Catolicismo Nº 130 - Outubro de 1961

 

A propósito da crise brasileira: um grande ideal e sua contrafação

 

A atual crise brasileira pode ser considerada em profundidades diferentes. Enumeremo-las sumariamente, para escolher aquela em que nos vamos fixar.

CRISE PARTIDÁRIA E CRISE INSTITUCIONAL

Ela pode, antes de tudo, ser vista - e é este seu aspecto mais superficial - como episódio de uma luta entre equipes políticas diferentes. A UDN, vitoriosa com a eleição do Sr. Jânio Quadros, teria sofrido uma "revanche" da parte do PSD e do PTB coligados, que souberam utilizar habilmente as conseqüências da renúncia presidencial para recuperar sua antiga preponderância. Daqui por diante, trata-se de saber de que maneira prosseguirá a luta entre esses blocos políticos opostos. Se bem que essa ótica se pareça terrivelmente com a dos torcedores de futebol, não se pode negar que dentro das condições do regime vigente, ela tem certa razão de ser. Porém, não é da temática que se divisa desse ângulo, que no presente artigo nos vamos ocupar.

Outro aspecto que a crise atual oferece, e ao qual não se deve negar mais profundidade, é a substituição do presidencialismo pelo parlamentarismo. Não há dúvida de que, em circunstâncias dadas, pode exercer alguma influência na vida do País a atribuição de uma maior soma de funções ao Legislativo, ou ao Executivo. Porém, não se pode conceder à análise comparativa das duas modalidades do sistema democrático representativo a importância de um aspecto capital. Pois as dúvidas sobre as modalidades de um regime são necessariamente menos importantes do que as que se suscitem sobre o próprio regime. Assim, o problema "parlamentarismo – presidencialismo" é necessariamente menos importante que este outro: "democracia"?

DEMOCRACIA, PALAVRA DE SENTIDO PLURIMO

Flagrantes da crise de setembro último: soldados bloqueando a BR-2, lêem as últimas notícias políticas.Do ponto de vista desta última questão, a crise brasileira começa a poder ser divisada em sua verdadeira magnitude. E isto pela ambigüidade tremenda que a palavra tem no vocabulário corrente do Brasil hodierno. Que é democracia?

Todos os partidos políticos ora existentes no País procuram reivindicar para si o primado da "democraticidade". E nisto parecem, à primeira vista, estar do acordo entre si, pelo menos quanto ao fim último que visam, que seria a conservação e o incremento da democracia no Brasil. Mas, por pouco que se analise o linguajar de nossos homens públicos, é fácil verificar que estes empregam a palavra "democracia" em sentidos diferentes e até contraditórios... E que o desacordo em que se encontram a tal respeito é o sintoma mais flagrante de tudo quanto os divide no plano ideológico.

Seria errôneo pensar que cada partido tem seu conceito de democracia. Infelizmente, o vazio ideológico de nossos partidos é tal, que dentro dele têm curso as mais variadas interpretações daquele vocábulo mágico. Assim, em todos os partidos há quem aplauda e quem censure a reforma agrária confiscatória, socialista e anticristã. Os que a aplaudem fazem-no em nome do ideal democrático, cuja mais alta expressão estaria na igualdade econômica e social. Os que a censuram fazem-no em nome do mesmíssimo ideal, considerando que a democracia consiste em uma justa e proporcionada autonomia dos particulares face ao poder público, e vendo na total subordinação da vida rural ao Estado - e nisto dá inevitavelmente o agro-reformismo - a suprema negação da democracia. O que é então, no seu sentido hodierno, "democracia"? Outro exemplo: as relações do Brasil com o bloco soviético, Cuba e a Iugoslávia. Na generalidade dos partidos, há tanto propugnadores quanto impugnadores da aproximação com esses países. Os primeiros alegam como argumento a necessidade de sincronizar nossa política exterior com o processo universal de democratização da humanidade. Os outros a rejeitam porque não querem que nosso País se afaste do bloco das nações democráticas. Mais uma vez: o que é então democracia? Se qualquer de nossos partidos ditos democráticos tivesse um ideal próprio e definido de democracia, deveria ter sobre estes e outros grandes problemas uma posição nítida e coesa, procurando atrair os adeptos de seu ponto de vista, excluir de suas De cassetête em punho, a polícia dissolve uma manifestação popular; fileiras os que pensam de modo oposto. Ora, é precisamente o contrário que se observa. Todos vêm evitando tomar posição oficial e ninguém pensa em excluir ninguém. A palavra "democracia" serve de isca nas águas turvas da opinião pública. Quanto mais iscas, tanto mais peixes. Quanto maior o número de vezes em que se fala de democracia, tanto maior o numero de eleitores que se apanha. E para que a palavra mágica desempenhe em toda a amplitude seu papel é necessário deixá-la bem ambígua. Grita-se democracia, e cada qual a entende segundo seus pressupostos pessoais. Está fisgado o eleitor. Neste gênero de atividades, o objetivo essencial é o êxito político pessoal. E o resto é nada. Diante de tal emprego da palavra "democracia", aflora à memória o dito atribuído a Talleyrand: "A palavra foi dada ao homem para ocultar seu pensamento", mas a afirmação do famoso diplomata deveria ser retocada, para se ajustar à nossa realidade atual: "A palavra foi dada ao homem para ocultar sua inteira falta de pensamento".

Exemplificamos com partidos políticos. Não pensamos porém que lhes caiba o monopólio desta triste confusão. Ela embebeu todas as categorias sociais. Nos discursos dos paraninfos, nas aulas, na imprensa, no rádio, na televisão, a ambigüidade referente à democracia se nota com a maior freqüência.

QUEM LUCRA COM A CONFUSÃO?

Fuzileiros navais desembarcam em Imbituba, Estado de Santa Catarina.Todos discutem, falam e escrevem, à procura de um rumo. Mas neste afã todos usam como instrumento máximo de expressão uma palavra que atingiu o supremo grau da ambigüidade. O que daí se deduz, senão que ninguém poderá sair da confusão?

Com isto, todos perdem. Exceto, diria o Conselheiro Acácio, os que lucram.

E quem lucra? Bem entendido, lucram só os comunistas... e lucram enormemente.

E, se lucram com isto, não são os autores disto?

Para tal não lhes falta nem a malícia requintada, nem os meios de manipulação subtil, poderosa e desalmada desse "quid" dúctil e influenciável, que é a opinião pública.

A confusão verbal, a confusão mental, desnorteia um adversário imensamente mais poderoso. E enquanto isto, os comunistas, minoria coesa, avançam silenciosamente nas trevas, em bloco compacto.

ATÉ A PALAVRA "CRISTÃO" SE TORNOU CONFUSA

Quanta dor, sim, quanta e quanta dor sinto em me ver obrigado a dizer que o mesmo processo de deterioração a que foi submetido o substantivo "democracia" atacou também em nosso linguajar político uma das palavras mais precisas e mais nobres, o mais belo adjetivo que jamais lábios humanos tenham pronunciado; refiro-me ao termo: "cristão".

Em via de regra, o adjetivo sofre as vicissitudes do substantivo com que costuma ser conjugado, mais ou menos como a esposa acompanha as do esposo.

Ora, in concreto, um imenso número de pessoas, dos mais diversos quadrantes políticos, quando usa o substantivo "democracia" lhe associa o termo "cristão". De onde, como "democracia" pode ser tudo, "cristão" é um molho que vai bem com os pratos mais diversos. Uns se referem à "democracia cristã" para tirar à "democracia" um certo cunho jacobino, bilioso, quase incendiário, para indicar que desejam uma aplicação restrita e benigna da trilogia "liberdade, igualdade, fraternidade". Outros empregam a mesmíssima expressão para fazer entender que o Cristianismo aceita que o único critério da justiça seja a igualdade. E que, apaixonada pela justiça, a consciência cristã exige as reformas mais radicais para chegar ao igualitarismo completo. Poucos, porém, são os que tomam as palavras "democracia cristã" em seu verdadeiro significado.

Assim, essa expressão a que Leão XIII ligou na Encíclica "Graves de Communi" um sentido tão claro, invariavelmente seguido por seus Sucessores, hoje foi transformada num instrumento supremo de confusão. Pois esta atinge seu mais alto grau de nocividade e malícia quando penetra, para o conspurcar e profanar, o terreno sacrossanto dos valores religiosos.

A VERDADEIRA DEMOCRACIA CRISTÃ

Escreveu Leão XIII, na Encíclica a que aludimos, que a democracia cristã não é uma forma de governo, podendo ser tanto monárquica, quanto aristocrática, quanto democrática. Ela é o ideal da reta ordenação dos assuntos atinentes ao bem comum, entendido e realizado segundo os ditames da doutrina católica. Eis as palavras do Pontífice: " ... a democracia cristã, pelo simples fato de se chamar cristã, deve basear-se, como em seu próprio fundamento, nos princípios que estabelece a fé divina, buscando de tal maneira o bem dos corpos, que não deixe de buscar ao mesmo tempo a santificação das almas, destinadas aos bens eternos. Nada, portanto, deve ela antepor à justiça; mantenha em sua integridade o direito de adquirir e de possuir, admitindo a distinção de classes, como corresponde aos Estados bem constituídos; e trate finalmente de dar à comunidade humana aquela forma e caráter que condizem com os planos do Criador.

"( ... ) Também seria censurável emprestar ao nome de democracia cristã algum sentido político. Pois, embora a palavra democracia, segundo sua etimologia e o uso dos filósofos, denote um regime popular, não obstante, nas presentes circunstâncias, tal expressão se deve usar de preferência para denotar essa mesma ação cristã em favor do povo, prescindindo absolutamente de toda acepção política. Porque, sendo os preceitos naturais e os do Evangelho superiores a todas as vicissitudes humanas, de modo nenhum podem depender de qualquer regime civil, senão que a todos devem poder acomodar-se, contanto que não estejam em conflito com a honestidade e a justiça ( ... ).

Também deve afastar-se da idéia de democracia cristã outro motivo de discórdia, qual seja o de ocupar-se de tal maneira com os interesses das classes inferiores, que se descuidem os das classes superiores ( ... )".

Entender que, pondo um rotulo cristão a um ideal liberal, ou a um ideal socialista, intrinsecamente pior, se coonesta à luz da doutrina católica o liberalismo ou o socialismo, é erro evidente e funestíssimo.

Pior abuso da palavra "cristão" ocorre quando uma pessoa, para esquivar-se de dar uma explicação para conceitos ou ações com que tenha alarmado a opinião conservadora, alega como única defesa, que é "cristã". O que é mais ou menos tão absurdo quanto se alguém, para se defender de uma acusação moral, não dissesse sim nem não, mas se considerasse justificado simplesmente com afirmar: "sou cristão".

COMO FOI POSSÍVEL EXPLORAR A PALAVRA "CRISTÃO"

"Cristão"... que pretexto encontrou o confusionismo para abusar de tal maneira deste sagrado vocábulo?

"Ser cristão, ensina-nos o Catecismo, é ser batizado, crer e professar a doutrina e a lei de Jesus Cristo".

O protestante, o cismático pode ser cristão se tiver recebido o batismo, se crer nas verdades essenciais de nossa Fé e professar a lei de Jesus Cristo. Mas um e outro será um cristão em estado anormal e defectivo. Mais ou menos como um homem sem braços e sem pernas.

Um homem pode não ter braços e pernas, sem deixar de ser homem. O Homem tem braços e pernas. Assim, um cristão poderá não ser católico. Mas o cristão é católico, apostólico e romano.

Do fato de que também os hereges e cismáticos se podem dizer cristãos, nasceu para a palavra "cristão" uma série de aplicações abusivas e vagas, distintas do significado de "católico" e até opostas a ele. Desejar um Estado cristão, ou uma legislação cristã, é, neste diapasão, desejar um Estado aconfessional, separado da Igreja, ou ligado igualmente a todas as igrejas, com uma legislação que se inspire em alguns grandes princípios evangélicos, mas que se afirme indiferente e autônoma face a toda a doutrina social católica considerada como um bloco homogêneo e indivisível. Assim aplicada, a palavra se torna fluida e vaga, idealmente própria a sofrer todas as violências impostas ao vocábulo "democracia".

E desse modo se consegue desnortear e reduzir ao auge da confusão de idéias – ponto de partida de todas as outras confusões - todo um povo inteligente, ordeiro e sinceramente desejoso de se manter católico, como é o brasileiro.

COMO LUTAR CONTRA A CONFUSÃO

Ante esta confusão, um dos deveres primordiais, que a todos incumbem, consiste em esclarecer.

De que maneira podem os leitores de "Catolicismo" contribuir para tal? Se a confusão é de idéias e de palavras, a respeito de democracia e Cristianismo, ela só pode ser dissipada pelo apostolado das idéias claras e das palavras claras. Por isto, é de se recomendar a maior clareza em matéria de "democracia cristã".

A democracia cristã, no sentido que lhe deu Leão XIII, isto é, de ordem temporal conducente ao bem comum segundo a lei de Cristo, e desvinculada de qualquer forma de governo in concreto, é o ideal necessário de ação temporal de todo católico.

Mas é preciso ter o cuidado de, ao empregar a expressão, fazê-lo em tal sentido e em tal contexto, que jamais se possa identificá-la com algo que é o contrário da verdadeira democracia cristã. O que é esse contrário? É a ordem temporal anticristã. Ora, sendo atualmente a manifestação mais categórica e mais aliciante do ideal temporal anticristão o comunismo, seria verdadeiramente de bradar ao Céu que a expressão "democracia cristã" significasse um comunismo vagamente borrifado de água benta. O adjetivo "cristão" serviria então de rótulo para encobrir o pior dos contrabandos ideológicos, ou seja, a aceitação da democracia materialista e revolucionária como ideal político dos meios católicos.

A este propósito é preciso lembrar sobretudo a necessidade de jamais usar a palavra "cristão" em temas tais, que ela possa ser interpretada como sinônimo de interconfessional, pancristão, etc. "Cristão" deve soar nitidamente como "católico". O ideal da democracia cristão de Leão XIII é – e não poderia deixar de ser – um ideal genuína e plenamente católico.

Como tal, esse ideal não é susceptível de acomodações vergonhosas, como a da igreja cismática que na Rússia pactua com o comunismo, ou a de certas seitas protestantes que aceitam o socialismo. Ser comunista é incorrer em excomunhão, como apóstata da fé, decretou o pranteado Pio XII ( decreto da Suprema S. C. do Santo Ofício, de 1º de julho de 1949 ). Socialismo e Catolicismo "São termos contraditórios", proclamou Pio XI ( Encíclica "Quadragesimo Anno" ). Uma "democracia cristã" que tenda, ainda que de longe, para o socialismo e o comunismo, ou que de qualquer forma lhes faça o jogo, nem é democracia, nem é cristã, no sentido de Leão XIII.

Por isto mesmo, um ideal democristão que inclua a reforma agrária, a reforma industrial, a reforma urbana e a reforma educacional em termos mais ou menos fidel-castristas, é a pior e a mais cruel negação da democracia cristã.

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Estas considerações, evidentemente, só por si não bastam. Pois muitas outras providências haveria que sugerir. M<as a mais essencial delas é que fique bem clara para cada fiel a distinção e mais que isto a antinomia entre a democracia cristã e a democracia revolucionária.

Para adquirir verdadeiramente clareza e lógica nesta matéria, é da maior importância que os leitores de "Catolicismo" se impregnem dos luminosos conceitos da recente "Carta Pastoral prevenindo os diocesanos conta os ardis da seita comunista", do ilustre Bispo de Campos ( v. "Catolicismo", nº 127, de julho de 1961 ).

A insanável incompatibilidade do verdadeiro ideal da civilização católica – que outra coisa não é a democracia cristã – com o socialismo e o comunismo, fica ali patenteada com uma evidência admirável, que constitui um dos muitos títulos que colocam esse documento no rol dos mais importantes da atualidade brasileira.

Ele é bem, sob esse aspecto, o marco divisor entre a democracia cristã verdadeira e sua abominável contrafação.

– "Abominável", não é forte a expressão? Se é ótimo o ideal genuíno da civilização cristã, como negar que seja péssima sua deterioração? "Corruptio optimi pessima"