Catolicismo Nº 173 -

Maio de 1965

 

A GRANDE EXPERIÊNCIA DE DEZ ANOS DE LUTA

Há vinte anos, no dia 8 de maio de 1945, terminava a segunda guerra mundial. Nessa ocasião, as gloriosas páginas do “Legionário”, o jornal católico que em sua segunda fase – entendam bem a meia palavra os bons entendedores – foi o verdadeiro precursor de “Catolicismo”, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira publicou um artigo em que com lucidez e brilho, sintetizava a posição a um tempo antifascista e anticomunista assumida por aquela folha  durante o conflito, e deixava prever todos os frutos que o comunismo haveria de tirar da luta.

A atitude ortodoxa, firme e clarividente do “Legionário”, que esta folha procura continuar atualmente, aí se retrata com toda a precisão.

Reproduzimos hoje esse trabalho, como um valioso contributo para nossos leitores situarem em um vasto panorama histórico os princípios basilares de “Catolicismo” nesta matéria.

Secundariamente, a presente transcrição tem outro proveito. Por todo o País se faz, com os mesmos slogans, o mesmo anonimato, o mesmo sistema de zunzum, uma campanha contra “Catolicismo”.

É explicável que os filhos das trevas, não ousando enfrentar a luz de uma discussão doutrinária, elevada e leal, de um diálogo enfim, no melhor sentido da palavra, recorram a esse meio de luta.

Não sabemos quem move essa campanha. Só sabemos que por seu conteúdo ela denota uma mentalidade comuno-progressista, e que é ao progressismo de extrema esquerda que ela mais aproveita. Infelizmente, consegue ela iludir a candura de pessoas que não são nem comunistas, nem progressistas.

Um dos elementos dessa campanha é dizer que simpatizamos com o nazi-fascismo. A máfia, presumivelmente comuno-progressista, depois desta publicação, terá que inventar outra balela. O que aliás por certo fará. Pois nada é mais cômodo que caluniar na sombra...

O  término da conflagração mundial, e o esmagamento das potências totalitárias, não poderia deixar de ser assinalado pelo “Legionário” com uma edição consagrada, quase toda ela, ao grande acontecimento.

Com efeito, a derrocada final do totalitarismo marca, para nós, o termo de uma longa e dolorosa campanha, na qual fomos obrigados aos mais duros sacrifícios, para esclarecer a opinião católica sobre o tremendo perigo que ameaçava a Igreja. De 1933 a 1942, a vida do “Legionário” foi, a este respeito, uma verdadeira via crucis, ao longo da qual não houve provação que nos fosse poupada. De 1942 a 1945, a luta, menos ostensiva e menos direta, não deixou entretanto de se fazer veladamente. O fim da guerra vem encerrar todo este passado, e abrir um futuro em que os problemas se apresentam radicalmente diversos. Aproveitemos estes instantes fugazes, em que os cadáveres ainda estão quentes, em que as lágrimas ainda não secaram, em que a terra ainda não sorveu o sangue dos combatentes, em que os incêndios ainda fumegam, e os canos das metralhadoras ainda não esfriaram, para fixar em um quadro geral ainda bem vivo, a recordação destes anos de confusão e de tormenta. É este o instante propício para tal tarefa. A experiência histórica é muito mais substanciosa quando colhida em um passado recente e palpitante, do que nos herbários secos e fanados dos compêndios e dos arquivos.

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Será, por exemplo, muito difícil que a História venha a compreender tão bem quanto nós a época agitada, crepuscular, indecisa, em que irromperam no mundo os partidos totalitários. É preciso ter vivido em 1920, ou em 1925, para compreender o tremendo caos ideológico em que se debatia a humanidade. A Cristandade parecia um imenso prédio em trabalhos finais de demolição. Não havia o que não se fizesse para o destruir. Aqui, especialistas silenciosos e metódicos arrancavam uma a uma as pedras, desconjuntavam as traves, tiravam as portas a seus batentes, e as janelas a suas charneiras. Essa faina, que faziam com o mutismo, a solércia e a agilidade de conspiradores, progredia com frieza inexorável, sem perda de um instante, sem desperdício de um segundo Revezavam-se os operários, mas de dia e de noite, enquanto os homens se divertiam, dormiam, trabalhavam ou passeavam, a tarefa não se interrompia. Mais além, monstros de figura humana assaltavam os muros vetustos da Cristandade com o furor delirante e impetuoso com que se atacaria, não um edifício de pedra, mas um edifício de carne viva, um grande corpo. Era a escalada de multidões raivosas, que entravam pelas portas e pelas janelas, saqueavam relíquias indefesas e tesouros abandonados, arrebentavam vitrais, profanavam altares, destruíam imagens, ou abatiam com um só estampido de dinamite torres centenárias, muralhas imensas, contrafortes até há pouco inexpugnáveis. E a alguma distância, aos aplausos dos “gravoches”, dos vadios, dos petroleiros, outros operários procuravam, com o material roubado à Casa de Deus, construir em suas linhas extravagantes e sensuais, a orgulhosa Cidade do Demônio.

Tudo isto não é senão alegoria. E não há alegoria, nem imagem, nem descrição que possa retratar a confusão daqueles dias de “pós-guerra”.

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A conversão dos povos ocidentais não foi um fenômeno de superfície. O germe da vida sobrenatural penetrou no próprio âmago de sua alma, e foi paulatinamente configurando à semelhança de Nosso Senhor Jesus Cristo o espírito outrora rude, lascivo e supersticioso das tribos bárbaras. A sociedade sobrenatural — a Igreja — estendeu assim sobre toda a Europa sua contextura hierárquica, e desde as brumas da Escócia até as encostas do Vesúvio foram florindo as Dioceses, os mosteiros, as igrejas catedrais, conventuais ou paroquiais, e, em torno delas, os rebanhos de Cristo.

Esta florescência religiosa projetou-se sobre a sociedade civil. O Príncipe, o artesão, o filósofo, o guerreiro, o menestrel não era cristão apenas dentro do templo, no momento da oração. Ele reinava, produzia, pensava, guerreava e cantava como cristão. Seu reino era um reino cristão, seu trabalho era um trabalho cristão, seu pensamento era um pensamento cristão, sua guerra era uma guerra cristã, e seu canto era um canto cristão. Toda a vida civil, organizada com fundamento na lei de Deus, ordenou-se segundo a vontade de Deus, e segundo a ordem natural por Deus estabelecida quando criou o universo, o mundo e o homem. Formou-se assim uma sociedade temporal estabelecida sob o signo de Cristo, segundo a lei de Cristo, e conforme a ordem e a natureza própria de cada coisa criada por Deus.

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Tudo isto está longe de ser uma vã fraseologia. Exemplifiquemos com um relógio. O relojoeiro tem em vista fazer um instrumento para a marcação do tempo. Para isto, estabelece um plano em que se conjugam várias peças, trabalhando cada qual segundo seu feitio e natureza própria, para o fim visado pelo relojoeiro. Ora, a família é o instrumento humano de que Deus deseja a perpetuação da espécie. No caso do relógio, cada peça realiza o seu trabalho, atuando segundo a natureza e feitio com que a quis o relojoeiro. Se ela trabalhar segundo essa natureza e feitio terá feito tudo quanto dela desejava seu autor, e tudo quanto era necessário de sua parte para o bom funcionamento do relógio. Assim também na sociedade doméstica: se cada membro agir retamente segundo sua situação e seu papel, terá feito tudo quanto é necessário para que a família funcione bem. E se todos os membros agirem com igual retidão, a vida doméstica terá chegado à sua perfeição própria: precisamente como o relógio atinge sua própria perfeição pelo perfeito funcionamento de cada uma de suas peças.

Pois bem, o mesmo que se diz do relógio ou da família pode dizer-se da sociedade civil. A sua grandeza própria, enquanto sociedade civil, resultará de que cada um dos elementos que a compõem, isto é, família, classe, associação, pessoa, atue retamente segundo seu feitio e natureza própria. E é este, e só este, o modo por que a sociedade civil chegará à sua grandeza.

Ora, os Mandamentos são a expressão da vontade de Deus para os homens. Eles ensinam o homem a agir como Deus quer. Infinitamente sábio e bom, Deus não poderia querer que agíssemos em sentido diverso ou contrário da natureza que Ele nos deu. Assim portanto, os Mandamentos nos ensinam a proceder segundo nossa própria natureza. E eles contêm, pois, as regras fundamentais que se hão de observar para conseguir a grandeza da sociedade civil, enquanto sociedade civil.

A glória e bem-estar temporal é o prêmio natural da sociedade civil. Mas ela tem, neste mundo mesmo, um prêmio mais alto. Explica Santo Agostinho que os homens podem ser premiados ou punidos em outra vida, por suas ações boas ou más, mas que as nações recebem seus castigos ou prêmios nesta vida, porque a nação, como tal, não transpõe os umbrais da eternidade. No Céu, haverá gregos, troianos, romanos ou egípcios. Não haverá nem Grécia, nem Tróia, nem Roma, nem Egito. Assim pois, é preciso que Tróia, ou a Grécia, ou qualquer outra nação, receba seu prêmio neste mundo. Deus auxilia a grandeza dos povos fiéis, não só pelo jogo natural das causas segundas, mas por uma multidão de graças especiais e por vezes miraculosas, de que está cheia a história de tais povos.

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Isto explica porque, sob o influxo de todas as energias naturais e sobrenaturais entesouradas nas nações cristãs, foi emergindo lentamente do caos da barbárie, na alta Idade Média, a sociedade civil cristã, a Cristandade. Sua beleza, de início indecisa e subtil, mais promessa e esperança que realidade, foi se afirmando à medida que, com o escoar dos séculos de vida cristã, a Europa batizada “crescia em graça e santidade”. Nasceram por essas energias humanas vitalizadas pela graça, os reinos e as estirpes fidalgas, os costumes corteses e as leis justas, as corporações e a cavalaria, a escolástica e as universidades, o estilo gótico e o canto dos menestréis. Os admiradores da Idade Média se exprimem mal quando sustentam que o mundo atingiu nessa época o máximo de seu desenvolvimento. Na linha em que caminhava a própria civilização medieval, muito ainda haveria que progredir. O encanto grandioso e delicado da Idade Média não provém tanto do que ela realizou, como da veracidade cintilante e da harmonia profunda dos princípios sobre os quais ela construiu. Ninguém possuiu como ela o conhecimento profundo da ordem natural das coisas; ninguém teve como ela o senso vivo da insuficiência do natural — mesmo quando desenvolvido na plenitude de sua ordem própria — e da necessidade do sobrenatural; ninguém como ela brilhou ao sol da influência sobrenatural com mais limpidez e na candura de uma maior sinceridade. Ela foi feita de homens que lutaram e sofreram na realização desse ideal, e que na sua caminhada muitas vezes recuaram ou desfaleceram ao longo do caminho; mas de homens que sempre continuaram fiéis ao seu ideal, ainda mesmo quando dele se afastavam por seus atos. E daí uma consonância profunda de todas as instituições, de todos os costumes, de todas as tradições nascidas nessa época, não só com as circunstancias contingentes e transitórias do tempo em que surgiram, mas com as exigências genéricas da alma humana “naturaliter christiana” e as tendências espirituais peculiares aos povos do Ocidente.

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Tocamos aí em um ponto de importância fundamental. Todos os povos têm sua mentalidade coletiva e seus problemas regionais. Entre um hindu e um sueco, um espanhol e um chinês, a diferença é enorme. Há um espírito nacional hindu, sueco, chinês ou espanhol, que permanece íntegro durante os séculos, enquanto a nação existir. Os homens, como os cursos de água, poderão ir correndo para a eternidade. Mas as nações, como os rios, continuam sempre os mesmos nos dados essenciais de seu temperamento. Além destas circunstâncias psicológicas, há problemas peculiares à situação geográfica de cada região: da Índia, da Suécia, da China ou da Espanha. Também estes problemas - ao menos os mais profundos e dignos de nota - são invariáveis.

Toda civilização cristã há de ser inteiramente cristã, católica, universal, mas há de acatar, há de respeitar, há de desenvolver e estimular as características de cada região e de cada povo.

A sociedade cristã, dissemos, é a que vive de acordo com sua própria ordem natural. E, por isto, ela há de respeitar integralmente as características peculiares que pertencem à natureza de cada povo ou região. Respeitar e desenvolver, porque essas características são dons de Deus, e todos os dons de Deus merecem desenvolvimento.

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Nos séculos de civilização cristã, cada povo teve, pois, suas características próprias, bem definidas. A alma nacional, em todas as suas aspirações universais e humanas, em todas as suas aspirações nacionais e locais, encontrou plena e ordenada expansão dentro da civilização cristã. Daí a enorme variedade de formas de governo e de organização social ou econômica, de expressões artísticas e de produções intelectuais nas várias nações da Europa medieval.

A expansão das tendências nacionais causa ao povo um grande bem-estar físico. A mentalidade nacional inspira a formação de símbolos, costumes, artes, nos quais ela se exprime, se define e se afirma, se contempla a si mesma e se solidifica. Esses símbolos são um patrimônio da nação, uma condição essencial para a sua sobrevivência e progresso espiritual. Eles têm uma consonância indefinível e profunda com a mentalidade nacional, uma consonância que é natural e verídica, e não puramente fictícia e convencional. Por isto, em via de regra, cada povo elabora uma só arte, uma só cultura, e nela caminha enquanto existe. O maior tesouro natural de um povo é a posse de sua própria cultura, isto é, quase a posse de sua própria mentalidade.

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Uma civilização cristã só pode ser admirada pelas almas que, fora da Igreja, tendem para o Catolicismo; só pode ser admirada e vivida pelas almas que, dentro da Igreja, vivem do Catolicismo. Ela é incompreensível, é cheia de tédio, é odiosa até em sua superioridade solar, para as almas que começam a abandonar a Igreja, ou que, do lado de fora, blasfemam contra ela. A civilização cristã só viveu plenamente enquanto foi sincera e profundamente católica a Europa.

E a grande tragédia do mundo ocidental foi precisamente a ruptura com o Catolicismo que, no século XVI, arrebatou ao grêmio da Igreja as nações protestantes.

Não é aqui o momento de fazer a análise do protestantismo. Ele representou, ao pé da letra, a realização da Revolução Francesa no terreno religioso, como a Revolução de 1789 foi o protestantismo aplicado ao âmbito civil. Nascido do orgulho e da lascívia, o protestantismo negou ora implícita, ora explicitamente, in radice, tudo quanto significasse autoridade, ordem, ascese. Onde pôde, proclamou a abolição de toda hierarquia eclesiástica, nivelando inteiramente os leigos aos clérigos, e abolindo a própria clericatura. Onde não lhe foi possível ir tão longe porque os espíritos ainda tinham alguns fragmentos de senso cristão, conservou o presbiterato, rejeitando entretanto o episcopado e a supremacia pontifícia, ou admitindo mesmo o episcopado mas negando o Papa. Todavia, analisada a fundo a situação de qualquer bispo ou ministro protestante perante seus fiéis, vê-se que seu cargo é mais aparência vã que realidade, e que mesmo entre os episcopais o bispo pouco ou nada se diferencia, em essência, de qualquer fiel. Isto, na ordem do governo e dos sacramentos. Em matéria de doutrina, o livre-exame protestante é a afirmação do anarquismo na vida da inteligência. O dístico de 1789, “liberté, égalité, fraternité”, entendido segundo a exegese do “Comité de Salut Public”, poderia ser perfeitamente o lema da grande revolução religiosa do século XVI.

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Em sua magistral Encíclica “Parvenu à la Vingt-Cinquième Année”, mostra Leão XIII que o protestantismo não foi senão uma etapa. De seus princípios se desdobraram convulsões muito mais profundas do que as que se operaram sob o bafejo pessoal e direto de sus autores. A história do mundo, do século XVI para cá, não é senão, em forma ora explícita, ora larvar, a história do desdobramento dos princípios que constituem o substrato mais profundo do protestantismo. A Contra-Reforma conseguiu conservar os povos católicos indenes da heresia protestante. Impedida de irromper abertamente no terreno do dogma, a mentalidade protestante se manifestou entretanto através de mil tendências filosóficas, científicas, literárias, artísticas, pelas quais se infiltravam na sociedade católica os erros básicos de que se originara o próprio protestantismo.

Nos chamados Tempos Modernos, muita coisa continuou a ser feita pelos povos católicos dentro da linha da civilização cristã. Mas muita coisa começou a fazer-se sob o signo da Desordem.O relaxamento geral dos costumes indicava bem um borbulhamento interior de sensualidade nos povos ocidentais, que se exprimiu a princípio de modo sentimental e figurativo, mas que foi aos poucos rompendo todas as barreiras, até chegar à grande explosão de concupiscência de 1789, às “orgias cívicas” de 1792, e à completa paganização dos costumes modernos. O contínuo deperecimento da família ia aos poucos aniquilando as classes sociais. Aristocracia, burguesia, plebe, eram, na Idade Média, corpos sociais vigorosos, coesos, perfeitamente definidos e cônscios cada qual de sua dignidade ( cada qual, inclusive, note-se bem, a plebe, que se gabava de suas linhagens multisseculares de carvoeiros ou de artesãos com a ufania com que um aristocrata lembrava os príncipes visigodos de que descendia ). Nos Tempos Modernos, as classes perderam a noção de seu papel. A nobreza tendeu a emburguesar-se. A burguesia a “singer” a nobreza, a plebe a derrubar a nobreza e a burguesia, e assim por diante. O próprio absolutismo real, que parecia a consolidação do princípio de autoridade, não era senão um princípio revolucionário: a onipotência do Estado perante as leis de Deus e da Igreja.

 

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Atuando na filosofia, nas artes, na cultura, na política, na vida social, os móveis psicológicos que haviam determinado em outros países a explosão protestante e concomitantemente a completa transformação destes, provocaram pari passu nos países católicos uma mutação profunda da vida civil, e geraram um estado de contradição que se tornou crônico e habitual. Tudo se modificou nesses países sob o sopro do orgulho e do sensualismo moderno, com exceção apenas das crenças religiosas. O desajuste entre as crenças e a vida se tornou cada vez mais profundo. Tudo se foi paganizando por obra dessas massas e dessas elites que, entretanto, continuavam a não ser pagãs, e que professavam em matéria religiosa convicções cada vez mais dissonantes de tudo quanto pensavam, sentiam ou faziam em outros terrenos. As instituições cristãs, os costumes cristãos, as tradições cristãs foram perdendo sua vitalidade durante os Tempos Modernos, foram tendendo a se transformar gradualmente em relíquias sem vida, em hábitos meramente protocolares, em vestígios de um passado mumificado. Em fins do século XVIII havia, sob a aparência de uma sociedade cristã, uma realidade social que já tendia para o paganismo com toda a força de seu dinamismo. A Revolução Francesa, que se propagou por todo o orbe católico, foi a explosão insofrida dessa realidade nova, que atirava para os ares todos os destroços do passado.

Nunca se compreenderá inteiramente a Revolução de 1789 enquanto não se reconhecer que ela foi ainda muito mais profunda e importante no terreno ideológico que no terreno político. Na França, na Itália, na Espanha, em Portugal, a transferência do poder para os liberais, o advento de formas novas de organização estatal, simbolizou e a um tempo realizou o triunfo de novas formas de viver, de pensar, de sentir, de trajar, novos padrões de vida social, o aparecimento de um novo ideal de perfeição humana. Tudo mudou de face e de substância, e todas as transformações se fizeram no sentido de satisfazer melhor o orgulho e a sensualidade. O orgulho, pelo direito conferido a cada qual, de elaborar seu próprio pensamento sem nenhum respeito às leis da lógica e do bom senso; pela supressão ou minimalização de todos os cargos, graus, fórmulas, categorias e distinções que pudessem conter ou exprimir a autoridade; a sensualidade, pela transgressão cada vez mais ousada dos princípios de moral, pela abolição das tradições e costumes que salvaguardavam o pudor e evitavam as familiaridades demasiadas, e por mil reformas que davam na vida social a preeminência ao corpo sobre o espírito, à imaginação e ao sentimento sobre a razão, a instauração de mil meios destinados a debilitar a vontade e diminuir o esforço da razão para estudar.

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É um erro supor que a Revolução Francesa se encerrou com Napoleão ou com Luís XVIII. De fato, ela se espraiou ao longo dos anos, e seus frutos mais imediatos não cessaram de se produzir até 1925 ou 1926, na Europa, até 1935 ou 1936 no Brasil. Façamos, pois, um confronto entre a Europa de 1789 e a de 1925. Ao longo desses 140 anos, que transformações assistiu ela na ordem de coisas que nos ocupa? Puramente negativas.

Em matéria de Religião, as massas, de cristãs passaram a revolucionárias, as elites, de deístas a indiferentes ou atéias. Em matéria de filosofia, do cartesianismo passou-se para o materialismo evolucionista. Em matéria política, do Estado organizado à Rousseau, para a negação niilista de todo e qualquer Estado. Em matéria social a burguesia destruiu a aristocracia em nome da igualdade; e armada do mesmo princípio a plebe se aprestou a estrangular por sua vez a burguesia. Em matéria educacional passou—se do autoritarismo pedagógico da velha escola, para o igualitarismo socialista e para o comodismo didático da escola-nova. Em matéria artística e literária, do classicismo rígido e formalista, para as convulsões do romantismo, e daí para as extravagâncias dos modernos sistemas artísticos. Em matéria humana, do tipo semitísico, sentimental e “débraillé” dos heróis e heroínas do romantismo, para o esportivismo, o espírito utilitário e a ultra vitaminose dos elegantes à maneira “yankee”. Tudo se tornou mais cômodo, mais acessível, e o prazer que se procura nas coisas passou a ser muito menos do belo que do “gostoso”. O belo encanta o espírito, Mas o “gostoso” delicia o corpo. Das cadeiras elegantes do estilo Luís XVI para as pesadas poltronas de couro modernas, que diferença de beleza! Mas, em compensação, como se sente melhor o corpo estirado sobre a lisura desses couros, afagado pela flexibilidade dessas molas! Evoluções todas bem dignas do tipo moderno de habitação, em que por economia se deixa de fazer sala de visitas, mas o luxo não conhece limites para a comodidade das cozinhas, das copas e dos banheiros. Economizar no salão de honra o que se vai gastar no banheiro! A decrepitude dos salões dourados e o apogeu da sala de banho! Que tema para uma meditação!

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Em 1918 o sopro de espírito revolucionário varreu a Europa com singular violência. Deu-se o imenso estrondo do desabamento do czarismo, e se implantou o comunismo na Rússia. Toda a vida intelectual e social se secionou ainda mais do passado. No ocidente, a hegemonia começou a se deslocar cada vez mais, da Europa tradicional para os Estados Unidos niveladores.

Em meio de todo esse desabamento, que evidenciava cada vez mais o próximo término da civilização cristã como tal, uma salutar reação se produziu. Muitos espíritos percebiam por fim para que abismos caminhava o mundo, e quais os guias que o levavam para o abismo. Como escreveu Pio XI, um sopro universal do Espírito Santo orientava para a igreja os espíritos transviados. Em plena hecatombe da civilização cristã, a Igreja de Deus começava a florir novamente, produzindo rebentos que atestavam iniludivelmente sua eterna pujança. O movimento católico se organizava por toda a Europa. Eram legiões os moços que, desgostosos do curso das coisas, abriam os olhos para a Verdade Revelada, e almejavam de todo coração o triunfo da civilização cristã. As obras sociais católicas, a imprensa católica, o rádio católico, a ação política dos católicos triunfavam por toda parte. Assim, na Alemanha, na Áustria, na Espanha, na Itália, na França, no Brasil, na Holanda, na Bélgica, os êxitos eleitorais dos católicos eram cada vez mais estrondosos. E quanto mais crescia o perigo comunista, tanto mais se acendia o ardor da reação católica. A certas almas, Deus atrai ao Céu fazendo—lhes ver o inferno. Foi desta terapêutica que Ele se serviu com o mundo ocidental, permitindo que se lhe patenteasse em toda a hediondez a figura dos tormentos em que o comunismo mantinha a Rússia, o México e mais tarde a Espanha. Não há tormento maior do que esse de um povo a que se arranco dia a dia uma tradição, um hábito, um símbolo. É um esquartejamento terrível da alma, a que estavam expostos a pouco e pouco todos os povos cristãos.

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Sempre que o demônio está na iminência de perder uma partida, sua grande arma é a confusão. Utilizou-a ainda desta vez. A História talvez diga, algum dia, em que antros o plano tenebroso se forjou. Mas o fato é que para atender aos anseios das massas sedentas de civilização cristã, apareceu na Alemanha um partido, logo copiado em outros lugares, que se propunha a implantar um novo mundo cristão. À primeira vista, nada mais simpático do que o nazismo, movimento místico-heróico, propugnador das tradições da Alemanha cristã e medieval, contra a dissolução demagógica e corruptora da propaganda bolchevista.

Os termos meramente negativos da doutrina nacional-socialista correspondiam em vários pontos ao que sentia de mais vivo a consciência cristã, indignada com o enfraquecimento do princípio de autoridade, da ordem, da moral e do direito.

Mas se se atentasse para o lado positivo dessa ideologia, lado que só aos poucos a maquiavélica propaganda parda revelava aos “iniciados”, que terrível decepção! Ideologia confusa, impregnada de evolucionismo e materialismo histórico, saturada de influências filosóficas e teológicas pagãs, programa político e econômico radical e caracteristicamente socialista, intoleráveis preconceitos racistas. Em uma palavra, por detrás dos bramidos anticomunistas do nazismo, era o próprio comunismo que se pretendia instaurar. Um comunismo ardiloso, de máscara cristã. Um comunismo mil vezes pior, porque mobilizava contra a Igreja as armas satânicas da astúcia, em lugar das armas impotentes da força bruta. Um comunismo que começava por empolgar os espíritos por algumas verdades, punha-os em delírio sob pretexto de entusiasmo por essas verdades, e os atirava em seguida aos erros mais terríveis. Um comunismo, portanto, que significava, não a obliteração dos maus, mas dos bons, a mais terrível máquina de perdição e de mistificação que o demônio tenha engendrado ao longo da História.

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Tal é o peso da verdade, tão duro é o fardo do bem, que infelizmente muitos espíritos, embora sinceramente católicos, se deixaram transviar pela manobra. Não tinham aquela fome e sede de justiça, que é a raiz da santa intransigência. Não tinham aquele apetite de Catolicismo pleno, que os faria rejeitar como elemento impuro qualquer liga com os fermentos do século. As coisas muito acentuadamente católicas, declaradamente católicas, exclusivamente católicas, lhes pesavam como o sol fere a vista das aves noturnas. Preferiam as formas pálidas, diluídas, indiretas, de irradiação católica, como os mochos preferem a luz da lua. E se entregaram de corpo e alma a essas tendências de caráter nitidamente anticatólico. Na Itália, como na Alemanha, como em outros lugares, uma coorte de ingênuos, de desavisados, de pessoas entretanto bem intencionadas, se deixou embair e arrastar de roldão com facínoras e aventureiros de toda sorte. E só Deus sabe com que furor, com que iracúndia, com que abundância de ameaças se atiravam contra os irmãos de crença que se permitiam o luxo de ser mais penetrantes, mais perspicazes, mais enérgicos na defesa da Fé.

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Ruiu o grande sonho, está em pedaços a terrível construção elevada pelos arquitetos dos sistemas totalitários pseudo-cristãos. Hoje em dia, ninguém ousaria sustentar a legitimidade dessa posição contra a qual clama todo o sangue que se derramou, todas as lágrimas que se choraram, todo o suor que se verteu nestes anos de guerra. Quando os campos de concentração forem expostos à visitação pública, e se perceber que terrível oficina de ódio era o totalitarismo, é de se esperar que as últimas vendas caiam dos últimos olhos voluntariamente cegos, e que por fim os escombros e os restos de todo esse passado sejam removidos dos últimos espíritos que o fanatismo ainda mantém em uma atitude de obstinação desvairada.

Mas, como dissemos, desse passado ainda quente, se desprende uma grande lição. É inútil querer fazer sem a Igreja ou contra a Igreja, sem a Hierarquia ou contra ela, a obra de Deus. “Enquanto o Senhor não edificar a casa, trabalharão em vão os que a constroem. Enquanto Ele não proteger a cidade, velarão inutilmente os que a guardam ( Sl. 126, 1 ). O mundo não pode ser salvo por formas diluídas de Cristianismo, ou por sistemas que representem uma etapa comodista ou preguiçosa nas sendas da restauração da Cristandade. Nosso “leitmotiv” deve ser o de que para a ordem temporal do Ocidente, fora da Igreja não há salvação. Civilização católica, apostólica, romana, totalmente tal, absolutamente tal, minuciosamente tal, é o que devemos desejar. A falência dos ideais políticos, sociais ou culturais intermediários está patente. Não se pára no caminho de volta para Deus: parar é retrogradar, parar é fazer o jogo da confusão. Nós só queremos uma coisa: o Catolicismo completo.

Esta a grande verdade que o fracasso do totalitarismo revela. Relembramo-la nesta ocasião memorável, não para reavivar dissídios com irmãos de crenças, mas para declarar que, excetuada esta grave lição que contém o suco de toda a trágica experiência destes últimos anos tão ricos em ensinamentos, tudo esquecemos, e que só queremos olhar para o futuro. Do passado, não trazemos nem queixas nem ressentimentos, mas apenas a convicção da vitória desta tese, que deve ficar: os católicos vencerão desfraldando inteiro o estandarte católico, e não ocultando-o sob as dobras de doutrinas políticas equívocas.

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Aí está diante de nós, hiante, o grande problema do comunismo. Mais uma vez, e com uma acuidade maior do que nunca, exige-se a luta contra a hidra que representa, tanto quanto o nazismo, a quinta-essência do espírito da Revolução. Os católicos devem unir-se diante do adversário comum, esquecidas todas as queixas e todos os ressentimentos, e, consoante o ensinamento de Pio XI, devem aceitar a leal colaboração de todos os homens dignos, que estejam sinceramente empenhados na luta contra o totalitarismo rubro. Mas o segredo da vitória da Igreja consiste precisamente nisto: em renunciarmos aos ideais intermediários, e, ligados a todos os que nos ofereçam sua cooperação, vencer a hidra bolchevista com a única arma que a esmagará — a Cruz, que representa a Igreja de Deus e as mais antigas e legítimas tradições da civilização cristã. “In hoc signo vinces”, disse uma Voz a Constantino num momento em que parecia incerta a sorte das armas. Essa Voz não se calou durante quinze séculos, e ainda hoje é a mesma a sua mensagem para o mundo.