Folha de S. Paulo,
8 de
novembro de 1970
O
Cardeal festivo
A
eleição e posse de Allende causaram um suspense no mundo inteiro. E nada
mais razoável. No Chile — como aliás também na Itália — os marxistas
estão divididos em dois partidos políticos. Um deles se intitula direta
e ostensivamente Partido Comunista. O outro, que evidentemente não pode
usar o mesmo nome, se chama Partido Socialista. Mas — insisto — tanto o
PC quanto o PS são oficial e genuinamente marxistas. Assim, não há
dúvida possível: Allende, figura de grande destaque no Partido
Socialista, é um comunista confesso.
Ora,
está na essência da metodologia de Marx, que os partidos comunistas
devem tender continuamente para a realização dos objetivos últimos e
mais extremos da revolução social. Não que Marx excluísse a
eventualidade de admitir contemporizações e delongas, nessa trajetória
para os fins últimos. Quando se percorre um terreno muito escorregadio,
pode-se chegar menos tardiamente ao fim caminhando lentamente do que
andando com irrefletida pressa. Assim, mesmo quando o marxista autêntico
parece tergiversar ou contemporizar, não tenhamos dúvida: é porque julga
ser este o modo mais curto de alcançar a realização da revolução
integral.
Nestas condições, os ares de comedimento e brandura ostentados nestes
dias por Allende só podem iludir a quem ignore os rudimentos mais
elementares do método marxista de conquista do poder.
O
mesmo se diga das fórmulas vagas de que o líder socialista se tem
servido para enunciar seu programa. Evitando dizer cruamente que visa a
implantação do comunismo, Allende tem falado, de modo vago, em realizar
no Chile o socialismo. Esse pequeno disfarce de nada vale como garantia
para os não comunistas. Pois, de um lado, a linha demarcatória entre o
socialismo e o comunismo é das mais inconsistentes. E, de outro lado,
nos lábios de Allende, a palavra "socialismo" não pode significar senão
marxismo, já que como há pouco dissemos — é oficialmente marxista o
Partido Socialista ao qual ele pertence.
O
mesmo, ainda, se deve afirmar da relativa — e quão relativa — moderação
das várias realizações imediatas anunciadas por Allende. Estas sempre
foram reclamadas pelo PC e pelo PS chilenos como providências
preliminares essenciais para a instauração do regime comunista. Isto
posto, e se bem que Allende não pareça resolvido a instaurar, desde já,
e em sua integridade, o regime comunista, é para lá que se dirigem desde
logo seus primeiros passos. E — não é demais repeti-lo — esses passos só
serão moderados e lentos na medida em que assim o impuserem as
conveniências táticas do comunismo.
Para
ilustrar estas observações, não é sem interesse mencionar um pormenor do
noticiário referente à entrevista concedida pelo novo presidente ao
diretor do jornal "Excelsior", do México. Na sala de sua residência, em
que a entrevista se realizou, se notavam fotos de Fidel Castro, "Che"
Guevara, Ho Chi Minh e Mao Tsé-Tung. "Diz-me com quem andas, e te direi
quem és", afirma o provérbio. Perguntado sobre o motivo de estarem elas
ali, respondeu o novo amo do Chile, que é porque admirava esses
personagens. E que, ademais, eram fotos com dedicatória dos
fotografados. Em seguida, Allende acrescentou, com gracejo irreverente,
que não tinha ali uma foto de Jesus Cristo, ao lado das dos líderes
comunistas, porque Este não lha oferecera com dedicatória.
* * *
Como
bom marxista, Allende é oficialmente ateu. Como ateus são também os
ministros marxistas que ocupam vários postos, e dos melhores, em seu
gabinete.
E
como vê ele a Igreja? Como uma entidade inidônea, que "virou a casaca",
e pactua hoje com doutrinas contra as quais ontem lançava categóricas
condenações. Eis suas palavras textuais, em entrevista ao "New York
Times":
Repórter:
"Na qualidade de maçom, considera a Igreja Católica elemento
potencial de oposição ao seu governo?"
Allende:
"Creio que está perfeitamente ciente de que as velhas rixas entre a
maçonaria e a Igreja estão superadas. O que é mais importante, a Igreja
Católica sofreu mudanças fundamentais.
"Durante séculos, a Igreja Católica defendeu os interesses dos
poderosos. Hoje, depois de João XXIII, ela se orientou para transformar
o Evangelho de Cristo em realidade, pelo menos em alguns lugares.
"Tive
ocasião de ler a Declaração dos Bispos em Medellín, e a linguagem que
usam é a mesma que usamos desde nossa iniciação na vida política, há 30
anos. Naquela época, éramos condenados por tal linguagem que hoje é
empregada pelos Bispos católicos.
"Acredito que a Igreja não será fator de oposição ao governo da Unidade
Popular. Ao contrário, será um elemento a nosso favor, porque estaremos
tentando converter em realidade o pensamento cristão. Além disso, haverá
a mais total liberdade de crença religiosa".
* * *
Como
se vê, dificilmente poderão ser mais sombrias as perspectivas que tem
diante de si o país andino. Daí a evasão de capitais do Chile para o
exterior. Daí também o êxodo contínuo de chilenos. Só em Buenos Aires
há, segundo consta, 50 mil refugiados.
Em
meio a tantas e tão fundadas apreensões, uma figura há, inteiramente
despreocupada, serena, festiva. É a do Cardeal Silva Henriquez,
Arcebispo de Santiago.
Cardeal Raul Silva
Henríquez
Antes
das eleições, declarou ele, publicamente, ser lícito aos católicos votar
em candidatos marxistas: ou seja, em Allende.
Logo
após a confirmação da vitória deste último pelo Congresso, o purpurado
se apressou em visitar o futuro presidente, levando-lhe de presente uma
Bíblia. Na ocasião, declarou aos jornalistas que fazia votos pelo êxito
da gestão do marxista vencedor. E acrescentou que recomendava aos
católicos que apoiassem o novo governo. Ou seja, que cooperassem na
aplicação das medidas desejadas pelos comunistas como meio de suma
importância para a implantação de seu regime ateu e radicalmente
igualitário.
Não
ficou nisto o Cardeal. No dia da posse de Allende, celebrou ele o Santo
Sacrifício da Missa e cantou um "Te Deum" em ação de graças pela
ascensão do novo governo. O Presidente ateu e uma farta coleção de
pastores protestantes assistiam à augusta cerimônia católica.
Tudo
terminou — ao que parece — sem que ninguém risse nem chorasse. O cardeal
ainda disse que Allende teve um "gesto delicado" ao ter
consentido em assistir às cerimônias, entretanto, para este, vazias de
qualquer conteúdo real.
* * *
Se há
um direito que tenho, como homem e como católico, tão essencial ou mais
ainda do que o de viver, é o direito de refletir sobre estes fatos, e
dizer de público o que sobre eles penso.
— O
que penso? Antes de tudo, que isto forma uma seqüela de imensos
escândalos. O que é feito de todas as condenações dos Papas, de Pio IX a
Pio XII, contra o comunismo? Como, de um momento para outro, e sem mais
explicações, foram postos de lado esses atos solenes, graves, repetidos?
E como o Purpurado chileno oferece hoje o Sangue infinitamente precioso
de Nosso Senhor Jesus Cristo para agradecer, como fato lícito e
auspicioso, a vitória de uma corrente por tantos Papas, qualificada de
satânica, imoral e subversiva? Não é isto um sacrilégio? Não é também um
sacrilégio cantar "Te Deum" para agradecer a Deus esta vitória do
ateísmo?
Se em
nome de uma aliás mal entendida disciplina, eu devesse admitir que tais
atos não são sacrílegos, teria a sensação de que todas as leis da lógica
nada mais valem. E que o absurdo passou a ser a única realidade.
Felizmente, a tal ato de disciplina não me obriga nenhuma lei da Santa
Igreja.
Vou
adiante em minhas elucubrações. O leitor não julgava, há um ano atrás,
impossível que fatos como estes ocorressem no Chile? Claro que sim.
Entretanto, ei-los. Agora pergunto: fatos destes parecem impossíveis ao
leitor, no Brasil de hoje? Quem nos garantirá que, dias mais dias menos,
aqui não ocorram também?
* * *
Não
adianta assustar-se, gemer, choramingar ou protestar. A voz da realidade
aí está.
Mas
qual a utilidade de artigo tão rudemente franco? perguntará alguém. — É
persuadir os leitores de que em nossos tristíssimos e turvíssimos dias,
pode ocorrer que o pastor entregue o rebanho ao lobo. O rebanho, isto é,
não um homem ou um punhadinho de homens, o que seria infinitamente
triste. Mas um país inteiro.
E
que, neste caso, a fidelidade à Igreja e ao país consiste em não seguir
o mau pastor.
* * *
Li,
há muitos anos, no "Osservatore Romano", um fato que me vem agora à
memória. Quão oportuno é lembrá-lo...
Anos
após a implantação do regime comunista na Rússia, numa igreja católica
cheia de fiéis, um sacerdote celebrava a Santa Missa.
Ao
Evangelho, o celebrante subiu ao púlpito. Estava pálido e cambaleante.
Disse que daquele momento em diante se passaria para o comunismo, que
por isto iria interromper a Missa, tirar a batina e deixar o templo. E
convidou os fiéis a fazerem o mesmo. Desceu em seguida os degraus do
púlpito, e se afundou pela sacristia, presumivelmente rumo à porta dos
fundos.
Ocorreu então um dos mais belos fatos da História da Igreja em nosso
século. Todos os fiéis se levantaram e, à uma, cantaram o Credo. O mau
pastor partira. Eles não. Naquela localidade, a Igreja continuava a
viver. E com que sobrenatural pujança!
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Catolicismo Nº 240 - Dezembro de 1970