Catolicismo Nº 119 - Novembro de 1960
Filial presente a João XXIII por dois aniversários augustos
Plinio Corrêa de Oliveira
Ao longo da história, têm variado muito os presentes escolhidos pelos homens para exprimirem sua estima e sua alegria aos que desejam obsequiar por motivo de nascimento, de aniversário, de bodas ou por qualquer outra razão.
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Os antigos, afeitos ao simbolismo, gostavam de dar presentes de alto valor, não tanto por causa da utilidade que pudessem ter para o homenageado, como para expressar, através dos predicados do objeto ofertado, algo de espiritual que seria propriamente a quinta-essência do dom. Assim, os Reis Magos ofereceram ao Menino Jesus ouro, incenso e mirra, e expressavam com isto o amor de Deus, a oração e a penitência, disposições de alma que representavam uma oferenda incomparavelmente mais importante do que a utilidade que esses presentes poderiam ter para a Sagrada Família, do ponto de vista prático, na vida quotidiana.
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Não é possível esboçar aqui uma história dos presentes através dos séculos. Saltando, pois, daquelas remotas eras para o século XIX, mais próximo ( e entretanto tão distante! ) de nós, podemos observar que o presente ainda conservava então seu significado simbólico. A uma senhora ofereciam-se flores, perfumes, leques, quando não jóias, em geral com uma discreta e bem escolhida alusão a algum predicado dela. A um senhor ( ainda os havia ) dava-se algum objeto em relação com suas atividades ou seu modo de ser: uma bengala, por exemplo, rija com uma espada mas adornada e distinta como um bastão de comando, símbolo da alta categoria e do poder de quem a empunhava. Ou uma pasta de trabalho de couro precioso e perfumado, discreta, sisuda, elegante, como preciosos, poéticos, distintos, elevados e nobres seriam os pensamentos que seu dono consignaria nas folhas que ali guardasse. Havia, pois, presentes, que "ficavam bem" para uma pessoa, e não para outra, porque condiziam com aquela e não com esta. Mas, se bem que sempre vivo, o simbolismo já então denotava sintomas de fraqueza. É que freqüentemente era acompanhado de longos e espraiados discursos. De discurseira, diziam, não raras vezes, as pessoas afeitas à concisão e à rapidez. Onde há símbolo, o palavreado longo e prolixo é particularmente dispensável. Pois, ou o símbolo fala sua linguagem específica, à qual só se podem somar, quando muito, breves palavras, ou – se se acha necessário reforçá-lo com uma longa e verbosa explicação – cumpre reconhecer que ele é aguado, de expressão confusa ou gasta.
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Essa debilidade do símbolo se acentuou em nossos dias. No presente de luxo, que ainda conserva um vestígio de valor simbólico, o que se olha como símbolo é cada vez menos a relação entre o objeto e os predicados do presenteado, e cada vez mais o preço. Este, sim, é um símbolo que ainda "fala". E "fala" tanto, que dispensa palavras. Indica em números a "cotação" do homenageado junto ao ou aos homenageantes. Quanto mais caro o presente, tanto mais é amigo quem dá, e tanto mais fica amigo quem recebe. Há nisto uma expressão viva do poder do número e – porque não dizê-lo? – do poder do dinheiro, em nossa época rude, atormentada e utilitária. Não fica nisto porém, em matéria de presentes, a influência do utilitarismo contemporâneo. O presente com vago resquício de significado simbólico vai desaparecendo para dar sempre mais lugar ao presente prático. Isso se nota sobretudo por ocasião de casamentos: as pessoas de posses medianas se cotizam para oferecer geladeiras, batedeiras, aspiradores, máquinas de lavar, encerar, costurar ou escrever, faqueiros, roupas de cama ou mesa; enquanto as pessoas de maiores recursos dão casas, títulos, automóveis, iates quiçá.
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O simbolismo vai morrendo ao sopro gélido do utilitarismo. Sob o influxo deste, entretanto, começa-se a operar por sua vez mais uma transformação. Quem presenteia já não pensa só na utilidade de quem recebe. Pensa também em si. O desprendimento vai minguando.Quem dá perde gradualmente a vontade de dar. E vai vendo cada vez mais no presente um velado imposto. O ocaso da generosidade cristã e o triunfo do hiperutilitarismo pagão levam aos últimos estágios de decadência o presente. Quem o dá, fá-lo sempre mais freqüentemente rangendo os dentes e sorrindo com os lábios. Quem o recebe, recebe-o sorrindo com os lábios também, mas computando com os olhos o preço, para ver se está "em proporção".
Elementos essenciais na arte de dar
A considerar todo o assunto com bom senso, compreende-se que em muitos casos o império das circunstâncias impõe que o presente tenha entre outros aspectos um caráter prático, e assim foi em todos os tempos. Em outros casos, um discurso, ou mais simplesmente algumas breves considerações ricas de conteúdo, podem representar mais do que qualquer donativo material. E por isto a palavra humana também teve e terá sempre um papel próprio na arte de dar. Por fim, outras circunstâncias haverá em que um objeto dirá mais que qualquer palavra. Mas também é verdade que cada século tem tido seu estilo próprio de presentear, em que algum desses elementos é realçado, ora de modo equilibrado e judicioso, ora, como tende a ser hoje, com unilateralidade e destempero.
De qualquer forma, a expressão simbólica, a palavra e o critério prático devem ser harmonicamente entrelaçados na arte de dar.
Um presente ao Sumo Pontífice
Se, pois, quisermos oferecer ao Santo Padre João XXIII um presente por motivo do segundo aniversário de sua coroação e do 79º de seu nascimento – que ocorrem nos dias 4 e 25 deste mês – e desejarmos reunir nesse presente tais elementos, que havemos de fazer?
O mundo contempla, há dois anos ásperos e cheios, com emoção e espanto, essa suave figura já quase octogenária que, colocada na ponte de comando da imensa e maravilhosa nau bimilenária que é a Igreja, luta serena e firmemente contra uma procela das mais tenebrosas da história. Diante de cada situação concreta, a originalidade de suas soluções empolga. Mas ao mesmo tempo essas soluções vêm tão discretas, tão eficientes, tão naturais, tão simples, que não se sabe o que dizer. Simples, sim, mas com uma simplicidade que não raras vezes toca o grandioso. E, falando em grandiosidade, nosso espírito e o dos leitores se voltam espontaneamente para sua iniciativa genial e, mais do que isto, inspirada, de convocar o Concílio Ecumênico. Se o reinado de João XXIII já pode ser comparado a um diadema de ouro, é forçoso reconhecer que nele refulge como a mais bela jóia a convocação da Assembléia Universal da Igreja.
Como presentear esse Pai sábio e simples, eficiente e suave, forte e bondoso, de lances grandiosos e aspectos encantadoramente amenos, que vai fazendo um pontificado inconfundível na longa série dos que o antecederam e dos que lhe sucederão?
Um símbolo como presente
Não nos compete qualificar por um símbolo, como que por um timbre, esse pontificado, como aliás qualquer outro. Cabe isto a vozes mais altas e mais autorizadas. Mas, para entreter nosso amor, podemos perguntar se entre as criaturas de Deus encontramos alguma representação adequada das virtudes mestras deste reinado. Simplicidade, grandeza, força, doçura, previdência, onde achar um símbolo que reúna adequadamente a expressão de todos estes predicados?
Na Igreja, são incontáveis os símbolos usados para representar essas virtudes. A simplicidade, por exemplo, é lembrada pela pomba, a grandeza pela águia, a força pelo leão de Judá, a doçura pelo favo de mel, a previdência pelo cão vigilante e fiel que perscruta as trevas a fim de discernir o ladrão, e assim por diante.
Mas essa simbologia tem algo de inadequado a nosso caso. É que não se trata de lembrar uma ou outra dessas virtudes, mas o conjunto delas. E não parece que, em seres inferiores, algum se possa encontrar à altura de tal.
Forçoso é, pois, subir, e deitar os olhos na esfera, incomparavelmente superior, do gênero humano. Em certo sentido, um homem pode levar tão alto a prática da virtude, que chegue a tornar-se o símbolo vivo de um ou de alguns predicados morais. São Francisco de Assis, para exemplificar, é a mais excelsa personificação da pobreza evangélica. E a este título ele simboliza de algum modo a Ordem Seráfica e, pois, todos os Frades Menores.
Vindo de Veneza, como João XXIII, reinando como este sob o céu borrascoso de um "avant guerre" temível, universalmente amado por sua simplicidade a um tempo amena, sorridente e grandiosa, pela sua força, por sua doçura, por sua invencível vigilância, São Pio X não poderia ser, ele próprio, como que um símbolo radioso de todas as virtudes que distinguem o Santo padre João XXIII?
Precisamente neste ano, em que se celebra o qüinquagésimo aniversário da portentosa Carta Apostólica "Notre Charge Apostolique", com a qual o Santo Papa aniquilou a penetração sub-reptícia de todos os erros que a organização de Marc Sagnier carreava consigo ( interconfessionalismo, neutralismo religioso, igualitarismo, liberalismo, modernismo, Revolução enfim ), é o caso de fixarmos esse símbolo em nossa alma, e de evocarmos esse grande Santo que um jornalista francês comparou ao Arcanjo de face sobrenaturalmente pura e olhar incendiado de zelo, a guardar terrível a porta do Paraíso; mas que foi ao mesmo tempo o papa bondoso e clemente, que acolhia com nobre e sobrenatural afabilidade as crianças, curava doentes, e sabia ter uma palavra de força e de alento para todos os que sofrem. São Pio X, tendo em uma das mãos a "Notre Charge Apostolique" contra o Sillon e a celestialmente tremenda Encíclica "Pascendi" contra o modernismo, e com a outra mão abençoando paternalmente as multidões, pode bem ser o símbolo através do qual compreenderemos a fundo João XXIII, que com força admirável desmantelou os últimos redutos da organização dos Padres-operários, baniu da luz do sol os movimentos deploráveis em prol da abolição da batina e do celibato eclesiástico, desfez as manobras confusionistas do interconfessionalismo a propósito do Concílio Universal, e pôs cobro às cavilosas maquinações comunistas em favor da "política da mão estendida". João XXIII, sim, que vem fazendo tudo isto, mas que ao mesmo tempo tem visitado como pai amorosíssimo os encarcerados e os doentes, acolhido com requintes de bondade os fracos e os pequeninos, e vem como que enchendo com a luz de seu sorriso sutil e suave todo o orbe.
São Pio X não é um símbolo que possamos "dar" a João XXIII. Mas aproximar em nosso coração essa figura excelsa da figura augusta do Pontífice reinante é de alguma forma fazer a este um presente. Pois é um modo de compreendermos e amarmos ainda mais Sua Santidade.
E isto, sim, é para um Papa um dom de valor. Pois de cada um de nós, por ínfimo que seja, o que o Papa quer é uma união afetuosa e muito filial, uma submissão inteira de pensamento e coração.
Palavras ditadas pelo coração
Fomos deixando correr a pena, sob a força propulsora de veneração, da admiração e do amor.
E detendo-nos um pouco para reler o que escrevêramos, verificamos que a João XXIII já ofertamos, não só o símbolo, mas a palavra. Pois o que dissemos para explicar o símbolo escolhido importa em dizer do Pontífice gloriosamente reinante tudo quanto uma alma pode dizer, na expansão de seu amor ao Papa e ao Papado.
Lembramos que em geral as palavras não devem explicar o símbolo, ou devem ser muito sóbrias nisto. No caso, porém, a regra é transcendida por uma exceção. Trata-se, não propriamente de dar um presente simbólico, mas de entronizar um símbolo em nosso coração. E o coração, de si, é loquaz: a boca fala pela abundância do coração ( cf. Mt. 12,34 )...
Um presente prático, pois move a história
E o presente de utilidade prática? Onde encontrar os tesouros incomensuráveis, para aliviar nesta época de aflição as necessidades do Vigário de Jesus Cristo, a bem da Santa Igreja?
Nesta quadra que é para a Revolução o que o século de São Luis IX e de São Tomás foi para a Igreja, em geral os pobres têm vergonha de não serem arranjados, os arranjados têm vergonha de não serem ricos, os ricos têm vergonha de não serem riquíssimos, os riquíssimos... salvas as exceções, não têm vergonha de nada e, sempre salvas as exceções, de alto a baixo da escala social ninguém tem vergonha do que verdadeiramente deveria envergonhar, isto é, de viver fora da graça de Deus.
Mas, já que Nosso Senhor declarou preferir o óbolo da viúva ( cf. Mc. 12, 41-44 ), ninguém, em meios autenticamente católicos, tem motivos para se enrubescer com a pouca ou nenhuma valia econômica de seus dons. "Argentum et aurum non est mihi", disse São Pedro a um pobre que lhe pedia esmola ( cf. At. 3,6 ). Não ter ouro nem prata deixou, pois, de ser vergonha, a partir do advento da era cristã, para todos os homens.
"Catolicismo" vive com sacrifício: melhor, vive do sacrifício. Ele não dá ouro nem prata. Mas tem algo a dar, que é muito mais precioso na ordem prática.
Para os filhos da Revolução, tenham eles a mentalidade metálica de certos burgueses ou o espírito baixamente materialista dos sequazes da Marx, os interesses materiais movem a história. E, pois, para mover a história nos rumos da civilização cristã, o Papa deveria ser poderoso na ordem da matéria.
Entretanto, sabemos que, muito e muito mais que pela matéria, a história é dirigida pela oração. Quem dá só orações por não ter ouro a dar, dá algo de muito mais prático, útil, eficiente, do que quem dá ouro e não dá orações.
E rezar, quem não o pode fazer? O gênero do presente prático está, portanto, escolhido.
O problema consiste em escolher agora a oração.
Que orações? Muitas: quanto mais, melhor. Sobretudo orações que valham muito, pelas disposições com que forem feitas. Não se trata de escolher entre a qualidade e a quantidade, mas de rezar muito, e rezar muito bem. Não haveria entretanto uma oração que fosse particularmente do agrado do Papa e que, por isso mesmo, deveria atrair especialmente nossa devoção? Que critérios utilizar para descobri-la?
O problema se nos afigura dos mais simples.
Sabe-se que o objeto principal da solicitude do Pontífice é o II Concílio do Vaticano.
Ora, precisamente em favor do Concílio, lemos uma oração concisa, substanciosa, confiante e ardente, composta pelo Santo Padre João XXIII. O que poderia ser melhor do que oferecer a Sua Santidade o que ele mesmo pede? Quando sabemos o que deseja receber a pessoa a quem queremos obsequiar, o embaraço da escolha do presente cessa automaticamente.
É o seguinte o texto dessa oração, publicado pela Sagrada Penitenciaria Apostólica na "Acta Apostolicae Sedis" ( ano LI, nº 14 e 15, p. 832 ):
"Ó Divino Espírito Santo, Vós que, enviado pelo Pai em nome de Jesus, assistis a Igreja com vossa presença e A dirigis de modo infalível, derramai benignamente, como Vos rogamos, a plenitude de vossos dons sobre o Concílio Ecumênico.
"Mestre e Consolador dulcíssimo, iluminai a mente de nossos Bispos, que, atendendo com diligência ao Sumo Pontífice Romano, se reunirão na Sacrossanta Assembléia.
"Fazei que esta dê frutos abundantes, que a luz e a força do Evangelho se difundam sempre mais na sociedade humana, que a Religião Católica e a operosa atividade missionária floresçam com renovado vigor; e, por fim, que a doutrina da Igreja seja mais plenamente conhecida e os costumes cristãos alcancem um salutar progresso.
"Ó doce Hóspede da alma, firmai nossas inteligências na verdade e disponde nossos corações à obediência, para que não só recebamos com sincera submissão as decisões do Concílio, mas também as ponhamos em prática diligentemente.
"Nós Vos rogamos outrossim pelas ovelhas que não se encontram no único redil de Jesus Cristo, para que, assim como elas se orgulham do nome de cristãs, do mesmo modo cheguem finalmente à unidade sob a direção do único Pastor.
"Renovai em nossa época, como que por uma nova Pentecostes, as vossas maravilhas, e concedei à Santa Igreja que, perseverando unânime e instantemente na oração com Maria, Mãe de Jesus, e conduzida por São Pedro, Ela estenda o reino do Divino Salvador, reino de verdade e de justiça, reino de amor e de paz. Amém".
A oração e suas irmãs: penitência e ação
Um comentário, por fim:
A oração, a penitência e a ação são irmãs inseparáveis. Quem reza bem recebe de Deus o amor ao sacrifício. Quem quer sacrificar-se bem compreende desde logo, e como que intuitivamente, a necessidade da oração. Quem reza bem e se sacrifica bem, tem a tendência a agir em favor da causa de Deus.
Que a bela oração do Santo padre acenda em nós o espírito de oração e o espírito de sacrifício em favor do Concílio. Que cada qual, na esfera maior ou menor de sua influência pessoal, procure preparar um ambiente de entusiasmo e receptividade filial em relação ao Concílio.
Se a isto nos decidirmos com ânimo forte, e soubermos depor nas mãos de Maria Santíssima essa decisão, para que ela a apresente revestida de seus méritos ao Divino Filho, teremos festejado condignamente os aniversários da coroação e do nascimento deste Papa dado por Deus à Igreja para A consolar, dirigir e conduzir ao triunfo nos terríveis dias em que vivemos.