Catolicismo Nº 125 - Maio de 1961
REFORMA AGRÁRIA – QUESTÃO DE CONSCIÊNCIA
LIVRO QUE O SR. CORÇÃO
NÃO LEU
Comentei no último número desta folha (1), os três artigos que o Sr. Gustavo Corção escreveu contra o livro "Reforma Agrária — Questão de Consciência" do qual, com os Exmos. Revmos. Srs. D. Geraldo de Proença Sigaud, recentemente promovido a Arcebispo de Diamantina, e D. Antonio de Castro Mayer, Bispo de Campos, bem como com o economista Luiz Mendonça de Freitas, sou autor.
Naquele artigo, mostrava minha surpresa diante do fato de que o Sr. Gustavo Corção não lera senão alguns trechos — e mesmo estes superficialmente — de um livro contra o qual investia com a maior violência, a ponto de declarar que ele merecia ser objeto de impulsos de cólera idênticos aos que S. Sa. Experimentara ao tomar conhecimento do crime tremendo que foi a ocupação da Hungria pelas tropas soviéticas.
Para pôr em realce o infundado da posição do fogoso jornalista, o artigo apresentava uma condensação das principais teses de "Reforma Agrária — Questão de Consciência", Já por aí se podia ver quanto era sem base a acusação capital de nosso opositor, de que se tratava de obra escrita para favorecer os ricos, combater os pobres e manter em um estranho imobilismo nossa vida rural.
Parecia-me ainda conveniente considerar alguns argumentos do Sr. Gustavo Corção contra o livro, para tornar ainda mais claro aos olhos do leitor que S. Sa. havia lido tão somente "à vol d’oiseau" nosso trabalho.
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A primeira crítica do Sr. Gustavo Corção a "Reforma Agrária — Questão de Consciência" ( artigo "Reforma Agrária: Questão de Consciência" in "O Estado de São Paulo", de 22/1/1961 ) consiste em que o igualitarismo rural, enunciado em muitas proposições impugnadas na parte I, secção II, do livro ( pp 62 e segs. ), e baseado "na igualdade, não apenas de natureza essencial e de direitos fundamentais, mas também de condições e atributos de todos os homens", não é socialista. Nem é próprio aos modernos nacionalistas, sempre prontos "a invocar o monopólio estatal e a Terrabrás". É tese de "algum utópico distribuista meio bobo, que ouviu cantar o galo da pequena propriedade mas não sabe onde". E conclui S. Sa. com superioridade: "Por mim jamais escreveria um livro para responder àquelas teses, tendo forçosamente de dizer coisas enfadonhas de tão óbvias".
Ora, se o Sr. Corção tivesse lido com o necessário vagar a nossa obra, teria notado dois pontos que por certo lhe evitariam de formular uma acusação tão sem base.
Em repetidas passagens, o livro acentua a importância capital, como elemento propulsor do movimento agro-reformista, de algo que ele distingue da doutrina socialista propriamente dita. Este elemento propulsor, os autores o chamam um "preconceito passional" ( p. 3 ), um "complexo" ( pp. 3 e 4 ), a expressão de uma "mentalidade esquerdista" ( p. 4 ), algo que não é propriamente a doutrina socialista, mas a exalação de um "espírito socialista" ( pp. 4 e 8 ), um conjunto de "princípios que contém em si, implícita ou explicitamente, a idéia de que o interesse público é oposto ao interesse particular, e que, em conseqüência, o proprietário rural não é um benemérito, mas um parasita" ( p. 28 ), um "imenso movimento ideológico e temperamental" ( p. 52 ). Ora, é deste elemento propulsor que cuida a secção II do livro, constituída por proposições afirmadas e impugnadas, seguidas de comentários e textos pontifícios, secção esta que o Sr. Gustavo Corção folheou, e contra a qual, em conseqüência, mais especialmente assenta suas baterias. Por isto mesmo, o título da secção não é "Erros socialistas", mas "Opiniões socializantes que preparam o ambiente para a Reforma Agrária" ( p. 57 ). E em conformidade com isto, na introdução à referida secção II ( p. 59 ) esclarece o livro que ela "tem por fim considerar, não mais o sistema de idéias socialistas, mas as mais importantes dentre as opiniões que preparam o ambiente — até mesmo em círculos que se reputam conservadores e anti-socialistas — para uma certa receptividade em relação a reformas socializantes de nossa organização social e econômica, e portanto também para a Reforma Agrária. O sistema socialista ( ... ) é abordado agora em plano apenas secundário", isto é, acrescenta a introdução, tão somente na medida em que aquelas opiniões forem comuns ao socialismo.
Se não é pois do socialismo que se trata na secção II, mas de algo que, afim com ele, delo entretanto perfeita e cabalmente se distingue, é normal que ali não haja o que o Sr. Gustavo Corção chama "o sotaque dos socialistas". S. Sa. nos acusa, em outros termos, de não apresentarmos na dita secção o verdadeiro socialismo. A acusação provém do fato de que ele não nos leu bem. Pois não foi o socialismo que os autores ali quiseram apresentar.
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Nosso pobre livro, tão mal lido pelo seu apressado crítico, trata em três capítulos do socialismo propriamente dito, e mostra em quantos matizes este se divide ( pp. 29 a 44 ). O Sr. Gustavo Corção parece achar que o que ele chama de "igualdade não apenas de natureza essencial e de direitos fundamentais, mas também de condições e atributos de todos os homens", nada tem de comum com o socialismo, genericamente considerado, e sem exceção de qualquer matiz ( S. Sa. se refere ao socialismo como se fosse um bloco homogêneo e maciço ). Ora, pelo contrário, a nós se afigura que tem que ver: implicitamente em alguns matizes, explicitamente em outros. Teremos entendido mal os autores socialistas? Então o grande Leão XIII caiu no mesmo erro. Pois afirmou que "os socialistas não cessam, como todos sabemos, de proclamar a igualdade de todos os homens segundo a natureza" ( Encíclica "Quod Apostolici Muneris", de 28/12/1878 ). E, também, que "é impossível que na sociedade civil todos sejam elevados ao mesmo nível. É, sem dúvida, isto o que desejam os socialistas" ( Encíclica "Rerum Novarum", de 15/V/1891 ). Se o Sr. Corção tivesse lido a p. 65 de nosso modesto trabalho, teria encontrado ali esses textos, e por certo não teria formulado mais esta objeção.
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O Sr. Gustavo Corção lança ao livro uma grave acusação: a de "comprometer o que temos de mais sério, de mais santo, numa estranha e incompreensível defesa do statu quo, das classes dirigentes, das boas famílias que ainda merecem mais aspas do que a tal Reforma Agrária, dos grandes proprietários agrícolas, inclusive aqueles cujas terras excessivas ainda estão improdutivas" ( art. cit. ). Falarei, adiante, de nossa posição relativamente ao que S. Sa. intitula as "boas famílias que ainda merecem mais aspas do que a tal Reforma Agrária". Quanto ao livro, é verdade que ele advoga o imobilismo, o statu quo? É verdade que defende de modo injusto e indiscriminado os "grandes proprietários agrícolas(...) cujas terras excessivas ainda estão improdutivas?"
Tivesse o Sr. Gustavo Corção simplesmente lido com seriedade o aviso preliminar do livro ( p. IX ), e teria visto que nossas críticas à "Reforma Agrária", como fica ali declarado, "não se referem, pois, de modo algum, a medidas que promovam um autêntico progresso da vida do campo ou da produção agropecuária". Tivesse lido a p. 9, e teria visto que, "se por reforma agrária se entende uma legislação que, sem exorbitar das funções do Estado e sem atacar o princípio da propriedade privada, visa a melhorar a situação do trabalhador rural e do agricultor, só aplausos lhe temos a dar". E ali mesmo acrescentamos: "Não nos opomos senão a uma reforma agrária de sentido igualitário e socializante, que altere nossa estrutura agrária injustamente, de maneira a abalar o instituto da propriedade, no qual vemos, como já dissemos, a base e a condição de toda economia sadia". Outros tópicos, ainda, seriam elucidativos para S. Sa. se os tivesse lido. Assim, na p. 10, teria conhecido as sugestões que, a título exemplificativo, fazemos para uma sadia reforma agrária, entre as quais figuram a concessão de terras devolutas para os pequenos agricultores, e o "fomento das formas de contrato do trabalho que possibilitem um aproveitamento intenso da terra e ao mesmo tempo beneficiem o assalariado, permitindo-íhe uma situação econômica mais favorável e a constituição paulatina de um patrimônio", como por exemplo a parceria e as empreitadas. Ou ainda, o "crédito especial para melhoria das moradias dos colonos e medidas congêneres". Na p. 11, poderia o belicoso articulista ter visto que aspiramos ao "fomento criterioso da pequena propriedade" e chamamos a atenção dos estudiosos para as múltiplas medidas de reforma social do campo aventadas por Pio XII, as quais ali transcrevemos.
Na p. 182 deploramos a carestia de vida e a "condição subumana de muitos trabalhadores agrícolas". Mais adiante, afirmamos que o atual regime rural "pode e deve ser urgentemente melhorado, para obedecer aos ditames da justiça e satisfazer às exigências do bem comum. Assim, lugares há em que as condições de vida do homem do campo estão a clamar por uma grande melhoria. Em várias zonas é conveniente substituir propriedades grandes por outras médias, ou até pequenas, facilitando-se deste modo o acesso do trabalhador à condição de proprietário". E acrescentamos: "a lei pode e deve favorecer com toda a diligência e por todos os meios ao seu alcance, uma e outra dessas transformações". Lembramos com Pio XI ( p. 93 ) que, existindo hoje um "clamoroso contraste entre o pequeno número dos ultra-ricos e a multidão inumerável dos pobres, não há homem prudente que não reconheça os gravíssimos inconvenientes da atual repartição da riqueza". Dissociamos expressamente nossa posição de qualquer solidariedade com essa situação abusiva, afirmando: "Aprovar que haja classes desiguais, grandes e pequenos, patrões e empregados, fortunas grandes, médias e pequenas, enfim pessoas ou famílias que vivam digna e suficientemente de salário, não é aprovar a coexistência de ultra-ricos e indigentes" ( p. 94 ).
O que nesta posição compromete o que temos de mais sério e mais santo? Não inclui ela um sadio desejo de urgentes e necessárias reformas? Então, no que favorece o statu quo?
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Passemos agora à defesa que o livro faz dos "grandes proprietários agrícolas ( ... ) cujas terras excessivas ainda estão Improdutivas" ( art. cit. ). Dê-se o Sr. Corção o trabalho de ler a p. 122 de "Reforma Agrária — Questão de Consciência", e verá que, em resumo, afirmamos que a propriedade da terra não se confunde com o uso dela. É o que ensinam os textos pontifícios ali transcritos. Assim, o simples fato de uma terra não ser cultivada não constitui motivo suficiente para uma ação repressiva da lei.
Mas — e nós o dizemos na p. 153 como em muitos outros tópicos do livro (pp. 120, 121, 151, 183, 196 e 197) — desde que a improdutividade do uma gleba seja provadamente nociva ao bem comum, cabe ao Estado analisar a situação.
Se a improdutividade resultar de carência de meios do proprietário, o Estado deve ajudá-lo a vencer essas carência. Se elo recusar tal auxílio, o Estudo tem o direito de desapropriar suas terras, mediante justo preço. É este o ensinamento de todos os moralistas católicos. Diga o leitor se nisto há qualquer coisa de faccioso ou injusto em favor dos proprietários de terras incultas.
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Abordemos em seguida o assunto "boas famílias". Sustentamos em nosso livro ( pp. 15 a 17 ) que a classe dos proprietários rurais é benemérita da nação, e desenvolvemos com prazer os vários títulos dessa benemerência. Com prazer, insisto, e sem acanhamento, pois nenhum dos autores é fazendeiro. Ao mesmo tempo ( pp. 17 e 18 ), mostramos que uma das benemerências dessa classe consiste em ter aceito sempre, inclusive em nossos dias, a incorporação de elementos sadios e novos que a ela têm ascendido, e a depuração gradual de grande número de elementos que dela têm merecidamente decaído para situações de menos responsabilidade e relevo no corpo social. Bem precisamente o contrario, pois, da idéia estúrdia de que o mundo se divide em duas partes, as boas famílias, que têm todas as qualidades por definição e a título inalienável, e as outras que não valem nada.
A este propósito importa recordar outro princípio, que também afirmamos ( p. 208 ). É que a superioridade social e econômica envolve graves obrigações. E, em conseqüência, lembramos que à elite incumbe ter "um cuidado extremo em reconhecer os direitos dos que lhe são subordinados" ( p. 208 ), pois nisto reside umas de suas características necessárias. Os autores incitam os proprietários agrícolas a que tomem a dianteira sobre a demagogia revolucionária na missão de "soerguimento das condições de vida dos trabalhadores rurais". Recomendam que eles "sejam ciosos de lhes pagar sempre o salário justo, familiar e não inferior a um mínimo razoável". Que "sejam propensos a admitir outras medidas com o mesmo fim, quando couberem, como a parceria, ou a difusão da pequena propriedade pelo sistema de loteamento", etc. Que "procurem criar nos seus empregados apreço sempre maior pela poupança, pelo asseio e pelo bom-gosto no lar", "o desejo não só de bem-estar como de prosperidade" ( ibid. ). E que façam quanto puderem para promover a instrução religiosa dos colonos, regularizar as uniões ilegítimas, reprimir o alcoolismo e favorecer as boas diversões ( p. 209 ).
Na p. 218 pleiteiam "uma legislação protegendo melhor o trabalhador rural do ponto de vista do salário", etc.
Não contentes com isso, mostram os autores que uma ordem social cristã deve tender quanto possível para um luxo popular à maneira do que em várias partes da Europa alcançaram outrora os camponeses, com seus ricos trajes regionais, suas jóias de ouro, seus móveis espaçosos e artísticos, suas vivendas pitorescas, etc. ( p. 209 ).
Na p. 187, publicam dois tópicos da Encíclica "Rerum Novarum" que contêm uma súmula dos direitos do trabalhador em face do proprietário.
Na p. 26 enumeram os deveres dos fazendeiros relativamente à formação espiritual dos colonos.
Reiteradamente afirmam que esse programa de medidas concretas não lhes parece suficiente. Lembram os princípios e o espírito que devem nortear uma reforma agrária sadia — pois isto está na competência especial deles — e os erros que devem ser evitados para que não se chegue a uma reforma agrária malsã. Por outro lado, convidam os técnicos e os especialistas a elaborarem um programa completo de boa reforma agrária. Aconselho ainda o Sr. Gustavo Corção a ler as declarações feitas nas pp. 6, 11 e 208.
Além de falar dos especiais encargos desta elite, trata o livro também de seus senões.
Logo depois de ter proclamado o respeito, o reconhecimento e o apoio que o País deve à classe dos fazendeiros, já no capítulo seguinte ( pp. 21 a 26 ) mostra que ela, a par de suas inegáveis qualidades, e ressalvadas as honrosas exceções, apresenta também incontestáveis defeitos.
Entre estes lembram os autores as despesas excessivas com representação social e prazeres, a ausência por demais freqüente da vida do campo, etc., bem como o desinteresse, ora maior, ora menor, pelo soerguimento das condições religiosas, intelectuais e materiais dos trabalhadores rurais. Esses defeitos não existem em todos os elementos constitutivos dessa categoria social, nem se concentram habitualmente todos nas mesmas pessoas. Em proporções maiores ou menores, eles existem entretanto, de um modo geral, em numerosos membros da classe.
A partir de todas essas considerações, aceitamos como válido o princípio de que toda elite é um elemento precioso na vida de um país. Pelo que, quando ela apresenta defeitos, deve-se procurar orientá-la e auxiliá-la, para que os veja e para que os corrija. É o que expressamente diz Pio XII no discurso à nobreza romana ( 1º/1/1943 ) mencionado em meu primeiro artigo.
Deus, que dotou a Igreja da missão e da força necessária para falar com eficácia ao coração de todos os homens de todas as classes, não Lhe deu menos poder para falar aos grandes do que aos pequenos. Essa obra indispensável, do incremento da influência cristã nas elites, nada tem de utópico.
Nessas condições, consideramos que a destruição das bases econômicas e da influência social dessa elite seria tarefa ao mesmo tempo desnecessária e injusta.
Embora se assanhem os furores da demagogia contra esta afirmação, aqui a fazemos — e escrevo no plural porque os co-autores do livro me pediram que consignasse sua plena solidariedade com este artigo — com o mais inteiro desembaraço. Acreditando sempre que o Sr. Gustavo Corção não tenha lido "Reforma Agrária — Questão de Consciência", pedimos-lhe que, agora que conhece nosso pensamento, nos responda de modo claro, conciso e com a coragem que não lhe negamos: S. Sa. está de acordo em que essa demolição é desnecessária, nociva e injusta? ou pelo contrário, acha que ela é justa, necessária e vantajosa para o bem comum?
Igualmente gostaríamos de conhecer seu pensamento sobre o seguinte: estamos persuadidos de que há meios no Brasil para resolver o problema agrário atendendo aos direitos dos trabalhadores e à conveniência do bem comum, sem deixar destruída, ou pelo menos mal vista pelo público e amesquinhada em sua legítima e saudável influência, a classe dos fazendeiros. S. Sa. concorda com isto?
Perdoe-nos a indiscrição das perguntas. É que temos mais empenho em conhecer neste ponto seu abalizado pronunciamento, do que teve ele em se inteirar das opiniões que consignamos em nosso desvalioso trabalho.
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Uma das mais claras provas de que o Sr. Gustavo Corção leu nosso livro em diagonal está no seu segundo artigo, intitulado "Reforma agrária e direito de propriedade" ( in "O Estudo de São Paulo" de 29-I-1961 ).
S. Sa. consagrou todo aquele seu longo trabalho a demonstrar que sua posição se distingue da nossa pelo fato de que, para ele, "o direito de propriedade é indispensável à boa estrutura social mas deve ser defendido em termos de subordinação ao bem comum, de maior acesso à multidão", etc. E pouco adiante nos atribui a idéia de que é socialista o artigo 147 da Constituição Federal, por afirmar que "o uso da propriedade está condicionado ao bem-estar social". É em virtude deste princípio que, quando um imóvel prejudica o bem comum por sua excessiva extensão, pode ser desapropriado. S. Sa. aceita esta conseqüência, e no aceitá-la imagina diferenciar-se de nós. Assim, evidentemente, nos atribui o pensamento oposto.
Tivesse S. Sa. lido alguns de nossos tópicos sobre a matéria, e compreenderia desde logo, com a mais meridiana clareza, que se engana. Apenas para exemplificar, transcrevo na íntegra o que afirmamos na p. 120: "O direito do proprietáriO legítimo tem como fundamento último a ordem natural das coisas, a qual é anterior e superior ao Estado.
"Este não o pode, pois, suprimir, a não ser quando o bem comum o exija. E, ainda assim, mediante indenização justa e imediata.
"Caso a desapropriação em larga escala fosse indispensável ao bem comum, e o Estado não pudesse indenizar os proprietários condignamente, compreender-se-ia em princípio que essa indenização fosse inferior ao valor real do imóvel desapropriado. Nessa hipótese ainda, a indenização deveria ser, não a menor, mas a maior possível.
"Como mostraremos na Parte II, essa hipótese não ocorre, aliás, no Brasil".
Aí está afirmado em toda a sua extensão o princípio que o Sr. Gustavo Corção imagina que negamos. É impossível multiplicar as citações. Leia entretanto S. Sa. as pp. 121, 151, 152, 183, 196, 197, 198, 219, e compreenderá que, se nos opomos à partilha compulsória das terras no Brasil, não é porque neguemos o princípio de que em certas situações extremas ela possa caber, mas porque nas condições concretas do Brasil ela constituiria um verdadeiro disparate e por isto mesmo uma gravíssima injustiça. A partilha compulsória não melhoraria as condições da agricultura nem dos trabalhadores, e criaria problemas mais graves que os atuais. É o que na parte II do livro longamente se demonstra.
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Outra prova, e pitoresca, de que S. Sa. não leu seriamente "Reforma Agrária — Questão de Consciência", que aliás tanto o irritou, está na sua afirmação de que "um dos principais defeitos do livro" é a "ausência de um prefácio em que os autores dissessem que a obra exprime o pensamento deles sem pretender apresentar-se como um pronunciamento oficial da Igreja". O livro não tem propriamente prefácio, mas a declaração cuja ausência o fogoso articulista tanto deplora está na p. 159.
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A asserção de S. Sa., de que nem sequer reconhecemos aos pobres o direito de gemer, é tão oposta a, tudo que se encontra no livro, que até faz sorrir.
Leia o Sr. Corção na p. 74 o tópico de João XXIII, que afirma para "toda classe de cidadãos" a liceidade da defesa de seus direitos. Leia na p. 82 o texto de Pio XI, reconhecendo aos pobres o direito de pleitear melhores condições de vida. Leia na p. 86 o tópico em que sustentamos ser justa a indignação dos pobres diante das extravagâncias e excessos do luxo. Leia na p. 92 a nossa afirmação de que a recusa do salário familiar em nível suficiente e digno pode constituir pecado que brada ao Céu e clama por vingança. E S. Sa. compreenderá quanto errou.
A linguagem do livro tem nesta matéria a necessária clareza. Ela evita apenas o tom demagógico que São Pio X desaconselhou no tópico transcrito à p. 95, que provavelmente nosso apressado crítico também não leu.
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Quase tão censurável, e imensamente tolo, é o pensamento que nos atribui o Sr. Gustavo Corção, de que "a riqueza, a grande propriedade, a fortuna vultosa se explicam pelas superiores possibilidades e até parecem sinais da dileção divina" ( art. "Reforma Agrária: Questão de Consciência", in "O Estado de São Paulo" de 22/I/1961 ).
Aqui, felizmente, S. Sa. cita o texto em que se apóia. É a proposição nº 1, na p. 62.
Leiamo-la: "Todos os homens ativos e probos têm igual direito à vida, à integridade física, à fruição de condições de existência suficientes, dignas e estáveis.
"Mas é justo que os mais capazes, mais ativos, mais econômicos tenham, além deste mínimo, o que produzirem graças às suas superiores possibilidades.
"Daí decorrem legitimamente a diferenciação das propriedades em grandes, médias e pequenas, e quiçá a existência de uma classe condignamente remunerada, mas sem terras".
O que evidentemente está dito aí é que à maior capacidade corresponde maior possibilidade de ascensão econômica. Quanto mais o homem é capaz, tanto mais facilmente pode tornar-se rico. A formação de uma contextura de propriedades desiguais resulta obviamente da conjugação deste princípio com outro, que é o da herança.
Tudo isto é claro, é simples, é perfeitamente banal. Mas tão perigoso é criticar o que, provavelmente movido pela paixão, se leu superficialmente, que o Sr. Gustavo Corção acabou por suspeitar ou imaginar que sustentamos neste tópico que os ricos, mais do que todos os outros homens, são os bem amados de Deus. Ao que parece, S. Sa. acha mesmo que lhes atribuímos o monopólio de toda instrução, cultura e virtude. Um débil mental, herdeiro de boa fortuna, seria assim mais capaz do que um trabalhador ativo em franca ascensão!
Deploro que o Sr. Corção, antes de lançar contra nós juízo público tão severo, não tenha lido as já citadas pp. 17, 18, 69, 78 e 81, em que falamos da necessidade de renovar as elites pelo acesso de elementos novos e depuração dos elementos gastos, e temas quejandos, para compreender que temos um pouco de senso para não afirmar tais despautérios.
O belicoso articulista leu apressadamente o seguinte texto: "Quem nasce, pois, de um casal particularmente dotado pela Providência com bens espirituais ou materiais fica muito legitimamente favorecido desde o berço, mais do que outros nascidos de pais com predicados comuns". Este texto se encontra na p. 130 ( proposição nº15 ). S. Sa. não leu infelizmente as linhas que se seguem a essas: "Esta desigualdade primeira é justa, porquanto Deus, supremo Senhor de todos os bens, dá a cada qual o que quer". E, a título de confirmação, acrescentamos imediatamente depois este pensamento de Pio XII, que resume lapidarmente o que vem antes: "A natureza benigna e a benção de Deus à humanidade iluminam e protegem os berços, beijam-nos, porém não os nivelam". Se tivesse detido os olhos nisto, o Sr. Gustavo Corção teria compreendido melhor o sentido óbvio do que dissemos. Nada disso chamou a atenção de S. Sa., que parece não ter percebido estar investindo contra o próprio Pio XII. E por esse motivo exclama indignado: "Aí está o tom, o diapasão de toda a obra".
Realmente é o tom. Inspira-se ele no citado ensinamento de Pio XII, que S. Sa. conhecerá ainda melhor se tomar o trabalho de ler à p. 132 outro texto do mesmo Pontífice sobre a matéria.
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O Sr. Gustavo Corção acusa nosso livro de ignorar o amor particular que a Igreja tem ao pobre, e o dever especial de o proteger que incumbe ao Estado, segundo a doutrina católica. Tivesse S. Sa. lido a p. 104, e se teria dado conta de que com palavras de Leão XIII recordamos precisamente as máximas que ele nos acusa de haver omitido. Na p. 165, lembramos que a condição subumana de muitos pobres "constitui uma situação da qual a Igreja Se condói maternalmente, e que Ela faz o possível para eliminar ou, pelo menos, mitigar ( ... ). Aos pobres deste gênero a Igreja ama como um tesouro que Lhe foi particularmente confiado por Jesus Cristo".
Como é natural, esta preferência pelos pobres não importa em ódio aos ricos, e é este ponto que talvez tenha deixado perplexo o Sr. Gustavo Corção. Com efeito, lembramos na p. 105 que ricos e pobres são filhos de Deus, e citamos Leão XIII, segundo o qual não se deve julgar que em sua ação social a Igreja "consagra os seus cuidados de tal modo aos interesses das classes inferiores, que parece pôr de lado as classes superiores, que não são menos úteis para conservação e melhoramento da sociedade". É a posição de amor a todas as classes, relembrada na p. 168 ( proposição nº 34 ), tão típica do pensamento católico, e que procuramos refletir em "Reforma Agrária — Questão de Consciência".
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Outro ponto que se torna claríssimo, por superficialmente que se leia o livro, é que o capítulo I, na secção 2 da Parte I ( pp. 62 a 144 ), de onde o Sr. Gustavo Corção tirou a totalidade ou quase totalidade de suas objeções, corresponde a um problema inteiramente teórico, a saber: se, considerada em si mesma, a diferenciação das propriedades rurais em grandes, médias e pequenas é contrária ao espírito do Evangelho. Os fatos concretos não são abordados nesta, mas em outras partes do trabalho.
Para responder ao problema posto naquele capítulo, afirmamos entre outras coisas um princípio genérico de moral: "Desde que um homem tenha o que é necessário à subsistência e à prosperidade sua e de sua família, e receba a justa remuneração de seu trabalho, não tem direito a deplorar que outras pessoas ou famílias possuam mais" ( pp. 77 e 78 ). O Sr. Gustavo Corção, ululando literalmente de indignação exclama: "Digam-me ( os leitores ) se esta hipótese não lhes parece fantástica de audácia, e até diria de hipocrisia se outros fossem os autores do livro. Todos nós estamos fartos, cansados, enjoados de saber que essa mirífica hipótese, tão singelamente posta na base dos subseqüentes raciocínios, não se aplica a 80% ou mais da população brasileira" ( art. cit. ).
Já mencionei neste e no artigo anterior o que pensamos sobre a anomalia de nossa atual situação rural, inclusive a do trabalhador do campo, e sobre a necessidade de lhe dar remédio urgente. Estamos, pois, muito longe de afirmar, como imagina o Sr. Corção, que a hipótese aventada corresponda sempre e necessariamente à realidade brasileira. Mais uma vez, se S. Sa. tivesse lido atentamente o nosso livro, teria poupado a seu sistema nervoso e a seu fígado momentos de furiosa e inútil indignação.
Porém, não seria necessário recorrer a este esclarecimento, para perceber que é infundada a objeção.
Com efeito, quando se trata de uma exposição de princípios de filosofia social ou moral, estudam-se as várias hipóteses possíveis, sem cogitar da maior ou menor freqüência de cada uma delas na prática. O Sr Gustavo Corção sabe disto, e, com menos pressa e raiva, poderia ter-se dado conta de que estava neste âmbito puramente doutrinário a nossa asserção...
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Para concluir, uma jóia.
Um dos artigos em apreço nos atribui a idéia de que uma família que não seja abastada é um simulacro, pior ainda, uma caricatura de família ( art. cit. ).
Podemos dizer tranqüilamente que isto é um simulacro, pior ainda, uma caricatura do que pensamos.
Com efeito, o tópico citado pelo Sr. Gustavo Corção é o seguinte: "Uma família que não desse aos filhos uma participação na formação religiosa e moral, na cultura e na abundância de seus pais, seria um simulacro, pior ainda, uma caricatura de família" ( p. 140 ).
S. Sa. esqueceu-se por certo de ler a extensa proposição nº 18 ( p. 139 ), da qual o texto citado não constitui senão uma pequena parte final. E igualmente não leu as outras passagens próximas do livro, que com esta se relacionam. Não podemos transcrever neste artigo todo o contexto, porém o resumiremos. Os autores cuidam aqui, como na proposição nº 15 ( p. 130 ), do erro dos que, querendo manter viva a instituição familiar, entretanto afirmam o princípio de que deve haver igualdade de todos, de sorte a não se justificar herança nem melhor educação para os filhos de pais mais abastados. Assim, a família não conferiria aos filhos qualquer participação nas vantagens dos pais. O contexto sustenta que a instituição familiar, privada da possibilidade de beneficiar os filhos, "seria um simulacro, pior ainda, uma caricatura de família".
Isso absolutamente não importa em dizer que, quando uma família considerada in concreto, e não a instituição familiar em tese, não tem posses, é um simulacro ou uma caricatura de família. Primeiramente, porque não falamos só de bens materiais, mas de formação religiosa, de formação moral, e de cultura. Em segundo lugar, porque, .se considerássemos uma caricatura toda família sem bens, deveríamos considerar caricatural a Sagrada Família de Nazaré, pensamento que só se pode atribuir a autores que se dizem católicos, e máxime a dois Bispos, se são loucos de internar em sanatório. Não queremos crer que o Sr. Gustavo Corção chegue tão longe.
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Terminamos. É muito ingrato defender um livro contra ataques desta natureza. A defesa exige todo um trabalho de citações e hermenêutica, que extenua quem escreve, e também quem lê. Mas que remédio há para o acusado senão defender-se, entrando assim nos múltiplos meandros, já não direi de todas, mas pelo menos das principais acusações?
Aqui fica apresentada, para o público brasileiro, uma refutação que ele facilmente poderá comprovar no próprio livro.
Muitas outras asserções do Sr. Gustavo Corção poderiam ainda ser refutadas.
O que nesta série de artigos foi dito é quanto basta.
(1) “Reforma Agrária – Questão de Consciência: livro odioso como a invasão da Hungria?” - "Catolicismo Nº 124 - Abril de 1961