Catolicismo Nº 195 - Março de 1967
Respeitosos reparos a "Conversas Avulsas" do Exmo. Sr. Arcebispo de Fortaleza
Plinio Corrêa de Oliveira
Sob o título simpático de "Conversas Avulsas" S. Excia. Revma. O Sr. D. José de Medeiros Delgado, Arcebispo de Fortaleza, publica habitualmente artigos em que dialoga de maneira viva, atraente e singela, com seus diocesanos.
Cada gênero literário apresenta, entretanto, a par de possibilidades de expressão próprias, também limitações específicas. Não cremos que em um artigo do gênero das "Conversas Avulsas" seja possível tratar a fundo, com os necessários matizes, e com a indispensável amplitude de argumentação, temas melindrosos. Por exemplo, temas que põem em jogo a reputação alheia. Em matéria como esta, a ética exige do escritor que use de toda a circunspeção, que formule exclusivamente acusações definidas e solidamente demonstradas. Constitui grave falha difundir acusações pessoais imprecisas, vagas ou mal fundamentadas. Como também se deve censurar a publicação de meras suspeitas, desacompanhadas de motivação que lhes confira sérios visos de verdade.
Foi por isso que tivemos uma dolorosa impressão ao ler – com não pequeno atraso – as "Conversas Avulsas" publicadas na edição de 26-27 de novembro de 1966 de "O Nordeste" ( diário pertencente a uma empresa que tem como Diretor-Presidente o próprio Sr. Arcebispo D. José de Medeiros Delgado, e como Diretor-Superintendente um Sacerdote, o Revmo. Pe. Francisco Pinheiros Landim ). Nesse artigo ( 1 ) notamos nada menos que seis acusações – além de outras menores – contra professores, jornalistas e homens de ação que vêem dedicando toda sua existência ao serviço da Tradição, da Família e da Propriedade. Nesse artigo também não se poupam jovens dedicados e brilhantes, que têm o grande mérito de votar seus lazeres às mais nobres causas, enquanto tantos e tantos outros moços esbanjam seu tempo em diversões imorais ou em conspiratas esquerdistas.
Dessas acusações pelo menos uma, e quiçá a mais grave, envolve toda uma corrente de Prelados que atuaram com brilho no Concílio Vaticano II, e entre estes, dois Bispos brasileiros que todo o País admira por sua inteligência rútila, sua grande cultura, e sua indiscutível competência teológica: D. Geraldo de Proença Sigaud, S.V.D., Arcebispo de Diamantina, e D. Antonio de Castro Mayer, Bispo de Campos.
Sem dúvida, o autor de "Conversas Avulsas" foi traído pelo próprio gênero literário que adotou. Condensando em um só artigo tantas acusações e tantas suspeitas, contra um tão largo número de pessoas, julgou que era possível fazê-lo com a argumentação sumária e a linguagem pouco precisa inerentes a meras "conversas avulsas". E, data venia, nisto se enganou.
Alvejado eu mesmo, que como Presidente do Conselho Nacional da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, quer como apagado colaborador do brilhante órgão de cultura que é "Catolicismo", vejo-me no direito e também no dever de opor de público uma formal contradita às asserções e às suspeitas que constituem a matéria do artigo citado.
Acuado a me defender, não perco de vista que é em relação a um Prelado que me defendo. E que para todo fiel, qualquer Bispo é sempre um pai. É, pois, com ânimo de filho que desejo haver-me nesta triste emergência. E assim, antes de passar à análise do artigo do Venerando Arcebispo de Fortaleza, desejo exprimir a S. Excia. Revma., a par de minha profunda mágoa, também minhas homenagens e o preito de meu filial acatamento.
O fundo de quadro
Está na lembrança de todos a situação do Brasil na última fase do governo João Goulart. De Norte a Sul, o País era varrido por um tufão comuno-progressista. O então Presidente não ocultava sua simpatia para com os vários projetos de reforma agrária socialista e confiscatória que esvoaçavam no Congresso; em São Paulo já estava aprovada a lei de revisão agrária Carvalho Pinto. E um pouco por toda parte se faziam ouvir vozes pedindo a reforma urbana, bem como a reforma das empresas.
Em face dessa situação, a opinião católica se dividiu. Como todos sabem, o Arcebispo de Diamantina, D. Geraldo de Proença Sigaud, o Bispo de Campos, D. Antonio de Castro Mayer, o economista Luiz Mendonça de Freitas e eu havíamos publicado um livro intitulado "Reforma Agrária - Questão de Consciência", que denunciava como socialistas e confiscatórios certos projetos de reforma agrária. Mais tarde, publicamos a "Declaração do Morro Alto", programa construtivo de reforma agrária cristã, escoimado de qualquer nota socialista ou confiscatória. Em "Reforma Agrária - Questão de Consciência", dedicamos um espaço não pequeno, para refutar, de passagem embora, as demais reformas de base socialistas e confiscatórias.
Vozes autorizadas do Episcopado prestigiaram com seu apoio o livro "Reforma Agrária – Questão de Consciência". Análoga posição em face desses assuntos assumiu "Catolicismo".
Dentro do âmbito próprio a uma entidade meramente cívica, também entrou vigorosamente em liça, a favor daquele livro, e portanto contra as reformas socialistas e confiscatórias, a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade.
Entretanto, também das venerandas fileiras do Episcopado Nacional emanaram em considerável número pronunciamentos categoricamente discrepantes da posição tomada pelos autores de "Reforma Agrária – Questão de Consciência" diante da revisão agrária paulista e do agro-reformismo.
De outro lado, e atuando em faixa própria, o tristemente famoso jornal "Brasil, Urgente", publicado em São Paulo, dirigido pelo Revmo. Frei Carlos Josaphat, O.P., e ligado a líderes janguistas da chamada esquerda católica, o ex-Ministro Paulo de Tarso e o ex-Deputado Plinio de Arruda Sampaio, enchia o País com seus bramidos demagógicos a favor de todas as reformas de base. Esse órgão chegou a publicar uma poesia que declarava adequado o momento para os trabalhadores rurais procederem ao morticínio dos proprietários de terras. No Nordeste, o irrequieto Pe. Melo se entregava a uma campanha desenfreadamente demagógica para sublevar as massas rurais.
De tantas divergências nasceram, como é claro, lances diversos que não é o momento de historiar.
De passagem, apenas, fazemos notar que, em conseqüência de tais fatos, os meios católicos – quer favoráveis, quer contrários ao agro-reformismo confiscatório – se viram na contingência de concordar com uma parte do Episcopado e discordar da outra parte. Isto não obstante, toda a campanha movida por "Catolicismo" e pela TFP visou continuamente o agro-reformismo janguista e outras eventuais reformas de base, consideradas em um plano doutrinário elevado e impessoal, e de nenhum modo teve o caráter de uma ofensiva dirigida fundamentalmente contra os Srs. Bispos que pensavam de outra maneira. Este é um fato impossível de ser contestado, pois se trata de uma campanha registrada toda ela nas páginas de "Catolicismo", bem como nas sucessivas edições de "Reforma Agrária – Questão de Consciência" e "Declaração do Morro Alto". O que em todo esse volumoso material se nota é que as referências aos Prelados favoráveis à revisão agrária paulista e à reforma agrária janguista foram apenas feitas quando os fatos o exigiam absolutamente, e vasadas numa linguagem sóbria e profundamente respeitosa.
Tudo isto sobre a reforma agrária e as demais reformas de base. Não tinha ainda perdido sua incandescência esse problema, quando se reuniu em Roma o Concílio Vaticano II. Como é natural num Concílio, definiram-se neste duas correntes, uma preocupada principalmente em promover e ampliar a atualização da Igreja no momento presente, e outra empenhada principalmente em preservar, dentro de um legítimo "aggiornamento", a continuidade da doutrina e da tradição.
Ora, sucedeu que os Srs. Bispos brasileiros que mais categoricamente discordaram do livro "Reforma Agrária – Questão de Consciência" se incluíram todos, ou quase todos, na primeira corrente, enquanto na segunda tomavam posição de inconfundível relevo os Exmo. Revmos. Srs. D. Geraldo de Proença Sigaud e D. Antonio de Castro Mayer. Registro o fato por ser isto indispensável para a compreensão do que se segue. Abstenho-me de estudar aqui se esse curioso paralelismo de posição constitui mera coincidência, ou se resulta de algum motivo doutrinário. Consignemos apenas que, nos meios do laicato brasileiro, fato análogo se passava.
Com efeito, enquanto "Catolicismo" se entusiasmava com a atuação da corrente conciliar prevalentemente tradicionalista ( a TFP, por seu caráter estritamente cívico, não tinha pronunciamento a fazer na matéria, e por isso a omitimos no caso ), a generalidade dos elementos católicos que divergiam de "Reforma Agrária – Questão de Consciência" se entusiasmava com a atuação da corrente que visava prevalentemente a atualização da Igreja.
Encerrado o Concílio, claro está que, nos numerosos e vastíssimos círculos que se interessaram pela reforma agrária, e depois pelos problemas conciliares, essa interessante e importante bipartição continua.
Esta a problemática rica em aspectos religiosos, culturais, psicológicos e sociais que nos importava evocar. Pois ela constitui o fundo de quadro sem o qual é impossível compreender os graves ataques contidos nas "Conversas Avulsas" do Venerando Arcebispo de Fortaleza, e a resposta que nos vemos na contingência de lhe oferecer.
Não convém deixar o assunto sem ressaltar antes que, por sua importância, por sua elevação, por sua multiforme riqueza de aspectos, os temas envolvidos nesta grande e substanciosa controvérsia conferem à mesma uma magnitude especial. Situa-se ela desde logo na linha dos episódios mais notáveis e interessantes de toda a história do pensamento brasileiro. E merece um estudo sereno em que os aspectos doutrinários prevaleçam de todo em todo sobre as considerações pessoais, bem como os grandes lances e as linhas gerais releguem para o segundo plano os episódios secundários, o diz-que-diz e as pequenas demasias a que eventualmente se tenham entregue, de um lado e de outro, pessoas, não direi de primeira nem de segunda, mas de terceira plana.
A posição das "Conversas Avulsas" do Exmo. Arcebispo
Ora, acontece que, segundo se depreende das "Conversas Avulsas", o Exmo. D. José de Medeiros Delgado é favorável às reformas de base.
Por outro lado, S. Excia. Revma. se inclui evidentemente, no artigo aqui comentado, na corrente conciliar que postula prevalentemente a atualização da Igreja.
Em vez de ver principalmente em todos esses assuntos um nobre e árduo conjunto de problemas doutrinários, S. Excia. Revma. parece que experimentou a respeito deles um vivo ressentimento pessoal. Assim, afirma que os Srs. Bispos do Nordeste se sentiram pessoalmente atingidos pela campanha movida pela TFP e por "Catolicismo" contra as reformas de base: "sentiram-na na carne", assevera o Sr. Arcebispo de Fortaleza. A asserção pode não ser exata quanto a outros Srs. Bispos daquela região. Mas bem deixa ver que "na carne" do Exmo. Sr. D. José de Medeiros Delgado algo vibrou.
Essas circunstâncias talvez expliquem que as medidas de paciência de S. Excia. Revma. já estivessem cheias quando um fato novo as fez transbordar. Este fato novo foi a divulgação da carta-circular do Exmo. Revmo. Sr. D. Antonio de Castro Mayer sobre o manifesto dos Exmos. Revmos. Srs. Bispos do Nordeste e a subseqüente crise religioso-militar. E o transbordamento foram as "Conversas Avulsas".
Um conjunto de circunstâncias levara o preclaro Bispo de Campos a, amainada a referida crise religioso-militar, dirigir uma circular confidencial ao Venerando Episcopado Nacional externando seu pensamento sobre a matéria. Era um documento lúcido, sereno e firme, que, publicado, colheu aplausos em todo o Brasil.
Com efeito, o documento foi publicado. Provavelmente por um desses casos fortuitos cuja explicação permanecerá para sempre desconhecida, a carta do Exmo. Revmo. Dr. D. Antonio de Castro Mayer – como tantos outros documentos confidenciais ao longo da História – acabou caindo nas mãos de homens de imprensa, e daí passou com muita saliência para as páginas de um grande matutino paulista.
Como era inevitável, a carta confidencial foi objeto de vivas controvérsias. Aqui e acolá, foi ela transcrita por outros órgãos da imprensa, e bem o merecia ser pela palpitante atualidade do assunto, como pela profundidade dos conceitos que continha. Nada de mais explicável do que desejar a opinião pública de Fortaleza – tão inteligente e vivaz –conhecer o documento. E nem se compreende que, reproduzido por toda parte, dele ficasse privada apenas a Capital cearense. Assim, o belo documento que se deve ao talento privilegiado de D. Antonio de Castro Mayer saiu a lume também em Fortaleza.
O Exmo. Sr. D. José de Medeiros Delgado, que já vinha "sentindo na carne", com a sensibilidade a tinir, os anteriores acontecimentos, julgou então urgente revidar. Era imprescindível, segundo S. Excia., prevenir seus diocesanos contra a influência de "Reforma Agrária – Questão de Consciência", de "Catolicismo" e da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade.
E para isso S. Excia. articulou as imputações e as suspeitas contidas em suas "Conversas Avulsas".
Imputações e suspeitas
Deixando de lado várias acusações miúdas, e atendo-nos ao essencial, enumeramos aqui os pontos em que mais importa opor, respeitosamente embora, contestações e ressalvas às palavras do Exmo. Revmo. Sr. D. José de Medeiros Delgado. Iremos enunciando cada ponto, e opondo-lhe pari passu o respectivo comentário.
a) "Atitude gritantemente oposta aos Bispos"
É bem verdade que a campanha contrária às reformas de base foi franca e desassombrada. Mas de nenhum modo merece o apelativo de "gritante", pois não fez senão usar os meios comuns da propaganda correta, sem promover gritos nem vozerio de qualquer espécie. Menos ainda essa campanha teve outro alvo senão as reformas de base. E se ela se ocupou esporadicamente com pronunciamentos contrários, desses ou daqueles Prelados, fê-lo em defesa própria, com toda a correção de linguagem. Já o dissemos acima, e o repetimos aqui.
Está em maõs de todos o que na ocasião foi publicado. A acusação de "opositores gritantes" ao Episcopado só poderá prevalecer caso o Exmo. Revmo. Sr. D. José de Medeiros Delgado aponte em que documento, em que página, em que texto merecemos a censura. Graças a Deus, scripta manent.
b) A oposição dos jovens
Queixa-se S. Excia. Revma. de que "há jovens também entre os adeptos de tais idéias. Vemo-los em nome de Deus pensando prestar serviços à Igreja, espalhar notícias contrárias aos seus imediatos superiores hierárquicos". Em outro tópico assevera ter "recebido a alcunha de homem de esquerda e até de comunista".
Parece-me impossível que algum jovem se tenha apresentado pomposamente como representante de Deus para declamar contra S. Excia. Revma. Conheço Fortaleza e tive a ocasião de admirar o fino senso do ridículo que caracteriza seus habitantes. Não creio que uma tal atitude pudesse ser mantida ali sem que afundasse tudo em copiosa gargalhada.
"Em tempo de guerra, mentira é como terra", afirma o rifão. O que se diz do tempo de guerra pode igualmente afirmar-se dos tempos de dissensão ideológica e de confusão. Os ânimos se exaltam, as imaginações se aquecem. E se em épocas normais, mesmo sem o menor intuito de mentir, "quem contra um conto acrescenta um ponto", em épocas de efervescência a tendência ao exagero ainda é muito maior. Ferve o diz-que-diz. E as afirmações mais defensáveis podem facilmente ser interpretadas num sentido pejorativo. Assim, se algum jovem da TFP afirmou que a reforma agrária faz o jogo do comunismo, não é de espantar muito que alguma outra pessoa tenha entendido que ser agro-reformista é ser comunista, e que por fim uma terceira pessoa tenha propalado que essa ou aquela figura saliente da TFP haja dito que um Bispo X, agro-reformista, é comunista. Por isto mesmo, o melhor nestas coisas é recusar importância ao diz-que-diz, nada fundamentar em palavras que voam sem deixar rastro.
É o que temos feito de nossa parte, com quanto diz-que-diz nos chega de outras bandas ou arraiais.
Quer isto dizer que negamos absolutamente a possibilidade de ter havido aqui ou ali uma demasia de linguagem ou uma injustiça de apreciação?
Não conheceria a natureza humana quem, em qualquer campo ideológico, ousasse fazer tal negativa. Salientamos simplesmente que não está provado que tais demasias existiram, nem que se possa imputá-las a um número ponderável de pessoas de cabeça fria e verdadeiro senso de responsabilidade.
Os mexericos miúdos ou esporádicos, a loqüela dos irresponsáveis nem podem nem devem ser tomados a sério por quem queira ver em suas devidas proporções coisas desta magnitude.
c) "Um infame panfleto"
Historia o Sr. D. José de Medeiros Delgado em "Conversas Avulsas" o seguinte fato:
"Nas imediações da votação definitiva da Declaração sobre a Liberdade Religiosa, correu, na Cidade Eterna, um infame panfleto em que se ameaçava o Papa e os Bispos do mundo inteiro, com o fim de obter efeito contra a aprovação do referido documento conciliar. Pois bem, entre os assinantes do panfleto constava "Catolicismo". Ora "Catolicismo" é um jornal feito no Brasil. Este órgão de imprensa da responsabilidade de um dos nossos bispos tem um similar em Buenos Aires, "Tradición" e outro em Santiago do Chile, "Fiducia". Aqueles dois, algumas vezes aparecem com os mesmos textos de "Catolicismo". Constavam como "Catolicismo", na lista dos autores do panfleto".
Antes de prosseguir, devemos fazer uma retificação. Entre os supostos signatários do documento apócrifo que S. Excia. Revma. merecidamente qualificou de "infame panfleto" não figurava a revista "Tradición" de Buenos Aires. Parece-nos que S. Excia. quer referir-se a outro órgão portenho, este sim, unido a "Catolicismo" na defesa das mesmas posições doutrinárias, que é a prestigiosa revista "Cruzada" ( a qual, entretanto, também não figurava entre os supostos signatários do manifesto ).
Ademais, o panfleto não foi publicado por ocasião do debate sobre a liberdade religiosa, mas sim do esquema referente aos judeus.
Continua o Sr. D. José de Medeiros Delgado, depois de se referir à categórica publicação em que o Sr. D. Antonio de Castro Mayer desmentiu a participação de "Catolicismo" no torpe panfleto: "Nenhum dos bispos da Argentina e do Chile deu igual declaração. Ficou na mente de quantos acompanham de perto os fenômenos associativos apostólicos da América Latina a dolorosa idéia de que, pelo menos, os movimentos, quando não os jornais que lhes servem de órgãos, estavam solidários com o famigerado panfleto".
É lamentável que S. Excia. Revma. antes de investir por esta forma contra "Fiducia", não tivesse pedido explicações a esse brilhante periódico. Seus diretores teriam tranqüilizado inteiramente o Sr. Arcebispo dando-lhe cópia da seguinte nota que a revista enviou à Secretaria do Concílio e à Secretaria de Estado da Santa Sé, por meio de um distinto cearense que então se encontrava em Roma, o Sr. Henrique Barbosa Chaves:
"Eu vos envio o texto que recebi do Sr. Patrício Larrain, Diretor da revista "Fiducia", de Santiago do Chile: "Peço-vos desmentir junto às Autoridades da Santa Sé nossa adesão a um manifesto intitulado "Nenhum Concílio, nenhum Papa podem condenar Jesus Cristo nem a Igreja Católica nem seus Papas e Concílios mais ilustres", que segundo a imprensa, foi distribuído aos Padres Conciliares. Ao contrário, "Fiducia" aproveita a ocasião para afirmar sua indefectível, filial e amorosa obediência e acatamento ao Soberano Pontífice e à Hierarquia Católica reunida atualmente em Concílio. – Patrício Larrain, Diretor de "Fiducia". - a) Henrique Barbosa Chaves".
Os diretores de "Fiducia" teriam também mandado a S. Excia. Revma. cópia de análogo desmentido que publicaram em Santiago no diário "El Mercurio", a 19 de outubro de 1965, e no diário "La Nación", a 22 do mesmo mês.
No referido panfleto não figurava nem "Cruzada" de Buenos Aires, nem "Tradición". Nada de mais explicável, pois, que o silêncio do Episcopado Argentino. Se "Fiducia" protestou, nada de mais natural do que o silêncio do Episcopado Chileno. Pois seria de todo em todo supérfluo que este acrescentasse um protesto ao que já fizera em termos peremptórios e iniludíveis o próprio interessado.
É, assim, inexplicável como do silêncio de ambos os episcopados tenha ficado na mente do Sr. Arcebispo de Fortaleza a conclusão de que "os movimentos, quando não os jornais que lhes servem de órgãos, estavam solidários com o famigerado panfleto". Aliás, é difícil compreender a distinção que S. Excia. Revma. faz entre os jornais e os movimentos. O órgão de um movimento não pode ter outro pensamento que não o do próprio movimento. E não vemos como a revista "Fiducia" possa não ser solidária com o panfleto mas com ele possa ser solidário o movimento de "Fiducia".
Quanto a "Catolicismo", S. Excia. parece sentir as mais graves suspeitas, pelo fato de os leigos que atuam no corpo redatorial ou nos quadros de agentes e propagandistas desta folha não se haverem solidarizado de público com o desmentido oposto pelo Exmo. Revmo. Sr. D. Antonio de Castro Mayer ao documento apócrifo.
Não vemos de modo nenhum a necessidade de tal manifestação. Pois, tendo S. Excia. Revma. todos os poderes para falar em nome de "Catolicismo", seria supérfluo que outras vozes além da sua pretendessem exprimir por seu turno a justa indignação deste mensário.
De qualquer forma, estava o Exmo. Sr. D. Antonio de Castro Mayer na Europa, e foram, portanto, os leigos de "Catolicismo" que publicaram no Nº 178-179 desta folha, correspondente aos meses de outubro e novembro de 1965, a seguinte nota que bem diz de sua violenta repulsa ao infame manifesto apócrifo:
"TORPE FALSIFICAÇÃO – Na primeira quinzena de outubro foi enviado aos membros do Concílio Ecumênico um manifesto que, a propósito da Declaração conciliar sobre os judeus, continha expressões inadmissíveis e injuriosas com referência a Sua Santidade o Papa e aos Padres Conciliares. Figuravam como signatárias diversas entidades católicas, ente as quais aparecia o nome desta folha. Tão logo teve conhecimento do fato, o Exmo. Revmo. Sr. Bispo Diocesano, D. Antonio de Castro Mayer, fez publicar na imprensa romana um comunicado que desmentia energicamente tivesse "Catolicismo" subscrito tal documento, ao mesmo tempo que exprimia nossa amorosa e filial adesão ao Soberano Pontífice e ao Sagrado Sínodo.
A respeito da autoria dessa torpe falsificação estão sendo feitas em Roma as necessárias investigações.
Outro órgão sul-americano envolvido na ignóbil manobra foi a valorosa revista "Fiducia", de Santiago do Chile, a qual também publicou na imprensa de Roma um categórico protesto.
Estamos informados, aliás, de que já foram divulgados desmentidos de quase todas as entidades dadas como signatárias do manifesto".
Uma vez que o Exmo. Arcebispo tanto se interessa pelo que diz respeito a "Catolicismo", tudo leva a crer que tenha lido essa nota.
Se ela não foi suficiente para lhe aquietar a suspicácia, tinha o respeitável Prelado um outro caminho. Era só perguntar-nos, que lhe teríamos dado o necessário esclarecimento. Com efeito, uma primeira notícia que nos chegara de Roma sobre o manifesto apócrifo dera-nos a impressão de que os falsificadores haviam talvez aposto a ele a assinatura de algum de nós, leigos, como se fosse representante de "Catolicismo". Assim, comunicamos imediatamente ao Sr. Bispo de Campos, por telegrama da "Italcable", a seguinte mensagem: "Desmentimos categoricamente infamíssima falsificação dispostos processar responsáveis logo que identificados". O telegrama era por mim assinado. Tenho em mãos a 2ª via dele, fornecida pela "Italcable". O telegrama foi expedido às 22:50 horas de 16 de outubro, e tem o número 0874-PFX:CPRO-OPER 670.
É sempre melhor, quando se têm suspeitas, ir diretamente à fonte, antes de lhes dar publicidade pela imprensa. Nosso desmentido existiu, e categórico. Não o publicamos, porque nos pareceu e continua a parecer supérfluo.
d) "Grandes forças econômicas"
Segundo S. Excia., "pessoas entendidas" consideram que a onda de manifestações populares contra o ié-ié-ié "nasce de uma campanha comercial de autores de discos populares que, com o aparecimento dos discos do ié-ié-ié perderam mercado".
É curioso que, em face de um fenômeno psicológico e cultural tão complexo quanto o impacto de uma música toda feita de aberrações e extravagâncias, sobre um público afeito a uma tradição musical inteiramente oposta, o Exmo. Arcebispo pareça nada vislumbrar senão uma rivalidade comercial. Afigura-se-lhe inexplicável, ao que parece, que o ié-ié-ié descontente a sensibilidade artística de incontáveis pessoas. Para S. Excia. Revma. o fato chega mesmo a ser tão insólito, que deve ser tido como artificial. Assim, um fenômeno de rico conteúdo de alma como a reação contra o ié-ié-ié reduz-se inteiramente, para S. Excia., a uma causa econômica e material. É mera sabotagem de interesses industriais e comerciais contrariados. Tudo isto parece ao Sr. D. José de Medeiros Delgado tão plausível, que dá crédito – sem mais – ao que "pessoas entendidas" lhe disseram a respeito.
Os sabotadores do ié-ié-ié são, segundo os informantes de S. Excia., pessoas realmente mefistofélicas. Não recuam diante dos piores artifícios. Chegam "ao ponto de inventar missas cantadas em o tal ritmo, para engrossar o trabalho comercial da guerra entre autores de discos".
Desta vez, o alvo da insinuação confusa mas grave são os tais fabricantes de discos. O que lhes imputa precisamente S. Excia.? O que é "inventar missas cantadas em o tal ritmo"? As missas ié-ié-ié não existiram e não passam de mentira dos mefistofélicos adversários do ié-ié-ié? Ou estes inventaram a idéia de mandar cantar tais missas para suscitar reação? Neste caso, em que papel ficam os Sacerdotes que consentiram em celebrá-las? São uns tolos, que se vão prestando imbecilmente à ação dos mefistofélicos homens de negócios? Ou são pessoas que viram a malícia da coisa mas não resistiram aos encantos de uma gordíssima espórtula? Estas são perguntas que as asserções de S. Excia. Revma. suscitam forçosamente. Mas o Sr. Arcebispo de Fortaleza parece inteiramente insensível à postura em que ficam assim as pessoas alvejadas.
E prosseguem as "Conversas Avulsas" rumo a outro ataque, dentro do tema "grandes forças econômicas".
Se contra o ié-ié-ié se fazem tão feias tramas comerciais, S. Excia. vê nisto um motivo para suspeitar de que o mesmo aconteça com algo que ele também muito ama: "Seguindo a mesma linha de propaganda ( é opinião de outros críticos de imprensa) atribuem-se aos que se ocupam de divulgar tudo quanto se refere aos pronunciamentos dos Srs. bispos brasileiros contrários às reformas de base, principalmente a reforma agrária, puro interesse capitalista. Em favor do jornal "Catolicismo", como em favor de publicações maciças, saídas da corrente ideológica-religiosa da chamada "Igreja Velha", da querida "Igreja Tradicionalista" ( opinam os críticos de imprensa ) colocam-se grandes forças econômicas, máximo no Sul do Brasil".
Assim, simplesmente com base na opinião de "criticos de imprensa", o Exmo. Sr. D. José de Medeiros Delgado chega a esta acusação enorme. Uma corrente de intelectuais de renome em todo o Brasil publica e difunde largamente um livro como "Reforma Agrária — Questão de Consciência", um estudo como a "Declaração do Morro Alto", e uma série de artigos conexos. Trata-se de produções intelectuais acolhidas com respeito em todo o País, até mesmo pelos que delas dissentem. As teses enunciadas em tais trabalhos são da maior importância, os argumentos são expostos de forma precisa, com conteúdo doutrinário seguro e larga citação de autores. Os fatos alegados se baseiam em estatísticas que até hoje ninguém contestou. Tudo isto deveria servir normalmente de prova da seriedade e da elevação de propósitos dos autores dessas obras, bem como dos que as difundem. Pois, a quem escreve obras sérias e elevadas ou as propaga, se deve em toda justiça atribuir propósitos sérios e elevados.
S. Excia. salta sobre todas essas considerações de bom senso, para atribuir aos que difundem essas obras uma posição abominável. Eles são insinceros. São movidos por "puro interesse capitalista".
Falando dos difusores de tais obras, S. Excia. Revma. parece querer ressalvar os autores. Mas a pergunta se impõe: esses autores — dois dos quais membros insignes do Episcopado — são papalvos que não percebem a que interesses escusos servem de joguete? Ou são fariseus que a troco de suborno consentem em apoiar com argumentos insinceros certos interesses escusos?
É bem verdade que o Exmo. Sr. Arcebispo do Fortaleza se exime de endossar tais acusações: "Não irei me firmar nos Juízos em tela - ao ponto de os aceitar sem mais exame, cito-os apenas para dar maior atenção ao problema grave da segurança crítica necessária aos que desejam andar com os pés na terra diante do que afirma a imprensa mundial, a imprensa de cada dia em toda parte".
S. Excia. Revma. escapa desse modo à necessidade de apresentar argumentos em que funde seu juízo. Mas assume a responsabilidade de difundir suspeitas das quais reconhece que não tem certeza. E se coloca assim — seja-nos lícito dizer — em uma situação indefensável aos olhos de qualquer moralista.
Não seria possível completar o comentário deste tópico sem perguntar a S. Excia. quem constitui no Brasil o que ele chama de "Igreja Velha" ou "querida Igreja Tradicionalista".
Há hoje em dia na Igreja Católica duas Igrejas opostas, uma tradicionalista e outra progressista? Ou cindiu-se em duas a Igreja Católica? Neste caso qual é a continuadora legítima da única Igreja de Jesus Cristo?
S. Excia. Revma. manifestamente se situa fora da "Igreja Tradicionalista". Neste caso, a "Igreja Tradicionalista" está fora da Igreja Católica? É o que parece, pois que S. Excia. não pode situar-se a si próprio fora da Igreja...
Não, responderia talvez o Exmo. Prelado. Não quis dar às palavras "Igreja Tradicionalista" um alcance tão enérgico. Neste caso, qual o alcance preciso da expressão? Há conceitos que só se tem o direito de empregar com toda precisão, sob pena de fazer contra outrem as mais pesadas insinuações.
O modo por que S. Excia. emprega aqui a expressão "Igreja Tradicionalista" bem pode ser entendido por muitos como referente a uma seita que, ou se destacou da Igreja, ou nesta se encontra como um corpo estranho prestes a se separar. Para um católico digno desse nome, que preze acima de tudo sua ortodoxia, nenhuma acusação pode ser mais grave. E sobretudo ela o é para eclesiásticos. Ora, a pergunta que naturalmente vem ao espírito é se nesta "Igreja Tradicionalista" estão os Bispos, Sacerdotes e leigos contrários às reformas de base ( pois S. Excia. manifestamente identifica a chamada "Igreja Tradicionalista" com o antiagro-reformismo e o chamado integrismo, do qual em breve falaremos ).
e) Contra a opinião de alienígenas
S. Excia. satisfeito com sua argumentação, explica que a desenvolveu para "precaver os meus diocesanos contra atitudes contrárias ao que penso e ensino [...] em assuntos econômico-sociais". Mas visivelmente um fundo de inquietação lhe resta. Parece entrever que muitos leitores não se contentarão com os rumores e as hipóteses a que S. Excia. Revma. deu crédito, nem com as insinuações que propalou. Por isto, aduz logo a seguir uma outra ponderação, "mais concludente e em tudo mais digna de atenção". Em suma, os seus diocesanos devem ler com a maior desconfiança o documento do Exmo. Sr. D. Antonio do Castro Mayer, relativo ao manifesto dos Exmos. Srs. Bispos do Nordeste, porquanto o seu autor é do Sul e nada entende dos problemas do Nordeste brasileiro.
Tenho para mim que os cearenses que leram a carta-circular do Antístite campista não se sentirão muito impressionados pelo brado de alarme do Exmo. Sr. D. José de Medeiros Delgado. Pois em nenhum tópico o grande Bispo de Campos afirma coisa nenhuma sobre a região nordestina. Ele trata das repercussões de certas atitudes do Venerando Episcopado do Nordeste sobre a opinião pública de todo o Brasil, considerada como um todo único e orgânico. Quanto às condições existentes no Nordeste, limita-se a lamentar que os Srs. Bispos da região não hajam publicado os documentos em que se fundam para fazer as descrições trágicas das condições de vida que, segundo SS. Excias., aí imperam. Também neste ponto D. Antonio de Castro Mayer nada afirmou. Limitou-se a manifestar o desejo de provas.
Por isto, a alegação de que não conhece suficientemente o Nordeste não colhe contra ele.
f) Integrismo maniqueu
Passa o Exmo. Revmo. Arcebispo a outro tema, referindo-se a uma "corrente ideológico-religiosa, cujo berço é a França e que se denomina, universalmente, de ‘integrismo’". A essa corrente considera filiadas as pessoas que o têm na conta do homem de esquerda, ou — segundo disse S. Excia. — de comunista.
Dessa corrente assevera S. Excia. que "é, sob alguns aspectos, digna de exaltação. Conta em seu seio homens santos, pessoas sábias. Distingue-se por uma fé ardente. Inclina-se constantemente para um moralismo rigoroso. Chega algumas vezes a se assemelhar ao antigo maniqueísmo, que empolgou o próprio Santo Agostinho durante certo período de sua vida".
Surpreendentemente, o Sr. D. José de Medeiros Delgado a esta altura desvia seus olhos do cenário cearense, e passa a denunciar [os] assim chamados integristas no mais alto cenáculo da terra. Para S. Excia. Revma., havia toda uma corrente integrista no Concílio: "No Concílio Vaticano II [ essa corrente integrista ] teve uma atuação digna de melhores causas, mas contribuiu para se dar a alguns assuntos uma redação mais perfeita, evitando-se, portanto, interpretações futuras, contrárias à mente da maioria dos padres conciliares".
Em que o integrismo se diferencia da sã doutrina católica? Mais precisamente, que é o integrismo? A explicação de S. Excia. contém algumas expressões amáveis mas doutrinariamente vagas e inclui uma insinuação ultrajante. O maniqueísmo é uma heresia execrável tanto do ponto de vista doutrinário quanto moral. Ele jamais chegou a empolgar Santo Agostinho, mas apenas exerceu sobre este um atrativo passageiro. Tal se deu porém antes da sua conversão. Para um católico, é altamente desonroso ter qualquer coisa em comum com as doutrinas do torpe Manés. Seria preciso que S. Excia. explicasse em que o integrismo "chega algumas vezes a se assemelhar ao antigo maniqueísmo". Pois a acusação assim feita no ar carece totalmente de provas e pode ser entendida no pior sentido pelo leitor. O "moralismo rigoroso" que o Exmo. Arcebispo atribui ao integrismo parece ser, no entender do S. Excia., o ponto de contacto entre este e o maniqueísmo. O rigorismo maniqueu era hipócrita, e velava uma completa deterioração da vida espiritual. Em que o rigorismo atribuído por S. Excia. Revma. ao integrismo também é hipócrita e participa dessa abominável força de deterioração?
Em tudo isto, as "Conversas Avulsas" são omissas. Limitam-se a difundir insinuações.
Entretanto, o que é especialmente grave é que desta feita a pesada acusação atinge de cheio as fileiras do Episcopado. Como ninguém ignora constituiu-se durante o Concílio Vaticano II uma corrente que lutou com altanaria e eficácia contra certas inovações doutrinárias. À testa desta corrente figuravam Prelados de grande valor, entre os quais Mons. Luigi Carli, Bispo de Segni, o Arcebispo Mons. Marcel Lefebvre, Superior Geral dos RR. PP. do Espírito Santo, bem como — e com quanta projeção — D. Geraldo de Proença Sigaud e D. Antonio de Castro Mayer... Precisamente dois Bispos contrários às reformas de base.
Pois bem, para o Sr. Arcebispo de Fortaleza toda esta corrente de Bispos é integrista, e portanto maniqueizante.
Prossegue o Sr. D. Delgado: "O mal dos que seguem a referida corrente está na facilidade de condenar o próximo. Os mestres nem sempre são bem interpretados pelos discípulos".
A julgar pela citação acima, este mal não é só dos integristas maniqueus, mas também dos que tacham o próximo de integrista e maniqueu sem o menor fundamento.
Concluindo
Estes são os principais reparos que, na justa defesa de "Catolicismo", da TFP e, por conexão, das demais personalidades e movimentos alvejados pelas "Conversas Avulsas" do Venerando Arcebispo de Fortaleza, me cabe fazer.
Em resumo, depreende-se de quanto ficou dito que S. Excia. Revma., num gesto que só se pode explicar em momento de paixão, deu a público — contra as personalidades e entidades representativas do que considera a "massa damnata" dos integristas adversários das reformas de base — uma série de acusações sem prova, e de suspeitas nascidas dos diz-que-diz.
Uma acusação pode caber em meia dúzia de palavras. A defesa correspondente exige por vezes laudas inteiras. É o que explica que infelizmente tenhamos sido obrigados a dar à presente defesa tão grande extensão.
Pedimos a S. Excia. o Sr. D. José de Medeiros Delgado que veja em tal extensão, não o desejo de dar desnecessária amplitude ao assunto, mas apenas o resultado da contingência em que nos pôs, em vista do número e da gravidade das acusações e das suspeitas que inseriu em suas "Conversas Avulsas".
Amamos entranhadamente a concórdia dos espíritos, de modo particular quando se trata dos ambientes católicos. Entretanto, não somos dos que consideram as discussões doutrinárias entre irmãos na fé uma catástrofe ou uma vergonha. A Igreja militante vive num vale de lágrimas. E as vicissitudes desta vida já criaram no passado, como criam no presente, e criarão até o fim do mundo, situações em que a divergência das opiniões torna inevitável a discussão, mesmo entre os católicos. Em tais discussões se têm empenhado, em outras eras, personalidades da maior envergadura, Santos, Doutores, teólogos e filósofos. Não pensaram eles que se diminuíssem com isto. Ou que trouxessem para a Igreja qualquer desdouro. Nem julgaram que o modo de resolver os problemas consistisse em os abafar no silêncio para evitar a discussão. O que eles procuraram, isto sim, com o maior empenho, foi evitar quanto possível que ao nobre terçar dos argumentos doutrinários se juntasse o rumor turvo e confuso das retaliações pessoais o dos diz-que-diz.
Particularmente em nossa época, este empenho tem todo o seu valor. Abrindo o diálogo com os nossos irmãos separados, hereges, judeus, pagãos ou ateus, o Santo Padre Paulo VI e o Concílio Ecumênico Vaticano II nos convidam, mais do que nunca, ao debate das doutrinas, feito de modo sereno, amistoso e rigorosamente impessoal. Com maior razão este clima deve impregnar as controvérsias entre nós, católicos.
Nosso presente artigo não visa abrir uma discussão e menos ainda uma polêmica. Ele constitui, isto sim, uma defesa que abre caminho para o diálogo.
O diálogo, sim, o diálogo ao longo do qual nos seja dada alegria de poder exprimir continuamente ao Exmo. D. José de Medeiros Delgado todo o afeto e todo o respeito que "in Christo Jesu" tributamos a Sua pessoa sagrada. Se reciprocamente, como não duvidamos, formos objeto de um trato justo e caridoso da parte do ilustre Arcebispo, nosso coração se iluminará de alegria interior. E, ao longo do diálogo, ele cantará as palavras da Escritura: "Ecce quam bonum et quam Jucundum, habitare fratres in unum" ( Sl. 132, 1 ).Com efeito, quão decoroso, quão agradável, quão doce é para irmãos habitarem juntos a casa sagrada que é a Santa Igreja Católica Apostólica Romana.
"CONVERSAS AVULSAS"
É o seguinte o texto do artigo do Exmo. Revmo. Sr. D. José de Medeiros Delgado, Arcebispo Metropolitano de Fortaleza, publicado em "O Nordeste", edição de 26-27 de novembro do ano passado, sob o titulo acima:
O Concílio Vaticano II abriu novos horizontes ao apostolado dos leigos na Igreja de Deus. As conquistas dos últimos cinqüenta anos, devidas à Ação Católica, foram ampliadas de maneira admirável. Os teólogos com suas luminosas e, algumas vezes, árduas discussões, contribuíram muito para isto. Hoje ser apóstolo é de fato uma conseqüência da vida cristã, como, aliás, já ensinara o S. P. Pio XI. O apostolado continua a ser, em algumas de suas manifestações, resultado de um mandado particular, mas sempre e em toda parte, seja qual for a sua modalidade, é uma decorrência da realidade divina iniciada no batismo de cada um, é atividade assistida imediatamente pelo Espírito Santo que carismatiza o simples cristão a cada instante, independentemente do referido mandado.
Faz-se mister apenas recordar como se deve exercer o dom carismático. Agora, como sempre, é graça subordinada a leis especiais. Os dons carismáticos ficam sujeitos aos apóstolos, aos doutores, aos portadores de dons idênticos também, como os profetas aos profetas, a fim de evitar as anomalias a que os carismáticos andam expostos. Em tudo, o bem comum da Igreja deve ser visado tanto pelo portador do carisma, como pelos que o examinam, uma vez que quem o dá, Deus, assim exige. A graça carismática é sempre concedida não imediatamente em favor da que a recebe, mas em favor dos outros, da Igreja de Deus. Estes critérios são doutrina revelada e tradicionalmente sempre aplicada. A experiência a comprova que todo tempo é lugar.
II
Os Filhos de Deus, portanto, em matéria de apostolado são chamados a criar formas variadíssimas e autônomas de ação apostólica. Os novos tempos clamam pela iniciativa livre neste particular. Os movimentos apostólicos, de ontem e de hoje, com feição puramente leiga são oportuníssimos. Os seus membros, porém, na medida em que gozam de uma responsabilidade direta também se devem convencer que ficam obrigados a uma vigilância e delicadeza muito maiores no respeito devido não somente à hierarquia, mas também aos leigos de outros movimentos.
Não é isto o que sucede algumas vezes. Ainda agora um dos nossos bispos enviou um documento reservado aos seus irmãos no episcopado e alguém o trouxe à imprensa comum o que importa em triunfalismo em uma espécie de ostentação, no caso, em uma aparência de divisão da hierarquia da Igreja. Não há, no caso, divisão, mas liberdade de opção, desde que não se envaideça no campo da fé ou dos costumes.
III
A Propósito do desagradável abuso, no caso, aliás, não identificado como devido aos leigos que seguem e, algumas vezes, ultrapassam o guia a que se ligam, quero lembrar o que sucedeu em Roma com grande desonra para o Brasil católico.
Nas imediações da votação definitiva da Declaração sobre a Liberdade Religiosa, correu, na Cidade Eterna um infame panfleto em que se ameaçava a Papa e os Bispos do mundo inteiro, com o fim do obter efeito contra a aprovação do referido documento conciliar. Pois bem, entre os assinantes do panfleto constava "Catolicismo". Ora "Catolicismo" é um jornal feito no Brasil. Este órgão de imprensa da responsabilidade de um dos nossos bispos tem um similar em Buenos Aires, "Tradición", e outro em Santiago do Chile, "Fiducia". Aqueles dois, algumas vezes, aparecem com os mesmos textos de "Catolicismo". Constavam como "Catolicismo", na lista dos autores do panfleto. O Sr. bispo brasileiro apressou-se em declarar que o seu jornal não era responsável pelo panfleto. Nenhum dos bispos da Argentina e do Chile deu igual declaração. Ficou na mente de quantos acompanham de perto os fenômenos associativos apostólicos da América Latina a dolorosa idéia de que, pelo menos, os movimentos, quando não os jornais que lhe servem de órgãos, estavam solidários com o famigerado panfleto. Em relação ao Brasil a falta de qualquer outra manifestação de parte dos responsáveis leigos pelo movimento ligado à folha "Catolicismo", ainda hoje oferece motivos para que os julguemos com reserva no célebre caso.
IV
Muito fora de dúvida que naquele fato, como agora na publicação em tela não se pode saber com rigorosa segurança qual a parte de responsabilidade dos nossos leigos. Em outros casos, porém, a causa é diferente. Há mais de 10 anos, exemplo, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil ( CNBB ) pronunciou-se favoravelmente às reformas de base, à reforma agrária em particular. Pois bem, os leigos do movimento em exame tomaram a tal respeito atitude gritantemente oposta. Sentiram-no na carne os bispos do Nordeste... O pronunciamento reservado, há pouco divulgado na imprensa de Fortaleza, é um sinal de que entre nós continua a haver alguém empenhado em atirar Igreja contra Igreja, utilizando a hierarquia. Explica-se que os católicos em ação individual e, quando em ação coletiva, de maneira ainda mais delicada, discreta e respeitosa, sigam um bispo da Igreja em matéria livre, como esta em exame, mas não o devem fazer com ostensiva oposição ao bispo, de cada lugar, nem muito menos aos bispos de uma região.
É preciso bastante senso crítico para entender a imprensa diária aqui e em todo o mundo. A tempestade desencadeada, por exemplo, contra o ié-ié-ié, dizem pessoas entendidas, nasce de uma campanha comercial de autores de discos populares que, com o aparecimento dos discos do ié-ié-ié, perderam mercado.
A imprensa, ou melhor os repórteres da imprensa contratada pelos referidos autores, levaram sua fúria propagandista ao ponto de inventar missas cantadas em o tal ritmo, para engrossar o trabalho comercial de guerra entre autores de discos.
Seguindo a mesma linha de propaganda ( é opinião de outros críticos de imprensa ) atribuem-se aos que se ocupam de divulgar tudo quanto se refere aos pronunciamentos dos Srs. bispos brasileiros contrários às reformas de base, principalmente à reforma agrária, puro interesse capitalista. Em favor do jornal "Catolicismo", como em favor de publicações maciças, saídas da corrente ideológico-religiosa da chamada "Igreja Velha", da querida "Igreja Tradicionalista" ( opinam os críticos de imprensa ) colocam-se grandes forças econômicas, máximo no Sul do Brasil.
Não irei me firmar nos juízos em tela ao ponto de os aceitar sem mais exame, cito-os apenas para dar maior atenção ao problema grave da segurança crítica necessária aos que desejam andar com os pés na terra diante do que afirma a imprensa mundial, a imprensa de cada dia em toda parte.
VI
É explicável que em me colocando entre pessoas que utilizam a imprensa diária e a querem também a serviço das causas que abraço, antes que tudo no apostolado que exerço a título legitimo na Arquidiocese, informando aos que se acham entregues aos meus cuidados espirituais, utilize argumentos comuns, como este acima, referentes aos processos críticos de repórteres da imprensa, para precaver os meus diocesanos contra atitudes contrárias ao que penso e ensino, desde que pisei o solo cearense, em assuntos econômico-sociais.
Agora uma outra advertência, esta, ao meu ver, mais concludente e em tudo mais digna de atenção. Os bispos do Nordeste são homens nascidos e vividos no Nordeste. Possuem uma sensibilidade apurada para se pronunciarem acerca dos problemas nordestinos. Em se tratando de problemas do Centro e do Sul não terão jamais a capacidade de julgar de que os bispos daqueles pontos do País são possuidores.
Se de lá levanta-se uma voz, por mais autorizada que seja, contra o que ensinou os irmãos de cá, cumpre-nos examiná-la rigorosamente. Deixarmo-nos embalar na rede de jornais sulinos, talvez interessados materialmente em divulgar o que lhes sabe bem ao paladar de homens que vivem outras realidades econômico-sociais, é expor-se a erros de respectiva, inclusive a injustos julgamentos.
VII
Mal chegava a esta amada terra cearense fui provocado a pronunciar-me em matéria econômico-social, tendo recebido a alcunha de homem de esquerda e até de comunista por parte de adeptos de certa corrente ideológico-religiosa, cujo berço é a França e que se denomina, universalmente, do "integrismo".
A dita corrente é, sob alguns aspectos, digna de exaltação. Conta em seu seio homens santos, pessoas sábias. Distingue-se por uma fé ardente. Inclina-se constantemente para um moralismo rigoroso. Chega algumas vezes a se assemelhar ao antigo maniqueísmo, que empolgou o próprio santo Agostinho durante certo período de sua vida. No Concílio Vaticano II teve uma atuação digna de melhores causas, mas contribuiu para se dar a alguns assuntos uma redação mais perfeita, evitando-se portanto, interpretações futuras, contrárias à mente da maioria dos padres conciliares.
O mal dos que seguem a referida corrente está na facilidade de condenar o próximo. Os mestres nem sempre são bem interpretados pelos discípulos. Há jovens também entro os adeptos de tais idéias. Vemo-los em nome de Deus pensando prestar serviços à Igreja, espalhar notícias contrárias aos seus imediatos superiores hierárquicos. Por ocasião da revolução de março do 1964 chegaram ao cúmulo de denunciar irmãos como comunistas. Apesar de o fato ter sido anunciado já no Evangelho, onde Cristo ensina que pais se levantarão contra filhos e filhos denunciarão pais, o que nos deve impedir de os condenar, como eles nos condenam, vale a pena esclarecer bem as consciências dos que se poderiam deixar conduzir pelas críticas que fazem aos seus pastores.
No caso da divulgação de um documento particular de um Sr. Bispo do Sul contrário ao modo de julgar de irmãos do Nordeste, é meu dever instruir os meus jurisdicionados espirituais a se precaverem contra a corrente integrista brasileira que se infiltrou também entre nós.
VIII
Não lhes reconheço a mínima autoridade de orientadores de consciências, considero-os na ordem jurídico-moral-religiosa suspeitos de apaixonamento ideológico, irrefletidos e ousados, dignos de toda compaixão, mas desaprovados para a ação pastoral na arquidiocese. Não os abençôo como apóstolos. Vejam-nos como simples cidadãos invasores da seara cada vez que se apresentem como evangelizadores.
Estarão bem quando ensinam economia, quando se batem por tradições tais ou quais, falando em nome pessoal, nunca em nome da Igreja, uma vez que se colocam frontalmente em contradição com a hierarquia local.