Catolicismo Nº 247 - Julho de 1971 - O Papas e a propriedade privada

 

Os Papas e a propriedade privada

 

 

 


 

Nestes dois artigos, publicados na imprensa diária de São Paulo, o Presidente do Conselho Nacional da TFP aborda um tema de grande atualidade.

 


 

Propriedade privada

Plinio Corrêa de Oliveira

Transcrito da "Folha de S. Paulo", 30.5.71

 

Cumpro hoje uma antiga promessa. Com efeito asseverei aos leitores da "Folha de S. Paulo" que lhes daria oportunamente uma coleção de textos pontifícios referentes à propriedade privada. O torvelinho dos dias em que vivemos conduziu-me, logo em seguida, a outros temas. Mas hoje tenho a satisfação de fazer rebrilhar, expondo-os à luz da publicidade, estes ensinamentos áureos... aliás tão omitidos em certas publicações católicas.

A propriedade privada vai sendo apresentada, cada vez mais — nestes tempos de hipertrofia do social — como um privilégio antipático e anacrônico, ao qual só se aferraram alguns egoístas, insensíveis à miséria que em torno deles existe.

— É este o pensamento da Igreja? — Pergunta de capital importância para nosso público, constituído de uma esmagadora maioria de católicos.

É para responder a tais perguntas pela própria voz dos Romanos Pontífices, que aqui dou a público algo do que eles ensinaram sobre a matéria.

* * *

Antes de tudo, uma questão que se relaciona de perto com o tema. Falei de hipertrofia do social. A expressão terá suscitado, sem dúvida, arrepios em alguns leitores. Se o social corresponde ao interesse geral, poderá haver aí hipertrofia do social?

Sim, respondo. E uma hipertrofia muito nociva ao próprio interesse geral. Os Romanos Pontífices a chamaram socialismo.

Assim, a Igreja assumiu "a proteção do indivíduo e da família, frente à corrente que ameaça arrastar a uma socialização total, em cujo fim se tornaria pavorosa realidade a imagem terrificante do "Leviatã". A Igreja travará esta luta até o extremo, pois aqui se trata de valores supremos: a dignidade do homem e a salvação da alma" ( Pio XII, Radiomensagem ao "Katholikentag" de Viena, em 14 de setembro de 1952 — "Discorsi e Radiomessaggi", vol. XIV, pág. 314 ).

Mais ainda. Pio XII vê na socialização total, não só uma catástrofe geral, mas uma manobra de alguns privilegiados, feita contra o bem comum: "Atribuindo a todo o povo a tarefa própria, se bem que parcial, de ordenar a economia futura, estamos muito longe de admitir que esse encargo deva ser confiado ao Estado como tal. Entretanto, ao observar o andamento de certos congressos, mesmo católicos, em matérias econômicas e sociais, pode-se notar uma tendência sempre crescente para invocar a intervenção do Estado, de modo que se tem por vezes como que a impressão de que esse é o único expediente imaginável. Ora, sem dúvida alguma, segundo a doutrina social da Igreja, o Estado tem seu papel próprio na ordenação da vida social. Para desempenhar esse papel, deve mesmo ser forte e ter autoridade. Mas os que invocam continuamente e lançam sobre ele toda a responsabilidade o conduzem à ruína e fazem mesmo o jogo de certos poderosos grupos interessados. A conclusão é que dessa forma toda responsabilidade pessoal nas coisas públicas vem a cessar, e que se alguém fala dos deveres ou das negligências do Estado, refere-se aos deveres ou faltas de grupos anônimos, entre os quais, naturalmente, não cogita de contar-se a si próprio" ( Pio XII, Discurso de 7 de março de 1957 ao VII Congresso da União Cristã dos Chefes de Empresas e Dirigentes da Itália — UCID — "Discorsi e Radiomessaggi", n.º XIX, pág. 30 ).

E, de seu lado, Leão XIII mostra que lutar em defesa da propriedade particular é favorecer os interesses mais fundamentais do povo: "[ ... ] a teoria socialista da propriedade coletiva deve absolutamente repudiar-se como prejudicial àqueles mesmos a que se quer socorrer, contrária aos direitos naturais dos indivíduos, como desnaturando as funções do Estado e perturbando a tranqüilidade pública. Fique, pois, bem assente que o primeiro fundamento a estabelecer para todos aqueles que querem sinceramente o bem do povo é a inviolabilidade da propriedade particular" ( Leão XIII, Encíclica "Rerum Novarum", de 15 de maio de 1891 — Editora Vozes Ltda., Petrópolis, pág. 12 ).

A igualdade socialista, na qual tanto vêem a libertação dos pobres, Leão XIII a denunciou como causa de miséria geral: "Assim, substituindo a providência paterna pela providência do Estado, os socialistas vão contra a justiça natural e quebram os laços da família. Mas, além da injustiça do seu sistema, vêem-se bem todas as suas funestas conseqüências: a perturbação em todas as classes da sociedade, uma odiosa e insuportável servidão para todos os cidadãos, porta aberta a todas as invejas, a todos os descontentamentos, a todas as discórdias: o talento e a habilidade privados dos seus estímulos, e, como conseqüência necessária, as riquezas estancadas na sua fonte; enfim, em lugar dessa igualdade tão sonhada, a igualdade da nudez, na indigência e na miséria" ( Leão XIII, Encíclica "Rerum Novarum", de 15 de maio de 1891 — Editora Vozes Ltda., Petrópolis, págs. 11 e 12 ). Dir-se-ia que o celebrado Pontífice antevira com olhar inspirado os fracassos econômicos de Cuba e a miséria dos operários que se insurgiram recentemente em Gdansk e outras cidades da Polônia.

* * *

E vamos agora à propriedade privada.

- Quais as origens desta?

- Uma delas é o próprio salário do trabalhador. Negar a propriedade é negar o salário, e reduzir assim o trabalhador a escravo. Ouçamos a tal respeito Leão XIII: "[ ... ] como é fácil compreender, a razão intrínseca do trabalho empreendido por quem exerce uma arte lucrativa, o fim imediato visado pelo trabalhador é conquistar um bem que lhe pertencerá como coisa própria. Porque, se ele põe à disposição de outrem suas forças e sua indústria, não é, evidentemente, por outro motivo senão para conseguir com que possa prover à sua sustentação e às necessidades da vida; e espera do seu trabalho, não só direito ao salário, mas ainda um direito estrito e rigoroso a usar deste como entender. Portanto, se, reduzindo as suas despesas, chegou a fazer algumas economias, e se, para assegurar a sua conservação, as emprega, por exemplo, num campo, torna-se evidente que esse campo não é outra coisa senão o salário transformado: o terreno assim adquirido será propriedade do artífice com o mesmo título que a remuneração do seu trabalho. Mas, quem não vê que é precisamente nisso que consiste o direito de propriedade mobiliária e imobiliária?" ( Leão XIII, Encíclica "Rerum Novarum", de 15 de maio de 1891 — Editora Vozes Ltda., Petrópolis, págs. 5 e 6 ).

Outra forma porque se constitui legitimamente a propriedade é a ocupação das coisas sem dono. A tal respeito, leiamos Pio XI: "Títulos de aquisição do domínio são a ocupação de coisas sem dono [ ... ] De fato, não faz injustiça a ninguém, por mais que alguns digam o contrário, quem se apodera de uma coisa abandonada ou sem dono" ( Pio XI, Encíclica "Quadragesimo Anno", de 15 de maio de 1931 — Editora Vozes Ltda., Petrópolis, págs. 21-22 ).

Em conseqüência, também da terra pode o homem tornar-se legitimamente dono. É o que nos ensina Leão XIII: "O homem abrange pela sua inteligência uma infinidade de objetos, e às coisas presentes acrescenta e prende as coisas futuras; além disso, é senhor das suas ações; também, sob a direção da lei eterna e sob o governo universal da Providência Divina, ele é, de algum modo, para si a sua lei e sua providência. É por isso que tem o direito de escolher as coisas que julgar mais aptas, não só para prover ao presente, mas ainda ao futuro. De onde se segue que deve ter sob o seu domínio não só os produtos da terra, mas ainda a própria terra, que, pela sua fecundidade, ele vê estar destinada a ser a sua fornecedora no futuro. As necessidades do homem repetem-se perpetuamente: satisfeitas hoje, renascem amanhã com novas exigências. Foi preciso, portanto, para que ele pudesse realizar o seu direito em todo o tempo, que a natureza pusesse à sua disposição um elemento estável e permanente, capaz de lhe fornecer perpetuamente os meios. Ora, esse elemento só podia ser a terra, com os seus recursos sempre fecundos" ( Leão XIII, Encíclica "Rerum Novarum", de 15 de maio de 1891 — Editora Vozes Ltda., Petrópolis, pág. 7 ).

Mas estas considerações já me levaram um tanto longe. E os textos citados oferecem matéria mais do que suficiente para reflexão.

Fico, pois, hoje, por aqui. Em ocasião oportuna, talvez volte ao assunto.

 



Papas e propriedade privada

Plinio Corrêa de Oliveira

Transcrito da "Folha de S. Paulo", 6.6.1971

 

Recebi esta carta:

"Não é o Sr. Jeroboão Cândido Guerreiro, que agora lhe escreve. Aquele correspondente de nome estranho (ou de pseudônimo bem achado) lhe disse umas boas verdades, das quais o Sr. soube esquivar-se com as estocadas de seus silogismos e as piruetas de sua dialética. É forçoso dizer que, em conseqüência, o bom Sr. Jeroboão, ao final da resposta do Sr., ficou em postura deveras desagradável. E isto apesar de ele estar com a razão, pelo menos a meu ver.

"Ignoro se, com a resposta que o Sr. me der, ficarei também eu enredado nas famigeradas malhas de sua argumentação. O fato, porém, é que também eu tenho reparos a lhe apresentar. E na linha dos do Sr. Jeroboão. Não tenho o fogo nem a paixão dele. Tenho, isto sim, um pouco de lógica. E baseado nela não receio de o enfrentar, Dr. Plinio.

"Entro pois em liça. O objeto de minha carta é seu último artigo. Nele o Sr. pretendeu justificar a posição da TFP em matéria de propriedade privada. E para isso se baseou em citações de alguns papas. Estaria isto muito bem se fossem Papas dos dias de hoje. Acontece, porém, que o mais recente dos Pontífices citados pelo Sr. foi Pio XII, falecido em 1958. Nem uma menção faz o Sr. de documentos de João XXIII, nem de Paulo VI. O Concílio Ecumênico Vaticano II parece inteiramente ignorado pelo Sr.

"Ora, como o Sr. bem sabe, a Igreja passou por mutações imensas sob os dois últimos Papas, tão evoluídos, tão arejados, tão humanos.

O Concílio acabou com a atmosfera confinada em que se estiolava a cultura católica, e abriu portas e janelas para as correntes de ar renovadoras da cultura moderna. Tudo isto deu à Igreja um aspecto inteiramente diverso. Sei que esse aspecto não é do agrado do Sr. Mas, em compensação — e que magnífica compensação — ele atraiu para a religião simpatias vindas até das mais remotas paragens ideológicas.

"Assim, um ateu categórico, de espírito lúcido e coração bondoso, Salvador Allende (imagino sua carranca, Dr. Plinio, ao ler este nome!) pôde escrever sobre a Igreja nova estas palavras magníficas.

"A Igreja Católica sofreu mudanças fundamentais. Durante séculos, a Igreja Católica defendeu os interesses dos poderosos. Hoje, depois de João XXIII, ela se orientou para transformar o Evangelho de Cristo em realidade, pelo menos em alguns lugares. Tive ocasião de ler a Declaração dos Bispos em Medelin, e a linguagem que usam é a mesma que usamos desde nossa iniciação na vida política, há 30 anos. Naquela época, éramos condenados por tal linguagem que hoje é empregada pelos bispos católicos. Acredito que a Igreja não será fator de oposição ao governo da Unidade Popular. Ao contrário, será um elemento a nosso favor, porque estaremos tentando converter em realidade o pensamento cristão. Além disso, haverá a mais total liberdade de crença religiosa".

"Como é natural [ é o anônimo que retoma agora a palavra ] estes conceitos chegaram ao conhecimento de Paulo VI e do Cardeal chileno. O que fizeram eles? Discordaram? Arrepiaram-se? Recusaram a mão estendida pelo presidente marxista? Pio XII e seus antecessores condenaram a ‘politique de la main tendue’. Bem diversa é a conduta de Paulo VI. Ele apertou resolutamente a mão de Allende. E o mesmo fez o cardeal chileno. Ambos sorriram comprazidos. O cardeal visitou o chefe marxista em nome do Papa, deu-lhe uma Bíblia, abraçou-o, prometeu-lhe colaboração. Quem cala consente, diz o provérbio. Muito mais consente quem sorri, visita, felicita e colabora.

"Repito, Pio XII e seus antecessores fariam exatamente o oposto do que fez Paulo VI. Sobretudo não agiria assim Pio X, pelo qual se vê que o Sr. tem um fraco.

"Mas as coisas mudaram totalmente na Igreja. E, ao contrário do que o Sr. pensa, podiam ter mudado.

"Com efeito, só não é mutável a parte dos ensinamentos da Igreja, contida em definições dogmáticas ex-catedra. Ora, os documentos sobre propriedade privada citados pelo Sr. não são definições dogmáticas. Logo são mutáveis. E mudaram. Tanto é que mudaram, que o Sr. nada pôde citar de João XXIII, Paulo VI ou do Concílio, no sentido dos documentos pontifícios anteriores.

"Saia-se agora desta, Dr. Plinio. A conseqüência a que se chega é que o Sr. sabia do ponto fraco de sua argumentação ( isto é, a posição esquerdista da Igreja nova), e pretendeu passá-lo sob silêncio. Esperou, sem dúvida, que ninguém metesse o dedo na chaga. Pois aqui está meu dedo metido por inteiro na ferida. Vamos ver com que estrebuchos o Sr. se sairá. Se é que conseguirá sair-se...".

* * *

Muita gente não responde cartas anônimas. Mas quando alguma delas exprime uma opinião que não é apenas do missivista medroso e agressivo, mas — segundo se nota — é também a de toda uma família de almas, em atenção a esta última eu respondo de bom grado. Máxime quando a carta — e é este o caso — a par de impertinências e grosserias, contém lampejos de espírito e até de inteligência.

Transcrita na íntegra a longa missiva para mostrar ao anônimo que não lhe temo as invectivas, não me resta espaço para responder a tudo quanto ele escreve. Mas escolho para minha réplica um ponto-chave que, derrubado, arrasta em sua queda tudo quanto o anônimo alega.

Antes de o fazer, quero entretanto dizer uma palavra sobre São Pio X. Não tenho por ele "um fraco". Tenho-lhe verdadeira devoção, pois é um Santo canonizado pela Igreja. E um muito grande Santo. Peço aqui a São Pio X que do céu abra os olhos de todos os que pensam como o missivista.

* * *

Exporei minha argumentação com calma e clareza. Diga meu anônimo, ou quem como ele pensa, no que não tenho razão:

■ 1  Os ensinamentos dos Pontífices anteriores a João XXIII citados em meu último artigo, são em sua essência iguais aos de todos os Papas anteriores que trataram da matéria;

■ 2  Ora, quando uma longa sucessão de Papas, em Documentos do magistério ordinário ( cada um dos quais não tem, portanto, o caráter de ensinamento infalível ), afirmam a mesma doutrina, esta sucessão confere caráter dogmático a tal doutrina;

■ 3  Sendo este o caso concreto quanto ao essencial dos textos sobre propriedade privada que citei, tais textos contêm verdades dogmáticas;

■ 4  E se algum Papa ensinasse o contrário em documento não dogmático, não deveria ser seguido pelos fiéis. Pois um ensinamento não-infalível e ordinário não poderia prevalecer contra um ensinamento dogmático;

■ 5  Assim, estou inteiramente à vontade baseando-me nos textos em que me baseei. E em minha argumentação não existe o "ponto fraco" que o anônimo imaginou ver.

Abstenho-me de refutar muitas outras afirmações gravemente errôneas do anônimo, pois a isto me força o amor à brevidade.

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De toda esta argumentação, o ponto-chave é o de n.º 2. Ele de pé, o resto da argumentação é irrecusável. Ele derrubado, todo o resto também cai.

A pergunta a que tenho de responder agora é, portanto, a seguinte: no que se funda a asserção contida no ponto 2?

A este respeito, um dos diretores da TFP, brilhante e vigoroso especialista em matérias como esta — o Sr. Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira — publicou estudo notável em "Catolicismo" ( n.º 202, outubro de 1967 ). Prova ele cabalmente que ensinamentos do magistério ordinário da Igreja podem, em casos como este ( e o Sr. Arnaldo V. Xavier da Silveira fala especificamente de propriedade privada ), assumir o caráter de infalibilidade. Pois a sucessão dos papas que afirmaram a legitimidade da propriedade privada é antiga e contínua.

Não sei se meu missivista anônimo lê "Catolicismo". É uma excelente leitura, que instantemente lhe recomendo. Pois procure ali o artigo indicado, e depois me escreva de novo ... se quiser.

Simplesmente previno-o de que, se desejar responder ao artigo do meu amigo, seja muito cauto. O estudo do Sr. Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira correu o Brasil e o mundo sem levantar objeções...

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E fica assim emudecido meu objetante anônimo, tão verboso. Com uma estocada só, sem truque nem piruetas.