Catolicismo Nº 248 - Agosto de 1971

 

Quando o sapo abre a jaula para a hiena...

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Transcrito da "Folha de S. Paulo", 1.8.1971

 

 

A visita do chefe marxista do Estado chileno ao militar que encabeça, na Argentina, um regime oficialmente anticomunista, me leva a abrir um parênteses no tema de que vinha tratando. Com efeito, essa visita oferece aspectos muito interessantes para o leitor brasileiro. E isto me obriga a declarar sem delongas o que acho a respeito.

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Em poucas palavras, o encontro dos dois presidentes, em Salta, deu toda a medida do que é, do que pode e do que opera a conjunção da mentalidade comunista com a mentalidade sapa. A partir daí se explica facilmente a mal velada satisfação que o encontro Lanusse-Allende produziu, tanto nos meios sapos como nos meios comunistas de nosso País. Ao mesmo tempo, o ocorrido em Salta bem mostra de que enorme vantagem para o comunismo é a saparia. E tudo isto oferece pelo menos a vantagem de abrir os olhos de numerosos brasileiros para os perigos a que a crescente influência da minoria sapa pode expor nosso País.

Antes de entrar na matéria, sinto a necessidade de esclarecer em que sentido qualifico de "sapo" o tenente-general Lanusse.

Tenho a este último toda a consideração devida a qualquer Chefe de Estado. Entretanto, a palavra "sapo" é a única com que se designa, entre nós, certo tipo de burguês não comunista, mas entusiasta da "apertura a sinistra". É, pois, à míngua de outro termo, que chamo de "sapo" o ilustre militar argentino.

Isto posto, vamos diretamente aos fatos. Eu os colhi, todos, na imprensa portenha, naturalmente muito mais minuciosa do que a nossa a respeito do encontro de Salta.

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Quem correr os olhos pela lista dos assuntos alegados como motivo do encontro Lanusse-Allende, não pode deixar de se sentir surpreso. Nenhum deles parece exigir tratativas diretas de Presidente a Presidente. Poderiam, todos, ser folgadamente negociados num contato de chanceler a chanceler. Ou até menos do que isto.

Ora, em torno desta reunião tão pobre de conteúdo, a encenação das cerimônias oficiais e o estrépito publicitário foram — paradoxalmente — enormes. Durante a estadia de Allende em solo argentino, trocaram-se discursos numerosos e importantes, difundidos para a América e para o mundo por toda a coorte de jornalistas argentinos e chilenos presentes.

É impossível evitar a sensação de que o principal objetivo da reunião de Salta não estava, portanto, nas negociações, mas nos discursos. Estes últimos, aliás, se mostraram tão bem concatenados de Presidente a Presidente, que criam a invencível impressão de haverem sido bem combinados antes. Em suma, Salta não foi senão uma tribuna da qual os Srs. Allende e Lanusse quiseram anunciar aos respectivos povos, e a toda a América do Sul, uma mensagem nova.

O elemento central dessa mensagem é a adoção de um novo estilo de relações entre os países comunistas e não comunistas. Ou seja, a queda das chamadas "barreiras ideológicas". A este respeito, tanto Lanusse quanto Allende fizeram, em tom grandiloqüente e profético, declarações reiteradas. E insofismáveis.

Eis, por exemplo, um tópico de Lanusse: "A República Argentina está disposta a orientar suas relações exteriores de acordo com um amplo critério de universalidade, que não admite restrições impostas por preconceitos ou tabus ideológicos. Em nosso tempo, as filosofias políticas defendidas pelos diferentes países que integram o sistema internacional desempenham um papel secundário em face do interesse supremo da paz e da segurança internacionais" ( cf. "La Nación" de 24-7-71 ).

Logo em seguida, à maneira de ressalva, Lanusse acrescentou, aliás: "Isto não significa abdicar dos princípios constitutivos do ser nacional de cada país" ( cf. "La Nación" de 24-7-71 ).

Como se vê, é a posição sapa característica: os sistemas doutrinários já não têm importância em nossa época. Os grandes homens de outrora consideravam que as idéias valem mais do que a vida. Para o homem de hoje, a vida vale mais do que as idéias.

"É melhor para nós morrer na guerra, do que ver os males de nosso povo e de nossos lugares santos" — exclamou Judas Macabeu quando da gloriosa insurreição de sua família e seus sequazes, contra os pagãos, opressores do povo eleito ( 1 Mac. 3,59 ).

A causa da paz é um bem, um altíssimo bem. Não, porém, um bem supremo. E se o preço dela é a inércia ante a investida comunista, mais vale a pena lutar.

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Unilateralidade, exagero! — exclamaria algum sapo. Pois relações internacionais nada têm que ver com ideologia.

Para rebater esta objeção, basta considerar o proveito ideológico que, em Salta mesmo, Allende soube tirar da atitude de Lanusse.

Ao mesmo tempo que o Chefe de Estado platino situava seu governo num plano estritamente técnico, deixando aberto um imenso vazio ideológico, este vazio era desde logo preenchido pela propaganda marcadamente ideológica de Allende. Pois comunista não perde vaza.

Assim é que Allende não deixou passar a ocasião de fazer propaganda ideológica de seu governo pró-marxista, afirmando em discurso a Lanusse: "Através do governo popular que presido, o Chile constrói uma economia humana e independente, inspirada nos ideais socialistas. Queremos reestruturar a sociedade chilena em termos de justiça e liberdade, para alcançarmos um desenvolvimento nacional autêntico, isto é, a serviço do povo trabalhador" ( discurso ao receber o Grão Colar da Ordem do Libertador — a maior condecoração argentina — a ele conferida por Lanusse, cf. "La Nación" e "La Prensa" de 24-7-71 ).

E, aproveitando uma deixa dada pouco antes por Lanusse, acrescentou: "Concordo plenamente, pois, com o Sr. Presidente: a igualdade jurídica não basta para assegurar relações estáveis e harmoniosas. Acrescentamos: enquanto existir uma desigualdade de fato e se manifestarem no mundo pressões imperialistas" ( cf. "La Nación" e "La Prensa" de 24-7-71 ).

Por fim, ambiciosamente — e não sem insolência para com o Brasil e os demais países da América do Sul — passou a traçar um programa socialista para todo o continente ibero-americano: "Nós chilenos, queremos contribuir decididamente para projetar a América Latina no mundo, com personalidade própria, dignidade e independência, o que requer profundas transformações em sua estrutura interna, social e política" ( cf. "La Nación", 24-7-71 ).

Assim, mal derrubadas as "barreiras ideológicas", o que surgiu não foi a paz, nem a primeira coisa que entrou do Chile para a Argentina foi dinheiro ou mercadoria, mas... propaganda socialista!

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A coerência estaria a pedir que o Tenente-General Lanusse, paladino da neutralidade ideológica nas relações internacionais, encontrasse algum modo diplomático para exprimir sua rejeição da manobra do marxista Allende.

Qual nada! Depois de, num tópico, lembrar que o regime argentino não é o chileno, ei-lo que afirma o princípio das portas escancaradas para o Chile marxista: "Por esta razão, não há relação de estrangeirismo entre nossos povos. Os que compartilharam de um mesmo passado e estão dispostos a cooperar reciprocamente na preparação de um futuro de maior bem-estar e desenvolvimento, não podem sentir-se estranhos entre si" ( cf. "La Nación", 24-7-71 ).

Em síntese, realmente as barreiras ideológicas que separavam a Argentina do mundo marxista foram derrubadas. E, logo depois, a propaganda vermelha entrou. É natural. Quando o sapo abate as grades da jaula, a fera sai. E depois, ai! do sapo... ou dos que acreditaram nele.

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Duas observações finais. Uma sobre a impopularidade do que se fez em Salta. Allende vinha desdourado por uma expressiva e rotunda derrota eleitoral em Valparaíso. Lanusse temeu exibir sua política e seu hóspede aos olhos dos portenhos. E por isto, depois de hesitar sobre se o receberia em Buenos Aires, em Bariloche, ou em Mendoza, acabou por o receber em Salta. Por que fugir assim da Capital do País, senão por medo de uma acolhida má?

Quanto a Bariloche, a coisa é outra. Um jornal informou que a célebre cidade de esportes de inverno era pouco segura para Allende... por ser próxima da fronteira chilena: "Quanto a São Carlos de Bariloche, outro dos lugares que se mencionavam, teria sido descartada devido a algumas informações que assinalavam a presença de guerrilheiros chilenos na zona fronteiriça, a curta distância do limite internacional com a Argentina" ( "La Prensa" de 24-7-71 ). E quanto a Mendoza, lá não podia ir Allende por ser também cidade fronteiriça, repleta de chilenos antimarxistas. Não podendo ser realizado em Buenos Aires, nem na fronteira, o festival — eu ia escrevendo o "show" — da derrubada das ideologias teve que se fazer em Salta.

Como se vê, Allende não foi à Argentina só para fazer propaganda no Exterior. Pouco seguro em seu país descontente e agitado, recentemente vencido numa eleição, quis ele também — e principalmente — desanimar seus opositores internos, que talvez esperassem apoio argentino. E também este objetivo, Lanusse auxiliou Allende a obtê-lo plenamente.

Segunda observação: os jornais informaram que o Arcebispo de Salta, Mons. Carlos Mariano Perez, participou dos atos oficiais da visita ( cf. "La Prensa" de 24-7-71 ).

Esta não podia faltar, nos tristes dias em que vivemos!