Catolicismo Nº 147 - Março de 1963

 

Profetas de Desgraças

Uma carta e uma resposta

 

“Sr. Redator

 Vários jornais tem publicado resumos da alocução pronunciada pelo Santo Padre João XXIII na sessão inaugural do Concílio. Segundo esses resumos — e também segundo comentários publicados na imprensa aqui e acolá — parece que o Santo Padre censura os que fazem críticas à situação do mundo contemporâneo e sustentam que no passado as condições da Igreja eram melhores do que em nossos dias. Ao que parece, Sua Santidade disse que achar má a situação atual importa em pretender que estamos no fim do mundo, e afirmou que não estamos ainda nos últimos tempos. Peço uma explicação sobre tudo isto.

Aceite, Sr. Redator, a expressão etc.

C. A. de A. V.”

Respondemos de bom grado às perguntas apresentadas pelo leitor,... tanto mais que é facílimo fazê-lo.

 

1) "O Papa censura os que fazem críticas à situação do mundo contemporâneo ?"

- Muito pelo contrário. Ele a considera gravíssima. A situação do mundo moderno chegou - segundo o Pontífice - a tais excessos, que está causando apreensão a todos. E é precisamente o fato de que muitos reconhecem a gravidade dos males hodiernos, que abre uma esperança para o futuro. Esclarecer a todos sobre a premência dos perigos que nos cercam é, pois, tarefa construtiva de primordial importância. Fechar os olhos para o trágico da situação é torná-la insolúvel. Tudo isto se depreende com meridiana clareza do seguinte tópico da Alocução inaugural do Concílio ( Alocução de Sua Santidade de 11 de outubro de 1962 ):

"Não é que ( hoje ) faltem doutrinas falazes, opiniões e conceitos perigosos contra os quais cumpre precaver-se e que cumpre dissipar. Mas tudo isso é tão evidentemente oposto aos retos princípios da honestidade, e deu frutos tão deletérios, que atualmente os homens parecem começar a condenar essas coisas, e nomeadamente as maneiras de viver que desprezam a Deus e suas leis, a nímia confiança que se tinha posto nos progressos técnicos, uma prosperidade ligada unicamente ao conforto da existência. Eles se convencem sempre mais de que a dignidade da pessoa humana e seu aperfeiçoamento conveniente constituem um valor relevante e que reclama um esforço muito árduo" ( Acta Apostolicae Sedis, vol. LIV, nº 14, p. 792 ).

 

2) "O Papa censura os que afirmam que no passado as condições da Igreja eram melhores do que em nossos dias?"

- O que o Santo Padre condena é a tese realmente estúpida de que a situação da Igreja por ocasião dos anteriores Concílios era em tudo e por tudo boa, e em nada ruim. E que se considere que hoje nada é bom e tudo é ruim; que se ache em conseqüência que tudo só piorou, e o fim do mundo está a vista. Leiam-se suas palavras:

"No exercício de Nosso Ministério Apostólico acontece freqüentemente que, não sem ferir Nossos ouvidos, cheguem até Nós vozes de alguns que, embora zelosos da Religião, não pesam as coisas com bastante medida e prudência. Essas pessoas, pois, não conseguem reter senão as ruínas e as calamidades quando contemplam as condições presentes da humanidade. Elas declaram que nosso tempo, em comparação com os séculos passados, afundou totalmente no pior, e até se comportam como se nada tivessem a aprender dessa mestra da vida que é a História, bem como se, ao tempo dos Concílios anteriores, tudo se passasse de modo feliz e reto quanto ao pensamento e à vida cristã, quanto à justa liberdade da Igreja.

"Mas a Nós Nos parece necessário discordar de todo desses profetas de desgraças, que anunciam acontecimentos sempre mais funestos, como se o fim do mundo estivesse próximo" ( ibidem, pp. 788-789 ).

Para ilustrar sua afirmação de que no passado como no presente a Igreja teve motivos de júbilo e de dor, o Papa acrescenta:

"Todas essas coisas ( as gravíssimas questões e problemas políticos e econômicos de hoje ) preocupam a tal ponto os homens, que lhes desviam o cuidado e o pensamento das coisas da Religião, que pertencem ao sagrado Magistério da Igreja. Tal maneira de agir é certamente viciosa e deve ser reprovada. Mas ninguém pode negar que essas novas condições de vida apresentam, pelo menos, a vantagem de haver afastado numerosos obstáculos pelos quais os filhos do século costumavam outrora embaraçar a livre atividade da Igreja. Basta, de fato, percorrer rapidamente os anais eclesiásticos para que se manifeste imediatamente como os próprios Concílios Ecumênicos, cujo desenrolar está inscrito com letras de ouro nos fastos da Igreja, foram muitas vezes celebrados no meio de gravíssimas dificuldades e motivos de dor, pela ingerência indébita do poder civil. Com efeito, é certo que por vezes os Príncipes deste mundo se propunham sinceramente assumir o patrocínio da Igreja. Mas isso não ia, geralmente, sem detrimento espiritual e perigo, porque esses Príncipes eram o mais das vezes conduzidos por motivos políticos e visavam demasiadamente a seus próprios interesses.

"Confessamos, por certo, que hoje Nos aflige uma dor veemente porque estão ausentes dentre vós numerosos Pastores da Igreja, que sem dúvida Nos são caríssimos. Por causa da fé de Cristo estão eles retidos em prisões ou entravados por outros impedimentos, e a lembrança deles Nos impele a dirigir a Deus as mais fervorosas preces por suas intenções. Todavia, não é sem esperança e sem grande conforto para Nós que vemos hoje a Igreja - desembaraçada afinal de tantos entraves profanos de uma idade pretérita - que vemos hoje a Igreja, dizíamos, poder desta Basílica Vaticana, como de um outro Cenáculo dos Apóstolos, elevar por vosso intermédio a sua voz grave e cheia de majestade" ( ibidem, pp. 789-790 ).

Veja-se bem que Sua Santidade não afirma que em todas as épocas a Igreja teve a mesma proporção de alegrias e aflições. E nem o afirmaria. Pois seria contra a mais evidente verdade histórica que o fizesse. Ele se limita a declarar que a dor e a aflição, em proporções evidentemente variáveis, vêm acompanhando a Igreja no decurso da História.

E isto não importa obviamente, da parte do Santo Padre, em afirmar que nunca houve eras históricas melhores que a nossa. Do apogeu da Idade Média escreveu Leão XIII:

"Tempo houve em que em filosofia do Evangelho governava os Estados. Nessa época, a influência da sabedoria cristã e a sua virtude divina penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade civil. Então, a Religião instituída por Jesus Cristo, solidamente estabelecida no grau de dignidade que lhe é devido, em toda parte era florescente, graças ao favor dos Príncipes e à proteção legítima dos Magistrados. Então o Sacerdócio e o Império estavam ligados entre si por uma feliz concórdia e pela permuta amistosa de bons ofícios. Organizada assim, a sociedade civil deu frutos superiores a toda expectativa, cuja memória subsiste e subsistirá, consignada como está em inúmeros documentos que artifício algum dos adversários poderá corromper ou obscurecer" ( Encíclica "Immortale Dei", de 1º-XI-1885 ).

Como esse magnífico elogio ( que não importa, aliás, em afirmar que na Idade Média tudo, absolutamente tudo, era bom ) contrasta com a descrição que João XXIII faz do mundo moderno, na sua Alocução ( cf. o primeiro tópico transcrito acima )!

Não, manifestamente o Santo Padre não quis negar que a Igreja tenha vivido no passado dias muito melhores que os de hoje.

Quanto às pessoas que fazem chegar até o Papa seus receios de fim de mundo, se alguma há, ignota, entre os leitores desta folha, creio que se tranqüilizará lendo o que São Luis Grignion de Montfort escreveu sobre os esplendores do Reino de Maria, que deverá refulgir antes que se encerre a história da humanidade(). Quem quer que leia o máximo teólogo mariano compreenderá que realmente o fim do mundo não parece próximo ainda.

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O que parece, isto sim, é que um mundo ( e não o mundo ) está acabando, e outro está se formando. Isto, a Alocução papal não o nega. Antes, ela o afirma. Nada nos impede de achar que esse mundo novo será o Reino de Maria. Eis as palavras do Pontífice:

"No curso atual dos eventos humanos, pelo qual a sociedade dos homens parece ingressar numa nova ordem de coisas, cumpre antes reconhecer os desígnios misteriosos da Providência Divina, que através do suceder dos tempos, através da atividade dos homens, e o mais das vezes fora da expectativa destes, atingem seu próprio objetivo, e dispõem sabiamente todas as coisas, mesmo os sucessos humanos adversos, para o bem da Igreja" ( ibidem, p. 789).

Mas, dirá alguém, esse mundo novo, preparado pela Providência, não é o mundo socialista de amanhã? Pois não é isto que se vê como resultado de todas as fermentações de hoje?

O socialismo é um erro condenado por todos os Papas, desde que apareceu. Ainda recentemente, na "Mater et Magistra", João XXIII reafirmou a incompatibilidade dele com a doutrina católica. Como pode ser então socialista a ordem de amanhã, se está sendo preparada misteriosamente pela Providencia?

Além do mais, se o socialismo é o desfecho humanamente previsível da crise atual, o Santo Padre acha que caminhamos para um rumo imprevisível... Rumo imprevisível que vamos encontrando pela rejeição dos erros de hoje, e não pela aceitação deles ( cf. o primeiro tópico transcrito ).

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Assim, caro leitor, suas dúvidas, nascidas de resumos apressados e comentários levianos, carecem de base no texto papal.