"Catolicismo" Nos. 196/197 - Abril/Maio de 1967 ( www.catolicismo.com.br )

 

Um diálogo que se tornou impossível

Plinio Corrêa de Oliveira

 

Os leitores estarão lembrados, por certo, de que o Exmo. Revmo. Sr. Arcebispo de Fortaleza, D. José de Medeiros Delgado – cujo nome declino com a maior consideração – publicou na edição de 26-27 de novembro do ano findo do jornal de sua Arquidiocese, "O Nordeste", um artigo intitulado "Conversas Avulsas". Tal artigo continha acusações e suspeitas injuriosas contra a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, "Catolicismo", a revista argentina "Cruzada" ( que o artigo designa por equívoco com o nome de "Tradición" ) e a revista chilena "Fiducia". Algumas dessas acusações e suspeitas alvejavam igualmente os preclaros Antístites de Diamantina e de Campos, bem como numerosos Prelados da ala dita conservadora do II Concílio Vaticano. E, concomitantemente, caíam de cheio sobre grande número de professores universitários, escritores e homens de ação, da América e da Europa, entre os quais eu. A todos – Bispos, revistas, professores, etc. – acoimava S. Excia. Revma. de integristas heretizantes, e maniqueus.

Confesso que o artigo me surpreendeu. Nunca vi, em tão curto espaço de jornal, tantas acusações lançadas contra tão grande número de pessoas. Nunca vi também – perdoe-me S. Excia. Revma. que o diga – tanta desenvoltura no formular acusações desacompanhadas de provas, tanto desembaraço no divulgar meras suspeitas que as boas normas mandariam não fossem publicadas enquanto não tivessem a confirmação dos fatos.

Sem embargo da profunda estranheza que as "Conversas Avulsas" do respeitável Prelado me causaram, quando publiquei – sob o título de "Respeitosos reparos a ‘Conversas Avulsas’ do Exmo. Sr. Arcebispo de Fortaleza" ( 1 ) – a defesa de minha obscura pessoa, bem como de todas as egrégias personalidades e prestigiosas entidades vulneradas por S. Excia. Revma., pus nas minhas palavras todo o comedimento e todo o respeito que meu coração de católico me recomendava já que eu tinha diante de mim o Sr. Arcebispo de Fortaleza.

Todos os que leram meu artigo puderam notar de quanta reverência estava impregnada a linguagem que usei.

Resumindo quanto me ia na alma, encerrei os "Respeitosos Reparos" com estas palavras:

"Nosso presente artigo não visa abrir uma discussão e menos ainda uma polêmica. Ele constitui, isso sim, uma defesa que abre caminho para o diálogo.

O diálogo, sim, o diálogo ao longo do qual nos seja dada a alegria de poder exprimir continuamente ao Exmo. D. José de Medeiros Delgado todo o afeto e todo o respeito que "in Christo Jesu" tributamos a Sua pessoa sagrada. Se reciprocamente, como não duvidamos, formos objeto de um trato justo e caridoso da parte do ilustre Arcebispo, nosso coração se iluminará de alegria interior. E, ao longo do diálogo, ele cantará as palavras da Escritura: "Ecce quam bonum et quam jucundum, habitare fratres in unum" ( Sl. 132, 1 ). Com efeito, quão decoroso, quão agradável, quão doce é para irmãos habitarem juntos a casa sagrada que é a Santa Igreja Católica Apostólica Romana".

Por certo o público esperava que, a pronunciar-se sobre minha defesa, o Venerável Arcebispo aceitasse tão respeitoso e amável convite, e entabulasse comigo, paternal e benignamente, o diálogo assim pedido. Parece que S. Excia. Revma. não teve o coração aberto para sentir, como todo o mundo, o que havia de respeitoso e filial em minha resposta. Embora afirmando em sua tréplica, publicada no "Correio do Ceará", de Fortaleza, em data de 28 de fevereiro p.p. ( 2 ), que escrevia "com os nervos nos lugares, sem arrepios de mínima impaciência", o Sr. D. José de Medeiros Delgado não quis ver nos meus "Respeitosos Reparos" senão uma série de insolências e deselegâncias. No que consistem estas, S. Excia. Revma. não o disse. Simplesmente, recusou-se a me responder em termos de diálogo, asseverando: "Se ele quiser diálogo, dispa a túnica de polemista deselegante".

Confesso que tal recusa me deixou estupefato. E isto não só porque injusta, como ainda por outra razão, quiçá de maior monta. Na época em que, sob o influxo do Santo Padre Paulo VI e do II Concílio Vaticano, a Igreja se empenha em abrir o diálogo da salvação com adversários que contra Ela lançaram os piores ataques, as calúnias mais pérfidas, e até perseguições das mais cruentas, parece-me que, ainda se eu tivesse sido violento, à dignidade episcopal de que está revestido o Exmo. Sr. D. José de Medeiros Delgado ficaria bem a benignidade, a mansuetude, a cordura de Pastor. E ainda se eu houvesse sido deselegante, a S. Excia. Revma. melhor ficaria responder-me com elegância.

Porém, com tristeza sou obrigado a afirmá-lo, a tréplica do Sr. Arcebispo, concebida no que a linguagem polêmica tem de mais ácido e extremado, não foi senão uma descompostura.

É o que veremos nos textos citados mais abaixo.

Muitas invectivas pessoais, poucos argumentos

Odiai o erro e amai os que erram, preceituava o grande Santo Agostinho. Este é um dos mais sagrados princípios, já não direi só do diálogo da salvação, como da polêmica cristã.

Em função deles, parece-me que, se erros havia em meus "Respeitosos Reparos", justo e louvável seria que S. Excia. Revma. os tivesse refutado um a um, com lógica implacável. E que ao mesmo tempo tivesse tratado com justiça e brandura, não só a mim, como às demais pessoas que acusara.

Pelo contrário. Na tréplica do Exmo. Revmo. Arcebispo, não aponta ele um só erro, não contra-argumenta senão em dois pontos ( veremos de que modo ). E, embora tenha ficado sem fundamento para manter suas acusações e suspeitas, também não se retrata delas, como pediria a justiça. Simplesmente volta contra mim uma série de invectivas pessoais.

Ei-las. A cada uma limito-me a juntar, a título de defesa, um comentário tão sucinto quanto possível.

a) "Grei amaldiçoada dos que vivem de polêmicas estéreis"

O Venerando Prelado começa por se referir à "grei amaldiçoada" dos que se dedicam a "polêmicas estéreis". Fala ele da "ignorância que divide os homens e atira uns contra os outros, inclusive em polêmicas estéreis, como no caso do mais infeliz que só vive de polêmicas". E depois, "sem querer repetir o fariseu do templo", exclama: "Meu Deus, eu e o Dr. Eduardo Campos não pertencemos a esta grei amaldiçoada". Para que não caiba dúvida sobre o endereço desta reflexão, S. Excia. – em um gesto supremamente polêmico – me inclui explicitamente nessa grei: "[ ... ] o Dr. Plinio Corrêa de Oliveira [ ... ] só se ocupa de polêmica. É o sinal de sua grande e pobre vida, desde que escreveu um livro em "Defesa da Ação Católica".

Confesso que essa como que maldição episcopal me perturbaria profundamente, se não fosse o fato de que, precisamente "Em Defesa da Ação Católica", isto é, o livro com que, segundo S. Excia. Revma., comecei a pertencer à "grei amaldiçoada", foi objeto de uma Carta de louvor a mim dirigida, a 26 de fevereiro de 1949, em nome do Santo Padre Pio XII pelo substituto da Secretaria de Estado de Sua Santidade, Monsenhor João Batista Montini, hoje Papa Paulo VI gloriosamente reinante. Transcrevo a parte essencial do documento. Por ela verá o leitor que, se meu livro era polêmico, longe estava de ser estéril. Pois o imortal Pio XII não só o louvava calorosamente, como lhe desejava larga difusão:

"Levado por tua dedicação e piedade filial ofereceste ao Santo Padre o livro "Em Defesa da Ação Católica", em cujo trabalho revelaste aprimorado cuidado e aturada diligência.

Sua Santidade regozija-se contigo porque explanaste e defendeste com penetração e clareza a Ação Católica, da qual possuis um conhecimento completo, e a qual tens em grande apreço, de tal modo que se tornou claro para todos quão importante é estudar e promover tal forma auxiliar do apostolado hierárquico.

O Augusto Pontífice de todo o coração faz votos que deste teu trabalho resultem ricos e sazonados frutos, e colhas não pequenas nem poucas consolações. E com penhor de que assim seja, te concede a Benção Apostólica".

b) "Não passa de um cangaceiro das letras católicas"

Em seguida, o Sr. Arcebispo de Fortaleza me lança em rosto uma injúria: sou um mísero "cangaceiro das letras católicas". Eis suas palavras textuais "Desde aquele tempo que o ilustre paulista só sabe atacar, só sabe destruir. Quer ser bom, mas, à semelhança de nossos míseros Miguelinhos, não passa de um cangaceiro das letras católicas".

É outro lance altamente polêmico da tréplica. Não tenho S. Excia. em conta de leviano. Por isto, estou certo de que, antes de fazer tão grave afirmação, S. Excia. Revma. percorreu pelo menos grande parte de minha produção literária, e a outra parte terá talvez feito examinar por outrem. Permita-me pois o Exmo. Arcebispo fazer-lhe notar que nunca, no mais candente de qualquer discussão, terá encontrado, partida de minha pena, expressão tão violenta contra quem quer que seja. Um cangaceiro é um malfeitor, um assassino. Comparar alguém a um cangaceiro é uma injúria que jamais me consta haver um Bispo brasileiro lançado contra qualquer leigo. Entretanto, em plena era de diálogo e ecumenismo, acontece isto pela primeira vez...

Se até aqui eu não soube senão atacar e destruir, tudo quanto fiz não foi senão ataque e destruição. Inclusive minha participação, que foi muito considerável, na elaboração do livro "Reforma Agrária – Questão de Consciência". E assim teriam sido cúmplices deste meu grande lance de cangaceirismo dois Colegas dos mais ilustres de S. Excia., os Exmos. Revmos. Srs. D. Geraldo de Proença Sigaud, Arcebispo de Diamantina, e D. Antonio de Castro Mayer, Bispo de Campos. É a esses extremos que, por inevitável via de conseqüência, chegam as invectivas do Venerando Arcebispo de Fortaleza.

Permita o Sr. D. José de Medeiros Delgado que a este propósito aduza eu mais uma reflexão. Na minha obra de escritor, que ele reputa mero amontoado de polêmicas estéreis, figuram alguns trabalhos contra o comunismo. Será tão estéril assim polemizar contra o pior adversário que a Igreja e a civilização cristã tiveram desde os dias da existência terrena de Nosso Senhor Jesus Cristo? Não haverá, pelo menos nos meus livros anticomunistas, algo de positivo? Segundo o juízo de S. Excia. Revma., não há. Nem todo o mundo, entretanto, pensa como o Arcebispo de Fortaleza. Assim, meu ensaio "A liberdade da Igreja no Estado comunista" foi objeto, da parte da Sagrada Congregação dos Seminários e Universidades, de uma Carta de louvor, datada de 2 de dezembro de 1964 e subscrita pelo Emmo. Cardeal Pizzardo e pelo Exmo. Monsenhor Dino Staffa, Prefeito e Secretário daquele Dicastério, a qual reza:

"[ ... ] congratulamo-nos com V. Excia. e com o egrégio Autor, merecidamente célebre pela sua ciência filosófica, histórica e sociológica, e auguramos a mais larga difusão ao denso opúsculo , que é um eco fidelíssimo de todos os Documentos do supremo Magistério da Igreja, inclusive as luminosas Encíclicas "Mater et Magistra" de João XXIII e "Ecclesiam Suam" de Paulo VI, felizmente reinante.

Queira o Senhor conceder a todos os católicos que compreendam a necessidade de estarem unidos "in uno sensu eademque sententia" a fim de evitar as ilusões, os enganos e os perigos que hoje ameaçam internamente a sua Igreja!"

Este ensaio, que uma Congregação Romana qualifica de "eco fidelíssimo" do ensinamento pontifício, é para o Exmo. Sr. D. José de Medeiros Delgado obra de mero polemismo estéril.

Constrange-me continuar. É-me impossível, entretanto, defender meus escritos sem falar um pouco deles.

Outro livro que escrevi é "Revolução e Contra-Revolução". Obra de polêmica estéril segundo S. Excia. Revma. Entretanto, assim não pensou a respeito dela um Núncio Apostólico, o Exmo. Revmo. Arcebispo titular de Sidone, Monsenhor Romolo Carboni, representante da Santa Sé no Peru. Quis esse egrégio Prelado prefaciar a edição castelhana de "Revolução e Contra-Revolução". E em eu prefácio, datado de 24 de julho de 1961, se encontram as seguintes expressões:

"A leitura de seu livro "Revolution et Contre-Revolution" causou-me magnífica impressão, tanto pela justeza e acerto com que analisa o processo da revolução e desenvolve as verdadeiras origens da quebra dos valores morais, que desorienta hoje em dia as consciências, como pelo vigor, com que indica a tática e os métodos de luta para superá-la.

[ ... ] Estou certo de que com seu douto livro o Sr. prestou um singular serviço à causa católica e contribuirá para concentrar as forças do bem na rápida solução do grande problema contemporâneo. Este é, a meu ver, o caminho repetidamente indicado pelo atual Vigário de Cristo [ ... ]".

Não me seria difícil aduzir em favor destas, e de outras obras minhas, comentários encomiásticos de pessoas revestidas de grande autoridade, e que medem cada palavra que escrevem. Cinjo-me entretanto a estes, para não cansar os leitores. Estou certo de que os que prezam a boa repercussão da cultura brasileira no Exterior deplorarão que seja julgada pelo Sr. Arcebispo de Fortaleza tão sumariamente, e com tal violência, a produção intelectual de um escritor patrício, quando seus livros têm sido traduzidos em diversos países da Europa e da América Latina, e têm alcançado grata repercussão em órgãos de imprensa da Europa, dos Estados Unidos, do Canadá e da América Espanhola.

Enfim – já que S. Excia. Revma. não vê em minha vida senão um amontoado de polêmicas estéreis – devo ainda perguntar se a campanha antidivorcista que a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade lançou sob minha direção, em 1966, em numerosas cidades do País, campanha essa prestigiada pela assinatura de mais de um milhão de brasileiros, e altamente elogiada, no programa radiofônico "A Voz do Pastor", de 17 de junho daquele ano ( cf. "Diário de Notícias", do Rio, de 18 do mesmo mês ), pelo Emmo. Sr. Cardeal D. Jaime de Barros Câmara, se essa campanha prestigiada pela assinatura de Ministros de Estado, altas patentes militares, magistrados, homens públicos de grande relevo, Bispos, professores universitários, Sacerdotes, Religiosos e Religiosas, foi também um lance de polemismo estéril de minha "grande pobre vida". Para tranqüilidade de minha consciência, tenho o fato concreto de que o projeto de Código Civil divorcista foi retirado quando chegou ao auge essa campanha.

A propósito, compraz-me ressaltar a grandeza de alma de que deu prova um ilustre cearense, o então Presidente Castelo Branco. O projeto de Código Civil fora apresentado ao Congresso por S. Excia. Era compreensível que ele se sentisse magoado com a vitoriosa atuação da TFP contra o mesmo. Entretanto, o primeiro Magistrado da nação soube ver nessa campanha valores positivos. Tivemos oportunidade de o verificar, porquanto, estando S. Excia. em visita a São Paulo no dia 25 de janeiro p.p., convocou para uma audiência o Conselho Nacional da TFP, a fim de exprimir o agrado com que dele recebera uma carta com reparos ao projeto de lei de imprensa. No decurso dessa audiência, que constituía da parte do Chefe do Estado uma alta prova de consideração, S. Excia. – segundo noticiou largamente a imprensa – fez referências ao merecido prestígio de que a Sociedade goza em nosso País.

Felizmente, pois, não é todo o mundo que pensa que minha atuação pública é de um nefasto "cangaceiro das letras".

c) Para perturbar "as alegrias da vida abundante do Sul"

Depois destas invectivas contra minha pessoa e minha obra, o Exmo. Arcebispo tem um desprimor para com o Sul do Brasil. Como o Sul é rico, bom é que seja fustigado por um cangaceiro: "Que ele se fique pelo Sul onde o bem-estar, felizmente, não o faz notado. No meio das alegrias da vida abundante de lá, é até vantajoso um polemista incorrigível como o nosso beatíssimo Dr. Plinio Corrêa de Oliveira". S. Excia. Revma. se compraz em ver a fera indesejável, o polemista estéril devastando o jardim do vizinho, para que o cangaço perturbe a "vida abundante de lá".

A afirmação do Exmo. Revmo. D. José de Medeiros Delgado, de que no sul sou um desconhecido, que "não se faz notado", e a alcunha sarcástica de "beatíssimo" – estranhável na pena de um Arcebispo – resultam evidentemente do mero intuito de me humilhar e me ferir. Intuito altamente polêmico que se repete pouco adiante, quando Sr. Excia. Revma. assevera que o autor dos "Respeitosos Reparos" nem sequer merece sua tréplica: "Não por ele, mas [ ... ] pelos que estão entregues aos meus cuidados espirituais e queiram ouvir a minha palavra, é que venho pedir-lhe acolhida em "Unitário" [ ... ] para as "Conversas Avulsas" de hoje".

Bem pode aquilatar o leitor quanto é inverossímil ser um desconhecido nas suas paragens natais quem aos 24 anos já, no início de sua vida pública, foi eleito pela Liga Eleitoral Católica Deputado à Assembléia Constituinte Federal de 1934, com 24 mil votos, tendo em seguida ocupado continuamente a cátedra universitária e a tribuna, dedicando-se ao mesmo tempo ininterruptamente ao jornalismo.

Imaginemos, entretanto, que eu fosse no Sul, como deseja S. Excia. Revma., um desconhecido. Quando um Bispo se dirige a um fiel desconhecido, é conforme à benignidade pastoral atirar-lhe isso em rosto? Que grande vexame há para um católico em ser desconhecido? Não foi por ventura um desconhecido o grande Patriarca São José, cuja festa a Igreja celebra neste mês de março? É só aos ilustres e poderosos deste mundo que um Prelado deve consideração?

Contra-argumentação sumária, fugidia, pouco clara

Como vê o leitor, na tréplica do Exmo. Revmo. Sr. Arcebispo de Fortaleza a descompostura é contundente e copiosa. Pelo contrário, a parte de argumentação me parece, data vênia, sumária, fugidia e pouco clara. Com efeito, das muitas acusações do Sr. D. José de Medeiros Delgado que me permiti refutar nos "Respeitosos Reparos", S. Excia. Revma. faz silêncio sobre todas, exceto duas. Esta atitude esquiva circunscreve muito o âmbito do diálogo. Ou antes, da polêmica, já que S. Excia. me recusou o diálogo e voltou contra mim as armas da polêmica.

Seja-me lícito acrescentar que, nos dois pontos em que resolveu contra-argumentar, o Venerando Antístite não foi claro.

a) "Não me convenci da inexistência de algum alucinado"

Quanto ao panfleto lançado em Roma contra Sua Santidade o Papa Paulo VI e os Padres Conciliares com a assinatura de "Catolicismo", "Fiducia", "Cruzada" e outros órgãos católicos, demonstrei cabalmente, nos "Respeitosos Reparos", que não passava de infame documento apócrifo, e que a assinatura dos três mencionados órgãos ali estava abusivamente. A isto responde o Exmo. Revmo. Sr. D. José de Medeiros Delgado:

"[ ... ] em homenagem ao que de positivo encontrei no longo artigo polêmico do Dr. Plinio Corrêa de Oliveira, quero dizer que apenas tenho a destacar a informação oferecida pelo articulista sobre a atitude dos membros da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, da Família e da Propriedade, protestando contra a inclusão de seu nome entre assinantes do panfleto espalhado em Roma.

A isso, a esse agradecimento pela informação, peço licença imediatamente para confessar que não me convenci da inexistência de assinatura no panfleto de algum alucinado membro do movimento ou do "Catolicismo" – digo para argumentar com a opinião do Dr. Plinio – de que é impossível um membro de um movimento afastar-se da linha do seu veículo de publicidade".

Como se vê, a asserção não é clara. Não se chega a ver que nexo há entre a inexistência de assinatura, no panfleto, desse "alucinado membro" e a impossibilidade ( que aliás não afirmei ) de o membro de um movimento "afastar-se da linha do seu veículo de publicidade".

O sentido mais provável do tópico em questão talvez seja o seguinte: S. Excia. Revma. considera demonstrado que os membros da TFP ( porque a TFP, não sabemos, pois estava em foco tão somente "Catolicismo" ) protestaram contra a inclusão de seu nome entre os signatários do folheto espalhado em Roma. E agradece a informação. Mas, apesar disso, o Exmo. Arcebispo não se convenceu de que um "alucinado membro" de nossa organização ou de "Catolicismo" não tenha assinado aquele torpe documento.

Se foi isto o que quis dizer S. Excia., permita-me algumas reflexões a respeito.

Antes de tudo, ninguém é obrigado a provar que é falsa a acusação de que foi alvo. É ao acusador que incumbe o "onus probandi". Conhece o Exmo. Prelado alguma pessoa de "Catolicismo" que seja alucinada? Quem é ela? Que provas tem S. Excia. Revma. de que a assinatura do jornal tenha sido aposta por ela no vil panfleto antipapal e anticonciliar? Não parece conforme as boas normas que S. Excia. venha a público fazendo acusações dessa gravidade sem as calçar em qualquer comprovação.

Tanto mais quanto, em seu anterior artigo, o Venerando Antístite aduzia como prova de que "Catolicismo" assinara o panfleto, o fato de que os nossos redatores não teriam protestado contra este. Ora, provei que os redatores de "Catolicismo" haviam feito o protesto ignorado por S. Excia. Revma. Derrubada assim a prova, o Sr. Arcebispo mantém sua acusação, sem a estribar em nenhum argumento novo. Não me parece que seja isso conforme as normas da justiça.

No tópico transcrito, ainda outro aspecto da atitude de S. Excia. Revma. não se afigura conforme as normas da justiça.

O Sr. Arcebispo de Fortaleza atacava também, em seu primeiro artigo, as revistas "Fiducia", de Santiago do Chile, e "Cruzada", de Buenos Aires. Tive ocasião de provar que contra "Cruzada" nada se poderia alegar na matéria, pois o nome dessa publicação nem sequer figurava no documento apócrifo. Quanto a "Fiducia", provei que, do mesmo modo que "Catolicismo", protestara contra sua indevida inclusão entre os signatários do panfleto, e que assim não tinham base na realidade os argumentos formulados pelo Exmo. Sr. D. José de Medeiros Delgado.

Isto posto, parecer-me-ia de rigorosa justiça que o Prelado se apressasse em retratar a acusação. Pelo contrário, S. Excia. Revma. permanece mudo a este respeito. Por quê? Se tem novos argumentos para manter sua acusação, qual a razão por que não os aduz? E se não os tem, porque não se retrata? Não chego a compreendê-lo.

b) "Achei notável o silêncio do Dr. Plinio"

E passemos agora ao segundo ponto em que S. Excia., em sua tréplica, esboçou algo de argumentado.

Começa o Exmo. Arcebispo por asseverar: "Achei notável o silêncio do Dr. Plinio Corrêa de Oliveira para a parte final das "Conversas Avulsas" de 27 de novembro de 1966, que ele veio criticar pelas páginas de Unitário, como se seus colegas de Fortaleza fossem analfabetos". E depois de mais essa amenidade, continua: "Naquele final, eu declarava e o repito aqui: ‘não reconheço autoridade moral e religiosa aos membros da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, da Família e da Propriedade para se imiscuir em assuntos religiosos e pastorais na minha Diocese’".

Ao contrário do que afirma S. Excia. Revma., tratei do assunto em meus "Respeitosos Reparos". E não me esquivo a dele tratar novamente aqui.

É preciso distinguir entre a TFP como sociedade, e seus membros como indivíduos. A TFP é uma entidade de caráter estritamente cultural e cívico, que desenvolve sua atividade ideológica no mero plano do direito natural. Enquanto tal, ela não se enquadra na categoria das sociedades religiosas, e não deve entrar o âmbito destas.

Mas a TFP sabe que possui o direito de opinar – respeitosamente embora – sobre qualquer fato que se passe no País, desde que ele seja susceptível de ser analisado do ponto de vista do direito natural, e afete os três nobres valores que são a Tradição, a Família e a Propriedade.

Ao agir assim, claro está que a Sociedade não pretende falar em nome da Sagrada Hierarquia, nem se imagina revestida de qualquer autoridade religiosa para tanto. A TFP só fala em nome próprio.

É bem certo que a Igreja é a mestra e a mantenedora do direto natural. E assim a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, que é constituída de católicos e fala a um povo católico, fundamenta freqüentemente em Documentos pontifícios suas tomadas de posição no tocante ao direito natural. Agindo desse modo, ela não só usa de um direito mas cumpre uma obrigação. Pois as entidades cívicas e culturais como a TFP, embora não sejam de forma nenhuma associações religiosas, devem conhecer, seguir e defender os princípios ensinados pelos Romanos Pontífices e pela Santa Igreja em matéria de direito natural.

E a Sociedade está cônscia de que esta sua posição só pode ser bem vista pela Igreja, desde que nos mantenhamos sempre fiéis na obediência ao direito natural por esta ensinado. Assim, portanto, todo o problema para quem nos queira acusar neste campo se reduz ao seguinte: se erramos em algum ponto do direito natural, então realmente merecemos censura. Neste caso, aliás, prontamente e com a mais inteira submissão, nos retrataremos. Se não erramos, sentimo-nos inteiramente à vontade em nossa posição.

Vejamos agora o que diz respeito aos membros da TFP como tais. Como toda associação não aceita ela qualquer responsabilidade pelo que os seus membros façam a título puramente privado, e sem alegar sua qualidade de sócios.

Isto posto, um católico, filiado à TFP, a título puramente pessoal é um católico como outro qualquer, sujeito às mesmas obrigações e titular dos mesmos direitos que seus irmãos na Fé. Acho compreensível e razoável que a propósito do que ocorra na preclara Arquidiocese de Fortaleza, como em qualquer outro lugar, os membros da TFP usem de toda a liberdade de expressão e ação que o Direito Canônico lhes assegura. Conhecendo-lhes o entranhado senso católico, o ardente amor à Igreja, o profundo respeito aos sagrados direitos da Hierarquia, estou certo de que jamais saíram desse limite.

As últimas invectivas: algumas ácidas, todas vagas

O ilustre Arcebispo faz em seguida uma censura à atuação antijanguista e contrária às reformas de base, da TFP, em Minas Gerais. Mas em termos tão vagos, que nem sequer me é possível refutá-los. Depois, refere-se ele a "aspectos demagógicos" de nossa recente campanha antidivorcista. Porém, com o pouco que S. Excia. Revma. diz sobre esses aspectos, também me é impossível defender contra essa increpação a TFP.

Por fim, S. Excia. me dirige ainda uma ameaça, referindo-se a membros da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade que seriam "vítimas de alienação pliniana". E conclui condenando-me em nome da doçura evangélica, como se eu fosse o mais ácido dos polemistas, o mais leviano e gratuito dos acusadores: "Se ele quiser diálogo, dispa a túnica de polemista deselegante".

Faltam as condições para o diálogo autêntico

O leitor compreenderá facilmente, ao cabo de tudo quanto leu, que, já que a paixão de meu ilustre e venerando contendor chegou contra mim a tais extremos, e sua argumentação é tão sumária e esquiva, não existem as condições para que um diálogo autêntico se trave entre nós. A continuar a polêmica neste diapasão seria eu obrigado a dizer eventualmente coisas que o sumo respeito que tributo à dignidade de um Arcebispo me impede de dizer. E seria obrigado a ouvir coisas que minha dignidade de homem, de cristão remido pelo Sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor Jesus Cristo, de filho amorosíssimo da Santa Igreja Católica, me impede de tolerar.

( 1 ) Publicado no último número de "Catolicismo", juntamente com a transcrição do texto das "Conversas Avulsas" de 26-27 de novembro.

( 2 ) Texto reproduzido abaixo.

 


 

TEXTO DAS NOVAS

"CONVERSAS AVULSAS"

É o seguinte o texto das "Conversas Avulsas" do Exmo. Revmo. Sr. D. José de Medeiros Delgado, Arcebispo Metropolitano de Fortaleza, publicadas no "Correio do Ceará", edição de 28 de fevereiro p.p.:

– I –

Estou hoje, caro Dr. Manoelito sendo docemente obrigado a dirigir-me ao Sr., nestas Conversas Avulsas. Faço-o, movido pela admiração e estima que lhe tenho e instigado pela intromissão do Dr. Plinio Corrêa de Oliveira, lá de S. Paulo, em nossa vida de humildes nordestinos. Felizmente o inverno, neste momento, como o Sr. o sabe festejar em seu último romance "À Véspera do Dilúvio", se de um lado espalha apreensões, de outro reanima tudo. Reanima e leva-nos a vibrar intensamente, ainda quando encontramos pelo caminho uma vítima de traiçoeira emboscada. No seu romance foi o caso do mísero amante de D. Alice. Pobre João Paulo – exclama o leitor de "À Véspera do Dilúvio" – mas logo observa que o morto jaz mergulhado na lama e diz consigo mesmo: "é sempre melhor do que afogado na poeira esvoaçante da seca". Nasci no sertão paraibano e tenho um pouco da sua sensibilidade, embora desacompanhado do seu talento literário. Quase choro diante do outro cadáver, daquele de Miguelinho também em seu romance, dependurado da corda. Vejo-o, porém, a escorrer água da chuva; já nem sei se nas páginas do livro ou na minha imaginação de leitor sem memória, vejo-o redimido da seca do coração de ignorante, vítima dessa maldita ignorância que divide os homens e atira uns contra os outros, inclusive em polêmicas estéreis, como no caso do mais infeliz que só vive de polêmicas. Sem querer repetir, o fariseu do templo, acrescento imediatamente: "Meu Deus, eu e o Dr. Eduardo Campos não pertencemos a essa grei amaldiçoada".

– II –

Eu ia dizendo que estou impelido pelo Dr. Plinio Corrêa de Oliveira, de São Paulo, mas em tempo de inverno e portanto com os nervos nos lugares, sem arrepios de mínima impaciência. Estou mesmo sorridente ao abrir estas "Conversas Avulsas". Só poder dizer com satisfação que este ano não iremos pedir esmolas no Sul, é uma glória. Até está sucedendo o contrário. O Sul é que anda mendigando 20% das migalhas destinadas ao Nordeste. Não sei do juízo que faz a tal respeito o Dr. Plinio Corrêa de Oliveira. Não, ele só se ocupa de polêmica. É o sinal de sua grande e pobre vida, desde que escreveu um livro em "Defesa da Ação Católica". E isto vai muito longe. Jango nem era conhecido. Desde aquele tempo que o ilustre paulista só sabe atacar só sabe destruir. Quer ser bom, mas, à semelhança de nossos míseros Miguelinhos, não passa de um cangaceiro das letras católicas. Que ele se fique pelo Sul onde o bem-estar, felizmente, não o faz notado. No meio das alegrias da vida abundante de lá, é até vantajoso um polemista incorrigível como o nosso beatíssimo Dr. Plinio Corrêa de Oliveira.

Imagine meu doutor romancista, que, durante o Concílio, alguém se empenhou para levar aquele paulista ilustre às Aulas Conciliares. Ainda bem que não chegou a ir. Teria feito asa com um polemista da sua corrente integrista, um padre francês que vivia ao lado de um dos seus protetores – padre conciliar – tendo caído no ridículo de denunciar os Bispos de uma certa nação latino-americana aos dirigentes das Aulas Conciliares provocando um triste incidente. Tudo passou, mas o aborrecimento foi grande. Estou referindo-me a isso, muito de passagem, pelo fato do Dr. Plinio saber poucas cousas de integrismo, máxime em se tratando da presença de bispos integristas no Vaticano II. E acrescento logo: os brasileiros da dita escola eram, no caso, caudatários, simples caudatários. Ainda bem que nós brasileiros ainda não criamos doutrinas esdrúxulas, como o maniqueísmo, e o integrismo.

– III –

Não por ele, mas pelos que aqui se encontram, sobretudo pelos que estão entregues aos meus cuidados espirituais e queiram ouvir a minha palavra, é que venho pedir-lhe acolhida em "Unitário", se possível também em edição dominical, para as "Conversas Avulsas" de hoje.

Nelas, em homenagem ao que de positivo encontrei no longo artigo polêmico do Dr. Plinio Corrêa de Oliveira, quero dizer que apenas tenho a destacar a informação oferecida pelo articulista sobre a atitude dos membros da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e da Propriedade, protestando contra a inclusão de seu nome entre assinantes do panfleto espalhado em Roma.

A isso, a esse agradecimento pela informação, peço licença imediatamente para confessar que não me convenci da inexistência de assinatura no panfleto de alguma alucinado membro do movimento ou do "Catolicismo" – digo para argumentar com a opinião do Dr. Plinio – de que é impossível o membro de um movimento afastar-se da linha do seu veículo de publicidade.

Eu, como pastor, diante mesmo de censuras de alguém sem autoridade para tanto, tenho o dever de esclarecer aos que vivem em torno de mim.

Achei notável o silêncio do Dr. Plinio Corrêa de Oliveira para a parte final das "Conversas Avulsas" de 27 de novembro de 1966, que ele veio a criticar pelas páginas de Unitário, como se seus colegas de Fortaleza fossem analfabetos. Naquele final, eu declarava e o repito aqui: "não reconheço autoridade moral e religiosa aos membros da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, da Família e da Propriedade para se imiscuir em assuntos religiosos e pastorais na minha Diocese". Ali está toda a gravidade do meu pronunciamento delicado, mas incisivo e é muito original que a este respeito o Dr. Plinio Corrêa de Oliveira não tenha dado a mínima atenção. Só ali há alguma cousa de pesado, de grave, de importante para mim e isto eu faço questão de tornar público.

É tempo de dizê-lo para que não aconteça o que aqui já aconteceu em duas oportunidades: primeiro, por ocasião de uma luta política em Minas Gerais entre membros da Sociedade do Dr. Plinio e membros da Ação Católica e, mais perto de nós, quando da Campanha antidivorcista. Nesta última, passar da santidade da causa, os processos da referida sociedade tomaram aspectos de demagógicos e eu jamais os aprovaria. Por delicadeza moral, por excesso de respeito a alguns que reconheço vítimas de alienação pliniana, nada reclamei.

Concluo estas ingratas declarações, meu caro Dr. Manoelito, pedindo-lhe para o número de domingo, a reprodução das "Conversas Avulsas" que deram ocasião ao artigo do Dr. Plinio Corrêa de Oliveira. Só assim o leitor inteligente fará um juízo crítico dos despropósitos do meu crítico de São Paulo. Se ele quiser diálogo, dispa a túnica de polemista deselegante.

 


"Catolicismo" Nº 197 – Maio de 1967

 

 

Em nossa última edição ( ver acima ), publicamos o artigo de nosso colaborador Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, intitulado "Um diálogo que se tornou impossível – Comentários à tréplica do Exmo. Arcebispo de Fortaleza".

Pareceu conveniente a S. Excia. Revma. o Sr. D. José de Medeiros Delgado dar a lume, à guisa de resposta, mais uma de suas "Conversas Avulsas".

Transcrevemos aqui o respectivo texto, estampado em "O Unitário", de Fortaleza, edição de 9 de abril p.p. Nossos leitores verão porque o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira se abstém de responder ao novo artigo do Venerando Prelado.

 


 

TEXTO DAS DERRADEIRAS

"CONVERSAS AVULSAS"

 

– I –

"Ótima oportunidade dei ao Prof. Plinio Corrêa de Oliveira de fazer uma longa exposição sobre seus méritos e sobre seus escritos alguns traduzidos em diversas línguas, outros aplaudidos por altas personalidades eclesiásticas, sem excetuar o atual Papa, quando secretário de Estado de S.S. Pio XII.

Depois de tudo isto, que poderei responder ao nobre cidadão? Nada. Seria certamente inútil voltar a falar a gente tão importante. Que lhe falta para chegar ao Céu? Somente fechar os olhos e abri-los na eternidade?

À luz da eternidade saberá ele um dia o que valem as glórias terrenas, mesmo as que parecem incontestáveis e seguras.

Saberá, por exemplo, o que pode valer um mísero cangaceiro do Nordeste comparado a um professor de Universidade.

É muito possível que um pobre cangaceiro nordestino a quem o Dr. Plinio não quer ser comparado nem de brincadeira, mereça muita atenção do Pai Eterno, embora na terra tenha recebido desprezo e condenação.

Eu me acostumei a ver como são grandes alguns desses desprezados seres humanos, pequenos e medíocres no juízo dos homens, principalmente dos que nunca conheceram a miséria, a perseguição e a injustiça, criadoras de tipos exteriormente tão malsinados em sua própria pátria e pelos seus próprios irmãos.

– II –

Eu agradeço a Deus de ter nascido nesta amada terra desconhecida pelo Prof. Universitário. Assim fiquei marcado pela piedade para com esses nossos irmãos. Vi-os ainda na infância. Em minha família, que habitou o sertão adusto até os meus nove anos sendo eu o sétimo de dezessete irmãos, conversava-se, muitas vezes, sobre a sorte do cangaceiro. Certa vez trinta e cinco deles, companheiros do célebre Antonio Silvino, ocuparam a fazenda de meu pai. Não fizeram mal a ninguém.

Apenas custaram aos nossos paióis de milho, farinha, arroz e rapadura, como ao nosso curral de gado, algumas baixas. Foi em época política delicada. A Paraíba atravessava um período de duras caçadas àqueles infelizes. Ainda se falava na chacina de Ingá do Bacamarte, onde, em 1911, onze homens capturados num combate com a polícia, foram sangrados barbaramente numa manhã triste.

Meu pai era um homem que passara pelo seminário de Olinda e ainda se preparou para o vestibular de Direito na Faculdade de Recife. Minha mãe descendia de uma família das Espinharas, no Rio Grande do Norte. Na minha casa vivia-se a caridade cristã. Não se dizia mal de ninguém. Tinha-se sentimento de solidariedade humana para com os que sofrem perseguição. Eu aprendi a ver os próprios cangaceiros como minha mãe os via. Não tenho outras cousas gloriosas a contar como o ilustre homem de letras e de Universidade. Glorio-me, porém, de ter amado o cangaceiro nordestino pelo qual não alimento o horror do civilizado paulista.

Se o chamei de cangaceiro das letras foi mais para elevá-lo na coragem. O cangaceiro nordestino antes de ser um malfeitor era um forte. O Dr. Plinio pode não ter outro tipo de coragem, mas no escrever, é um cangaceiro.

– III –

Contarei uma história de cangaceiro. Eu já estava no Seminário. Conhecera Cícero Porfírio em casa de meu pai, ainda residindo em Malta, município de Pombal. Minha família deixara o sertão em 1914. Cícero continuava no sertão e trabalhava na fazenda de um dos Belizarios. Certo dia, ao fazer contas com patrão foi agarrado de surpresa por cinco dos agregados deste e, cortados os tendões dos pés e amarradas as mãos, levaram-no preso a um pau, até um serrote. Ali deram-lhe uma descarga de balas e o atiraram a uma loca de pedra. O pai do desventurado que o havia mandado para o sertão, somente com o pensamento de o livrar de perseguições no Brejo de Areia, donde era nativo, terminou sabendo da morte do filho. Foi procurá-lo. Achou a caveira do mísero rapaz pelo fato de ter encontrado naquele serrote, que diziam ter sido o lugar do crime, uns urubus mortos por enganchamento na dita loca de pedra. A roupa em que se encontravam os ossos, o esqueleto ainda inteiro de Cícero era de mescla azul e nova. Resistira à decomposição. As cordas com que o haviam amarrado ao pau tinham apodrecido mas deixaram sinal na roupa. O desventurado pai levou o achado fúnebre à Capital da Paraíba. Mostrou ao público e às autoridades como mataram o filho. Não houve punição. Vi quando o infeliz pai trouxe até vila de Esperança, vizinho à Campina Grande, os restos mortais do filho. Foi encomendado e enterrado naquela terra. Ali habitava naquele tempo a minha família.

Cícero fora morto pela fama que conquistara de homem valente. Tivera uma grande safra de algodão. Queria fazer contas e deixar o sertão. Não sei se foi só perversidade do patrão ou simples covardia do mesmo, diante da perversidade de seus moradores, que tinham muita inveja de Cícero, a razão do crime. O certo é que não o puniram e o velho pai perdeu a cabeça.

Deixou o Brejo de Areia e transferiu-se para o sertão paraibano, a fim de ajustar as contas com os matadores do filho. Chegou a eliminar uns dois dos criminosos e deitou fogo à fazenda do Belizário, tido como principal responsável pela desgraça sucedida ao filho. Passei pela fazenda reduzida a ruínas. Vi ainda carcaças espalhadas no pátio.

Esta dolorosa tragédia e outras tantas, romanceadas pelos cantadores sertanejos, forram meu espírito de criança. Minha mãe dava a tudo uma cor de piedade. Tinha um grande amor aos miseráveis. Plantou-me no coração uma comiseração profunda pelo homem sofredor destas terras brasileiras.

Transfiro-a ao cristão empavonado. Quando falo de cangaceiro do sertão posso escandalizar a um Plinio Corrêa de Oliveira, mas o fato é que, me enterneço. Eu amo a esse tipo de homem do Brasil. Amo-o e o lastimo. Lastimo-o e tenho vontade de defendê-lo dos cidadãos cultos que o não conhecem e desprezam. Só estou voltando a falar no nome do exmo. sr. Prof. Plinio para defender o cangaceiro do meu sertão.

– IV –

Agradeço ao Dr. Plinio Corrêa de Oliveira a quem não culpo pelo desprezo que nutre pelo cangaceiro. Desculpo-o das estiradas de auto-elogio e das raivas que teve de mim pelo fato de não lhe ter dado maior importância às críticas falsamente respeitosas, feitas a minha pessoa. Tranqüilizo-o. Não falarei mais de sua pessoa até nos encontrarmos na eternidade. Espero que os seus filhos espirituais, em Fortaleza, até a minha morte me tenham ao menos o respeito do silêncio que o Dr. Plinio não soube manter. Também não lhe peço que leia, até morrer minhas Conversas Avulsas, que são escritas só para meus diocesanos. Que se esqueça de mim como, eu o farei de sua pessoa grande demais para ser tocada pelo Arcebispo de Fortaleza. Eu respeito muito o que o Papa venera Deus me livre de tocar mais em tal santo.

E vamos continuar a vida. Fortaleza jamais precisará de Plinio Corrêa de Oliveira para cousa alguma. Vamos continuar a vida e pedir a Deus que os ensinamentos de Direito Natural do Prof. de São Paulo não perturbem a consciência dos seguidores do Evangelho de Jesus Cristo destas bandas do Nordeste.

– V –

Costa e Silva acaba de assumir o governo do Brasil. Cá os cearenses esperam algumas graças do seu governo. Este é o grande acontecimento a festejar pós o terceiro aniversário da Revolução de 31 de março de 1964.

Que Deus proteja a Pátria que nos deu. Eu a amo pelos cangaceiros e pelos professores de universidade que desprezam aqueles nossos irmãos".