produtivos que transmita a seus filhos por via de herança” (Acta Sanctae Sedis, vol. XXIII, p. 646). A propriedade tem, como todo direito, uma função social, mas não se reduz a uma função social. É o que ensina Pio XII em sua Radiomensagem de 14 de setembro de 1952 ao Katholikentag de Viena: “Por isso a doutrina social católica se pronuncia, entre outras questões, tão conscientemente pelo direito de propriedade individual. Aqui estão também os motivos profundos por que os Papas nas Encíclicas sociais, e Nós mesmo, Nos recusamos a deduzir, quer direta, quer indiretamente, da natureza do contrato de trabalho o direito de co-propriedade do operário no capital da empresa e, consequentemente, seu direito de co-gestão. Importava negar tal direito, pois por trás dele se enuncia um problema maior. O direito do indivíduo e da família à propriedade é uma conseqüência imediata da essência da pessoa, um direito da dignidade pessoal, um direito vinculado, é verdade, por deveres sociais; não é porém meramente uma função social”(Discorsi e Radiomessaggi di Sua Santità Pio XII, vol. XIV, p. 314). Nesta perspectiva, se distingue a propriedade pública da privada. A primeira consiste normalmente nos bens que o Estado tem para a realização de sua missão. Sem exorbitar de sua função específica, pode também o Estado possuir e administrar para o interesse comum algum bem. Por exemplo, quando chama a si a exploração de alguma riqueza do subsolo, para, com o lucro dela, minorar os impostos com os quais arca o cidadão. O que só deve fazer de modo restrito e em circunstâncias especiais. Ou ainda quando certo gênero de riqueza é tal que o indivíduo que a possuísse ficaria em situação de dominar o Estado. Os demais bens são do domínio privado, e não do domínio público. E o proprietário privado pode ser um proprietário individual, um grupo ou associação de proprietários individuais. Naturalmente, essa doutrina e essa terminologia, existentes de modo explícito ou implícito na linguagem corrente, não são as do Projet. Este não afirma o direito natural de propriedade, dado por Deus ao homem. Hipertrofia a propriedade coletiva dos grupos sociais, transformando cada um destes, em relação a seus componentes, em um mini-Estado totalitário. E qualifica de privada a propriedade autogestionária, se bem que esta seja instituída – em larga medida imposta – e até regulada discricionariamente pelo Estado. * * * A presente Mensagem estava acabando de ser redigida quando saía a lume, em meados de setembro, a Encíclica Laborem Exercens, de João Paulo II. Os mais importantes meios de comunicação social do Ocidente a acolheram com ampla e simpática publicidade. Sem dúvida, a Encíclica apresenta ensinamentos novos, nem todos desenrolados até suas últimas conseqüências, doutrinárias e práticas. Isto propiciou que, o mais das vezes, a publicidade dada ao documento difundisse a impressão de que, conforme João Paulo II: a) não é um imperativo da natureza das coisas que a propriedade privada (e portanto não-estatal seja habitualmente individual; b) em princípio (e notadamente nas modernas condições de vida econômica), é legítimo e até preferível que, normalmente, o direito de propriedade seja exercido, não por proprietários individuais, mas por grupos de pessoas. Pois dessa forma a propriedade atenderia melhor sua finalidade social. Nisto consistiria a “socialização” da propriedade. A ser aceita essa intelecção do documento de João Paulo II, seria preciso concluir que: a) Tal “socialização” estaria em forte contraste com os princípios do Magistério Pontifício tradicional, acima lembrados, e que ensinam ser a propriedade individual uma decorrência lógica da natureza pessoal do homem e da ordem natural das coisas; b) Assim, o regime socializado, propugnado pelo PS francês, encontraria na Laborem Exercens importante respaldo. Ao católico zeloso seria penoso carregar nos ombros a responsabilidade de fazer sobre a Encíclica de João Paulo II essas duas afirmações. Pois teriam um alcance incalculável no plano religioso e sócio-econômico. Com efeito, a se admitir semelhante oposição entre o recente documento pontifício e os documentos tradicionais do Supremo Magistério da Igreja, daí se desdobrariam conseqüências teológicas, morais e canônicas sem conta. Como se vê no Capítulo II desta Mensagem, o PS francês afirma a conexão lógica entre a reforma autogestionária da empresa, por ele preconizada, e a da economia em geral, a do ensino, a da família e a do próprio homem. Essas múltiplas reformas não são, para os socialistas franceses, senão aspectos de uma só reforma global. E têm razão: “Abyssus abyssum invocat” - “Um abismo atrai outro abismo” (Os. 41, 8). Não se vê a possibilidade de que um Pontífice Romano, abrindo as comportas à autogestão pleiteada pelo socialismo francês, apoie implícita ou explicitamente essa reforma global. [30] “Os socialistas são favoráveis ao princípio da socialização dos meios de produção em todos os setores em que a socialização das forças produtivas já se tornou realidade. Vale dizer que, pelo contrário, as pequenas e médias empresas privadas subsistirão, embora em um contexto profundamente modificado e com obrigações novas”(Projet, pp. 153-154). [31] Segundo os socialistas, um dos objetivos da “planificação democrática” é determinar “como e até que ponto se opera a redução das desigualdades” (Quinze thèses, p. 15). Ou seja, os Planos de governo, a serem elaborados em nível nacional, regional e local, já terão em vista a perspectiva do achatamento gradualista. [32] Nesta afirmação não se pretende incluir a propriedade do trabalhador (do artesão, por exemplo) sobre seu instrumento de trabalho, ou sobre os objetos duráveis adquiridos com o fruto do seu ganho pessoal. Mas para os eventuais herdeiros do trabalhador, este modesto patrimônio individual terá pouca ou nenhuma expressão, à vista das limitações estabelecidas pelo Projet sobre as heranças: “O problema da herança ... será tratado no mesmo espírito; imposto fortemente progressivo sobre as grandes fortunas, mas grande dedução na base para as sucessões em linha direta, permitindo a transmissão do patrimônio afetivo (residência familiar) ou da exploração agrícola ou artesanal” (Projet, p. 154). [33] “Não é possível haver autogestão num regime capitalista: uma empresa privada não pode ser autoadministrada” (Documentation Socialiste, no. 5, p. 57). “Creiam-me: antes que se passe muito tempo, a propriedade privada dos meios chaves da economia nacional se apresentará a nossos descendentes como uma curiosidade tão aberrante como nos parece hoje o regime feudal” (Afirmação do deputado socialista Jean Poperen, durante os debates sobre a Déclaration de politique générale, “Jounal Officiel”, 10-7-81, p. 77). “Quer dizer que nós repudiamos a propriedade privada? De modo nenhum. Sabemos muito bem que uma forma de sociedade não se substitui a outra em um dia, nem mesmo no espaço de uma geração. O capitalismo precisou de séculos para emergir das entranhas da sociedade feudal. E o próprio socialismo só se pôs em marcha, nos países capitalistas mais avançados, a partir de meados do século passado. ... Pode-se considerar que a manutenção da propriedade privada individual atende a certas exigências – sobretudo psicológicas – de segurança. Mas nós pretendemos também desenvolver progressivamente outras práticas (laboração da terra aos agricultores, correção monetária da poupança, incremento das moradias de aluguel, promoção do turismo familiar no campo etc.)”. (Projet, pp. 153-154). “O Partido Socialista não somente não questiona o direito de cada um de possuir seus próprios bens duráveis adquiridos pelo fruto de seu trabalho ou instrumentos de trabalho de sua própria fabricação, como também garante o exercício desse direito. Em contrapartida, propõe substituir progressivamente a propriedade capitalista por uma propriedade social que pode revestir formas múltiplas, para a administração das quais os trabalhadores devem se preparar”(Estatutos do Partido – Declaração de princípios, “Documentation Socialiste”, suplemento do no. 2, p. 48). [34] “O Domínio e a Garantia da Terra. Instrumento de trabalho, a terra será protegida contra a especulação fundiária pelo estabelecimento de uma política baseada na criação de conselhos fundiários’ (‘offices fonciers’) encarregados de promover uma melhor distribuição e utilização da terra. Esta será igualmente protegida contra a deterioração e a perda da fertilidade que resultam da exploração intensiva e do abuso de técnicas agressivas contra a natureza e o meio ambiente” (Projet, p. 208). “O mercado será organizado em torno dos ‘conselhos’. Estes assegurarão aos cultivadores a justa remuneração de seu trabalho mediante a garantia de preços, levando em conta os custos da produção, nos limites de um quantum” (Projet, p. 206). “Administrados pelos representantes dos agricultores, dos assalariados agrícolas e das coletividades locais, [os ‘conselhos fundiários’] ... assumirão especialmente as funções seguintes: ― .... intervirão nas locações .... ― Disporão de um direito de perempção permanente por ocasião de qualquer venda. Poderão seja revender, seja alugar as terras assim adquiridas aos agricultores que delas tiverem necessidade” (Pour une agriculture avec les socialistes, “Les cahiers de Documentation Socialiste”, no 2, abril de 1981, p. 20). Mitterrand assim descreve o funcionamento desses “conselhos fundiários”: “Contrariamente ao que alguns querem fazer crer, estes ‘conselhos’ não estabelecerão nem o coletivismo, nem a coação! Não pode haver boa política fundiária a não ser que seja discutida, concertada e aceita pelas distintas partes interessadas, agricultores, coletividades locais, administração. "Serão pois os próprios cultivadores que administrarão os ‘conselhos’ cantonais e terão por função coordenar a política fundiária, discuti-la em conjunto, tomar as decisões de distribuição e de zoneamento das terras, que sejam as mais indicadas para a manutenção da população ativa agrícola e para o máximo de instalações" (apud Cl Manceron e B. Pingaud, François Mitterrand – L’homme. Les idées, le programme, Flammarion, Paris, 1981, pp. 107-108). [35] “O reconhecimento das pequenas comunidades sociais e por conseguinte de interesses coletivos muito próximos do indivíduo e fáceis de compreender (família, atelier, turma de alunos, associação, bairro etc.) é um dos fundamentos da sociedade autogestinonária. Mas é preciso ainda que as decisões possam ser tomadas; a existência de um interesse coletivo deve traduzir-se, em última análise, em uma certa conduta. É por isso que os socialistas ... afirmam que a legitimidade não poderá proceder nunca, em última instância, amanhã como hoje, senão do sufrágio universal. O interesse geral e a democracia não estão em guerra entre si. Simplesmente, o interesse geral não pode ser definido de outro modo senão pela democracia” (Projet, p. 131). [36] Tanto quanto os socialistas franceses, os comunistas têm como meta final a autogestão da sociedade. Lê-se no preâmbulo da Constituição russa que “o objetivo supremo do Estado soviético é edificar a sociedade comunista sem classes, na qual se desenvolverá a autogestão social comunista” (Constitución – Ley Fundamental – de la Unión de Repúblicas Socialistas Soviéticas, de 7 de outubro de 1977, Editorial Progresso, Moscou, 1980, p. 5). Nesse ponto não há, pois, divergência doutrinária entre comunistas e socialistas. Esta só aparece no modo como uns e outros concebem o desaparecimento do Estado. O Instituto de Filosofia da Academia de Ciências da Rússia soviética assim define o papel do Estado no período de transição rumo à sociedade autogestionária: “O desenvolvimento da democracia socialista fortalece o poder do Estado e, ao mesmo tempo, prepara as condições de sua extinção, e, a par disso, a passagem a um regime social em que a sociedade possa dirigir-se sem necessidade de um aparelho político, sem a coerção estatal. ... Ora, exortar ao mais rápido desaparecimento do Estado sob o pretexto de combater o burocratismo e proclamar, por seu turno, a necessidade de renunciar ao poder estatal, equivale, nas condições do socialismo, quando ainda existe o mundo capitalista (e, o que é mais grave, no período de transição ao socialismo), a desarmar os trabalhadores face a seu inimigo de classe. O processo de extinção do Estado não pode ser acelerado por nenhuma espécie de medidas artificiais. O Estado não será abolido por ninguém, mas irá se extinguindo paulatinamente à medida que o poder político deixe de ser necessário. Isso será possível quando o Estado socialista cumpra sua missão histórica. Mas isto exige, ao mesmo tempo, o fortalecimento do poder político. De onde não se poder contrapor, de um lado, a solicitude por fortalecer o Estado socialista, e, de outro lado, as perspectivas de sua extinção: ambas as coisas são como as duas faces de uma mesma moeda. O problema da extinção do Estado, concebido dialeticamente, é o problema da transformação do Estado socialista em autogestão comunista da sociedade. No comunismo subsistirão algumas funções análogas às que cumpre hoje o Estado, mas o seu caráter e as formas de seu exercício não serão os mesmos que na etapa atual de desenvolvimento. A extinção do Estado significa: 1) o desaparecimento da necessidade de coerção estatal, bem como dos órgãos que a empregam; 2) a transformação das funções organizativas, econômicas e educativo-culturais que ora cumpre o Estado em funções sociais; 3) a incorporação de todos os cidadãos nas funções de direção dos assuntos públicos e o desaparecimento da necessidade de órgãos do poder político. Quando se apagar toda espécie de marcas da divisão da sociedade em classes, quando o comunismo triunfar definitivamente e saírem da cena as forças do mundo velho que se opõem ao comunismo, desaparecerá também a necessidade do Estado. A sociedade já não necessitará de destacamentos especiais de homens armados para garantir a ordem social e a disciplina. Então, como disse Engels, a máquina do Estado poderá ser depositada no museu de antiguidades junto com a roca e o machado de bronze”(Academia de Ciências da URSS – Instituto de Filosofia, Fundamentos de la Filosofia Marxista, Redação geral de F. V. Konstantinov, Editorial Grijalbo, México, 2ª ed., 1965, pp. 538-539). [37] “Não é possível aderir ao socialismo sem uma certa visão do homem, do que ele quer, do que ele pode, do que ele deve, de seus direitos e de suas necessidades” (Projet, p. 10). [38] “O Partido Socialista não tem por objetivo comprazer-se ou dar testemunho em favor do além, mas transformar as estruturas da sociedade” (Projet, p. 33). “A explicação da sociedade ... é uma coisa, o destino último do homem é outra” – afirma o Projet. Como se algo pudesse explicar-se a abstração feita de seu fim. E acrescenta labiosamente, à guisa de ficha de consolação: “Na medida em que o clericalismo se apaga, o anticlericalismo perde sua justificação. Aí está um enriquecimento da laicidade e uma aquisição preciosa da luta socialista destes últimos anos” (Projet, p. 29). Na realidade, quem fica assim “apagado”, no Projet, para além do clericalismo, é o Clero, é a Igreja. [39] É freqüente que o católico seja mais sensível às transgressões da Lei de Deus no que diz respeito à instituição da família do que à instituição da propriedade. Assim, é possível que algum leitor católico mais ou menos condescendente com a empresa autogestionária, se esforce por conceber uma aplicação do Projet estritamente limitada ao campo empresarial, sem reflexos no campo do homem, da família e da educação. Ilusão. A natural correlação entre a família e a propriedade torna impossível essa separação de campos. E a simples leitura do presente trabalho torna claro que a autogestão empresarial – tal qual é descrita no Projet – é inseparável das concepções filosóficas e morais nas quais se funda. Estas, uma vez aceitas, repercutem forçosamente em todos os domínios. [40] A Constituição Pastoral Gaudium et Spes, do Concílio Vaticano II, apresenta uma descrição bastante sintética e matizada do ateísmo moderno. É útil citá-la, a esse título: “Pela palavra ateísmo designam-se fenômenos bastante diversos entre si. Enquanto Deus é expressamente negado por uns, outros pensam que o homem não pode afirmar absolutamente nada sobre Ele. Alguns porém submetem a exame o problema de Deus por tal método, que parece carecer de sentido. Muitos, ultrapassando indebitamente os limites das ciências positivas, ou sustentam que só por este processo científico se explicam todas as coisas, ou, ao contrário, já não admitem de modo algum nenhuma verdade absoluta. Alguns exaltam o homem a tal ponto que a fé em Deus se torna como que enervada e dão a impressão de estar mais preocupados com a afirmação do homem que com a negação de Deus. ... Alguns não abordam sequer o problema de Deus: parece não sentirem nenhuma inquietação religiosa e nem atinarem por que deveriam preocupar-se com religião”(no. 19). [41] “Entendemos que coletivo é sinônimo de grandeza, de beleza, de profundidade, de alegria de viver” (Projet, p. 153). O que importa em dizer que grandeza, beleza, profundidade e alegria de viver são sinônimos de coletivo. [42] “Todo o movimento da ciência ... se inscreve num permanente questionamento dos postulados da fase precedente” (Projet, p. 135). “A nosso ver, não pode existir um saber constituído de uma vez por todas. O conhecimento, porque implica em uma retificação e mesmo em uma reconstrução permanente da realidade, tal como nós no-la representamos, não pode jamais dizer-se acabado e deve ser constantemente questionado” (Projet, pp. 136-137). [43] Esta posição de esquiva neutralidade face às eleições foi enfaticamente reafirmada por Mgr. Jean-Marie Lustiger, novo Arcebispo de Paris, a propósito de uma carta-aberta da JEC ao Prelado, publicada em “Le Monde” (10 e 11-5-81), na qual aquele organismo da Ação Católica lhe pedia que confirmasse ou desmentisse as versões que corriam, segundo as quais ele teria pessoalmente tomado posição em favor do presidente cujo mandato terminava. Em suas declarações, o Arcebispo manifesta o seu espanto diante da notícia, a qual desmente de modo formal, e se solidariza com a posição coletiva do Episcopado (cfr. “La Croix”, 12-5-81). No contexto destas declarações, soam como insuficientes algumas vagas promessas de ação combativa feitas por Mgr. Jean Honoré, Bispo de Evreux e Presidente da Comissão Episcopal do Mundo Escolar, no sentido de que a escola católica não constitui para a Igreja “a prioridade das prioridades”. Os Bispos desejam reservar sua palavra “para o dia em que a escola católica corra perigo” (“Informations Catholiques Internationales”, no. 563, junho de 1981). [44] A fim de não alongar o presente trabalho, não são reproduzidos aqui os referidos pronunciamentos do Episcopado francês sobre as recentes eleições presidenciais e legislativas. Entretanto, os leitores que desejarem obtê-los podem escrever para o endereço indicado na última capa. Mediante a remessa de Cr$ 150,00, o reembolso das despesas postais, ser-lhes-á enviado o texto integral dos documentos, transcritos respectivamente de “La Documentation Catholique”, no. 1803, de 1-3-81, p. 248, e de “Le Monde”, de 3-6-81, acompanhados de uma tradução para o português. [45] No citado documento, dizem os Bispos franceses: “Nosso ministério pastoral nos faz testemunhas do imperativo evangélico que anima numerosos cristãos, em todos os meios sociais, e da esperança que os conduz quando participam nesse movimento coletivo de libertação, junto com aqueles com quem são ou de quem se sentem solidários em sua vida de todos os dias. Os Bispos da Comissão do Mundo Operário, entre outros, exprimiram-no no documento de trabalho em que nos dão conta da primeira fase de suas conversações com operários que fizeram a opção socialista” (op. cit., p. 88). “Hoje um fato novo irrompe na atualidade. Cristãos de diversos meios – operários, trabalhadores rurais, intelectuais – exprimem o que eles vivem com um vocabulário de ‘luta de classes!’. ... É evidente que esta análise em termos de ‘luta de classes’ ajudou muitos militantes a delimitarem com mais precisão os mecanismos estruturais das injustiças e das desigualdades. É preciso também constatar que, fazendo assim, eles mais ou menos tomam como referência instrumentos de análise marxista da luta de classes. Para que seu desejo ardente de realizar uma sociedade mais justa e mais fraterna não se degrade ao longo do caminho, e até se beneficie dos impulsos positivos do senso evangélico do homem, impõe-se um esforço de lucidez e discernimento” (op. cit., p. 90). [46] Assim o afirma a conhecida revista ‘católico-progressista’ “Informations Catholiques Internationales” (no. 563, junho de 1981): “Todos estão de acordo: os católicos definidos como praticantes repartiram-se à razão de um quarto a favor de F. Mitterrand e três quartos para V. Giscard. ... O fato de que um católico considerado praticante em cada quatro tenha votado em F. Mitterrand é de uma importância política decisiva: bem mais de um milhão de votos foram engrossar o campo da esquerda; ora, ... teria sido suficiente que a metade desses católicos tivesse votado no presidente cujo mandato terminava para que este fosse reeleito. François Mitterrand deve seu sucesso, entre outras causas, ao movimento que arrastou para a esquerda uma parte dos católicos”. Note o leitor que a revista destaca apenas os “católicos praticantes”. Caberia perguntar quantos batizados não praticantes, mas que se têm na conta de católicos, poderiam ser influenciados por uma palavra firme e esclarecedora do Episcopado, e recusar assim o seu voto ao candidato socialista. Ao apontar as razões da vitória de Mitterrand, insuspeitos e prestigiosos órgãos de imprensa comentam que o progresso mais significativo da esquerda se deu nas províncias católicas do Oeste, do Leste e do Maciço central (cfr. “La Croix”, órgão oficioso da Arquidiocese de Paris, 12-5-81; “L’Express”, 5/11-5-81 e 12/15-5-81; e mesmo “L’Humanité”, órgão oficial do PC, 15-5-81). Ademais, os católicos não se limitam a votar no PS, mas chegam a inscrever-se no Partido – ao que parece, sem maiores problemas de consciência – como registra com gáudio o Projet: “O Partido socialista sempre pretendeu aglutinar, sem distinção de crença filosófica ou religiosa, todos os trabalhadores que fazem do socialismo seu ideal e aceitam seus princípios. São cada vez mais numerosos pois os cristãos que aderem não somente ao Partido mas às próprias análises socialistas, sem por issso – muito pelo contrário – renegarem sua fé” (Projet, p. 29). O que, aliás, é público e notório na França. Mas para que não haja dúvida quanto ao sentido do verbo “aderem” na citação acima, Mitterrand, em suas “Conversations avec Guy Claisse”, transformadas em livro, assim esclarece: “No Partido Socialista, os católicos militantes não são para nós um álibi. Eles aí estão como em sua casa própria. Seu número é grande ... ― Entre os militantes de base? ― Sim. Mas também na direção nacional e nos executivos locais” (François Mitterrand, Ici et maintenant – Conversations avec Guy Claisse, Fayard, Paris, 1980, p. 12). Assim sendo, a omissão do Episcopado no esclarecimento desses católicos é inteiramente inexplicável. Cumpre, por fim, observar que essa permeabilidade de elementos católicos ao socialismo não é de hoje, mas vem desde meados do século passado, como se compraz em historiar o próprio Mitterrand, no livro citado: “Minha conduta, desde o primeiro dia, foi no sentido de que os cristãos fiéis à sua fé, reconhecessem, em nosso Partido, elementos de sua própria fisionomia, e compreendessem que as múltiplas fontes do socialismo confluem para a mesma caudal. Em meados do século XIX, exceção feita da vanguarda dos Lamennais, dos Ozanam, dos Lacordaire, dos Arnaud, os católicos franceses pertenciam ao campo conservador. A Igreja, sacudida pela primeira revolução francesa, inquieta com os progressos do espírito voltairiano, se tinha colocado ao lado do poder da burguesia, poder de uma classe social, estreita, egoísta, feroz quando preciso. ... Obscurecido o Cristo, a Igreja cúmplice, não havia outra saída senão a luta, à viva força, para a conquista, aqui e agora, de uma situação que nos libertasse da escravidão, da miséria e da humilhação. Por uma rampa natural, os socialistas aderiram, em sua maioria, às teorias que rejeitavam a explicação cristã. ... A consolidação do racionalismo e a expansão do marxismo acentuaram no proletariado a rejeição da Igreja e de seu ensino. O socialismo, que se tinha constituído sem ela, começou a ser feito contra ela. Mas também, que silêncio do cristianismo! Que longo silêncio! ... Entretanto, pelo fim do século, Leão XIII em Roma e entre nós o Sillon deram início à virada. A primeira guerra mundial apressou a evolução. As confraternizações da frente de batalha, a morte por toda parte, a morte colhendo a todos, a pátria em perigo ensinaram a cada um a aceitar no outro os valores que este acatava, embora a versão laica ou religiosa permanecesse distinta, quando não antagônica. Do fundo da Igreja e do mundo cristão se levantou novamente o apelo inicial. O personalismo de Emanuel Mounier acabou de conferir ao socialismo cristão suas cartas de nobreza” (op. cit., pp. 14-15). Diante desse panorama histórico – descrito, aliás, bem à maneira e ao gosto socialistas, mas ao qual não faltam, infelizmente, numerosos elementos de verdade – seria de esperar que o Episcopado francês imitasse a têmpera e a coragem de um São Pio X, que na Carta Apostólica Notre Charge Apostolique de 25 de agosto de 1910 condenou veementemente o movimento Le Sillon (cfr. Nota 4), objeto de tão reverente recordação de Mitterrand. [47] “Não pode haver um Projeto socialista só para a França. O dilema ‘liberdade ou servidão’, ‘socialismo ou barbárie’ ultrapassa as fronteiras de nosso País” (Projet, p. 108). “O Partido Socialista é um partido ao mesmo tempo nacional e internacional” (Documentation Socialiste”, suplemento do no. 2, p. 50). “O socialismo é internacional, por natureza e por vocação” (Projet, p. 126). “O Partido Socialista adere à Internacional Socialista” (Estatutos do PS, art. 2, “Documentation Socialiste”, suplemento do no. 2, p. 51). “No momento em que a França deixar de se identificar com uma mensagem universal, ela cessará de existir. A França é uma aspiração coletiva, ou simplesmente não é” (Projet, p. 163). “A França pode ser, pois, o pólo de um novo internacionalismo” (Projet, p. 164). “Imensas possiblidades existem para um país como o nosso ... de levar alto e longe, na Europa e no mundo, a mensagem universal do socialismo” (Projet, p. 18). “A França contribuirá para a democratização da Comunidade Econômica Européia; ela se servirá das instituições desta para favorecer a convergência das lutas sociais” (Projet, p. 352). “O Partido Socialista ... visa a uma transformação socialista da sociedade internacional” (Moção do Congresso de Nantes, em 1977, “Documentation Socialiste”, suplemento do no. 2, p. 130). “O socialismo é internacional por sua própria natureza, ou então ele se nega a si mesmo” (“Documentation Socialiste”, suplemento do no. 2, p. 153). “A busca da autonomia de nosso desenvolvimento é inseparável das perspectivas internacionais do socialismo autogestionário. Ao orientar nossa ação, no Exterior como dentro de nossas fronteiras, ela estabelece nossa participação na cooperação internacional sobre a base da solidariedade de classe dos explorados” (Projet, p. 339). Convém recordar, a este propósito, que Mitterrand é um dos vice-presidentes da Internacional Socialista (cfr. “L’Express”, 22/28-5-81). É também um dos membros fundadores do Comitê Internacional de Defesa da Revolução Sandinista (cfr. “Le Figaro”, 26-6-81). De onde se compreende que o comandante Arce, da Frente Sandinista de Libertação, tenha saudado em Mitterrand “um militante da causa nicaragüense” e um “amigo da revolução sandinista”, cuja vitória na França representa “um valor político imenso para a Nicarágua e a América Latina” (cfr. “Le Monde”, 13-5-81). Mitterrand quis homenagear com um almoço no Elysée, no dia de sua posse, os dirigentes e chefes de Estado socialistas da Europa, bem como representantes da esquerda latino-americana. A viúva do ex-presidente marxista Allende sentou-se à direita de Mitterrand, por expresso desejo deste (cfr. “El Espectador”, Bogotá, Colômbia, 24-5-81). Já como Presidente, Mitterrand declarou ser de “urgência prioritária” o apoio da França à luta do povo de El Salvador, e prometeu ajudar a Nicarágua “em sua pesada tarefa de reconstrução”. “A América Latina não pertence a ninguém. Está tentando pertencer a si mesma, e é importante que França e a Europa a ajudem na realização dessa meta” – declarou Mitterrand (cfr. “Jornal do Brasil”, Rio de Janeiro, 19-7-81). Agradecendo as congratulações de Fidel Castro, Mitterrand enviou-lhe um telegrama no qual consignava a sua alegria pelos vínculos pessoais que o unem ao tirano comunista, e manifestava o desejo de “reforçar ainda mais a amizade entre a França e Cuba” (cfr. “Le Monde”, 3-6-81). Confirmando essa intenção, Antoine Blanca, assistente pessoal do primeiro-ministro Mauroy e responsável pelas relações de seu partido com a América Latina e o Caribe, declarou que o PS francês não tolerará nenhuma agressão, bloqueio econômico ou discriminação contra Cuba (cfr. “Folha de S. Paulo”, 27-7-81). Mais recentemente, os governos francês e mexicano firmaram um comunicado conjunto dando apoio categórico à “Frente Farabundo Martí de Libertação nacional”, organização guerrilheira integrada por cinco grupos marxistas que atuam para derrubar o regime vigente em El Salvador. Divulgado simultaneamente em Paris e no México, o comunicado foi entregue na ONU, a fim de ser distribuído entre os países membros (cfr. “Folha de S. Paulo”, 29-8-81), e provocou a enérgica reação de doze países latino-americanos, que qualificaram a atitude da França e do México como uma “ingerência flagrante” nos assuntos internos de El Salvador (cfr. “Jornal do Brasil”, 4-9-81). |