Catolicismo Nº 162 - Julho de 1964

 

NÃO PERTENCE AO ENSINAMENTO DE CRISTO A DEFESA DA PROPRIEDADE?

Plinio Corrêa de Oliveira

Muito se falou, ao longo da recente crise política, do lamentável papel desempenhado pelo chamado esquerdismo católico. Como reconhecem os observadores políticos de todas as correntes, inclusive os de esquerda, não teria sido possível a Goulart e seus auxiliares levar tão longe sua nefasta obra, sem o apoio dos contingentes de escritores, oradores populares e arregimentadores de massas que, formados em Seminários e organizações da Ação Católica, se utilizavam em favor das reformas de base socialistas e confiscatórias, do janguismo e até do comunismo, das credenciais que a um ou outro título tinham para anunciar ao público a doutrina social da Igreja. Pois era única e exclusivamente o prestígio imenso da Igreja, oriundo da natureza sobrenatural desta, bem como de seu grande e glorioso passado, que esses infelizes - despidos de qualquer prestígio pessoal junto à imensa maioria sadia do povo - exploravam para destruir até suas bases a civilização cristã no Brasil.

Habitualmente se pensa que as influências a que esses elementos transviados obedeciam, vinham diretamente de Moscou, de Pequim ou de Cuba. Engano. Há, disseminados pela Europa e por todo este mundo caótico e revolto de nossos dias, uns tantos focos de irradiação desse "esquerdismo católico". E foi à influencia deles em terras do Brasil - iniciada discretamente há decênios — que se deveu em grande parte a formação do tumor esquerdista nos ambientes católicos brasileiros. Tumor este — bom é repeti-lo — que, servindo possantemente ao reformismo de base confiscatório, e à agitação comuno-brizolista, levou o País aos bordos do abismo.

Esta afirmação tem seu alcance prático. Para nos mantermos imunes à penetração esquerdista nos meios católicos não basta pôr de quarentena o que vem de atrás da cortina de ferro ou de bambu. Convém que os brasileiros saibam desconfiar daqui por diante do que lhes vem de certos centros de infestação no Ocidente. Se podemos ler com inteira confiança tantas e tantas publicações católicas, não poucas por aí há que se intitulam católicas mas cuja substância doutrinária não corresponde senão em medida relativa a esse glorioso título.

Uma dessas publicações é "Esprit", revista mensal fundada em Paris, em 1932, por Emmanuel Mounier, e dirigida atualmente por Jean-Marie Domenach, a qual, juntamente com "Témoignage Chrétien", inspira e anima, em maior ou menor medida, os grupos representados pela "Bonne Presse", pelas "Editions de Fleurus", pelas "Editions du Cerf", por "Vie Catholique Ilustrée", "Telerama" e "Informations Catholiques Internationales, etc. "Esprit" tem pelo menos o mérito da franqueza. Não usa caiação, e se apresenta claramente pelo que é. Dessa franqueza, ou melhor, dessa indiferença em - dizendo-se católica - sustentar uma doutrina crua e rijamente contrária à da Igreja, dá bem idéia a carta cujo "fac simile", acompanhado da competente tradução, publicamos nesta página.

A gênese dessa carta é fácil perceber por sua leitura. O insigne colaborador desta folha, Prof. Fernando Furquim de Almeida, enviou a "Esprit", como a outras revistas, o artigo "A liberdade da Igreja no Estado comunista", de minha autoria. Queria esse meu sagaz amigo conhecer as reações dos destinatários. "Esprit" correspondeu de sobejo à expectativa. E, como a revista desejou que eu conhecesse "ces quelques observations" hirsutas que formulou em sua missiva, o Prof. Fernando Furquim de Almeida delas me deu conhecimento. Quem diz o que quer, ouve o que não quer, afirma o provérbio. Assim, "Esprit" tem de ouvir aqui algumas coisas. E essas se resumem em que a revista propriamente deveria chamar-se "Mauvais Esprit", pois é de mau espírito que transborda seu fogoso comentário a meu modesto estudo.

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Julguem os leitores - entre os quais temos a honra de contar numerosos teólogos — através de uma análise dos três tópicos essenciais da carta de "Esprit", quem está "éloigné de l’esprit chrétien et de la doctrine catholique":

 

"Não foi uma "lei" que o Cristo veio trazer, mas o amor que completa e supera a lei".

No ensinamento que Nosso Senhor Jesus Cristo veio trazer aos homens, é elemento fundamental que Ele veio para confirmar a Lei, da qual, disse o próprio Divino Mestre, "enquanto não Passar o céu e a terra não passará um só jota ou um só ponto" ( Mat. 5, 18 ).

O amor que o Verbo Encarnado trouxe à terra não dispensa do cumprimento dos preceitos do Decálogo. Antes, pelo contrário, leva o homem à santidade, isto é, à perfeita obediência ao Decálogo.

"... a defesa da propriedade não pertence ao ensinamento do Cristo".

A propriedade privada está claramente ensinada em dois Mandamentos; "não roubar", e "não cobiçar as coisas alheias". Dado que Nosso Senhor Jesus Cristo ensinou o cumprimento do Decálogo, ensinou ser a propriedade privada um direito natural do homem.

Se assim não fosse não se compreenderia que tantos Papas, Vigários de Cristo — de São Pedro no episódio de Ananias e Safira ( cf. At. 5, 1-11 ), até João XXIII na "Mater et Magistra" — tivessem afirmado o direito de propriedade.

"... o laicismo, que foi condenado pela Igreja, e a laicidade do Estado, que ela aprova..."

Miserável jogo de palavras. Há laicidade do Estado e laicidade do Estado. Num sentido, laicidade do Estado indica que este é oficialmente indiferente à Religião. Este sentido, a Igreja o condenou, condena e condenará por todo o sempre. Deste é que, como é obvio, falei em meu artigo. Há outra laicidade que significa o fato de o Estado, em sua esfera especificamente temporal, ser dirigido por leigos e não por eclesiásticos. Com esta laicidade estamos todos de acordo. Dela não tratei em meu artigo, o qual não tem com ela a menor relação.

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Estes comentários vão ser enviados a "Esprit". Vamos ver se ele tem a coragem de defender numa tréplica as teses que teve o desplante de afirmar em sua carta. Duvidamos, porque o passo em falso foi grande. Preferirá talvez um cômodo silêncio.

Se "Esprit" se defender, disto informaremos nossos leitores.



A carta em que "Esprit" se desmascara

 

"Em 3 de março de 1964.

Sr. Fernando Furquim de Almeida,

Teve o Sr. a iniciativa de enviar-me um artigo do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira.

Não posso inserir esse artigo na revista que dirijo. Com efeito, ele me parece, por vários pontos, afastado do espírito cristão e da doutrina católica. Não foi uma "lei" que o Cristo veio trazer, mas o amor que completa e supera a lei, como disse muitas vezes São Paulo. Por outro lado, a defesa da propriedade não pertence ao ensinamento do Cristo; é até provável que a fidelidade a esse ensinamento consistiria em realizar o mais cedo possível uma reforma agrária na América Latina. Por fim, o Professor confunde o laicismo, que foi condenado pela Igreja, e a laicidade do Estado, que ela aprova e que lhe parece, até, cada vez mais útil à liberdade do ato de fé.

Eu lhe seria grato se o Sr. pudesse transmitir ao Professor estas observações, e peço que creia na expressão dos meus melhores sentimentos.

a.) J. M. Domenac