Catolicismo Nº 118 - Outubro de 1960

 

Obra providencial com que "Catolicismo" se solidariza inteiramente

A imprensa das principais cidades do país vem anunciando largamente o próximo aparecimento de "Reforma Agrária – Questão de Consciência", livro no qual é examinado detidamente, em seus antecedentes históricos, em seus fundamentos doutrinários, e em suas repercussões espirituais e materiais na vida do Brasil, o tão controvertido problema da reforma agrária.

A exposição dos aspectos religiosos e sociais da questão tem por autores o Exmo. Revmo. Sr. Bispo Diocesano, D. Antonio de Castro Mayer, o Exmo. Revmo. Sr. D. Geraldo de Proença Sigaud, S.V.D., Bispo de Jacarezinho e o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira. Os aspectos econômicos ficaram principalmente a cargo do economista Luiz Mendonça de Freitas.

Não só pela atualidade do assunto, como pela projeção pessoal dos ilustres autores nos meios culturais, religiosos e sociais do País, já antes de entregue a obra às livrarias, sobre ela começaram a escrever jornalistas de São Paulo e do Rio de Janeiro. Norma é que dela tratemos largamente também nós.

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Com efeito, "Catolicismo" se solidariza inteiramente com esse livro, do qual, data vênia, pode dizer muito apropriadamente que de algum modo também é seu. Vem isto, naturalmente, em boa medida, dos vínculos tão íntimos, e tão preciosos para esta folha, que a ligam ao Exmo. Revmo. Sr. Bispo Diocesano e aos outros autores. Porém, há mais. É que o ideal de "Catolicismo", e da fervorosa família de almas que em torno dele se constituiu em todo o Brasil, consiste em tudo fazer para conter o surto da Revolução e assegurar o triunfo da Contra-Revolução. Sobre o sentido muito definido que atribuímos a este ideal, nada temos a esclarecer, depois de divulgada a visão panorâmica, de índole histórica e doutrinária, que estampamos em nosso Nº 100, de abril de 1959, sob o título de "Revolução e Contra-Revolução". E o livro "Reforma Agrária – Questão de Consciência" é precisamente um lance magnífico nessa grande luta contra a Revolução, uma obra com a qual, portanto, em todos os seus termos, "Catolicismo" se afirma ufana e alegremente solidário.

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Para convidar seus leitores ao estudo e à meditação diligente dessa obra, "Catolicismo" pediu ao Prof. Plinio Corrêa de Oliveira que, em lugar de sua costumeira colaboração, escrevesse um estudo sobre a oportunidade de "Reforma Agrária – Questão de Consciência", na atual conjuntura nacional.

É este estudo que temos o prazer de apresentar a nossos leitores nas páginas seguintes.


Reforma Agrária – Questão de Consciência

Plinio Corrêa de Oliveira

No legislativo federal tramitam há alguns anos, em marcha ora mais, ora menos acelerada, vinte projetos de reforma agrária. A imprensa vem registrando, consecutivamente opiniões ora favoráveis, ora contrárias à medida. Mas uma notória modorra caracterizava até março deste ano o andamento do assunto. Dir-se-ia que os adeptos da reforma iam "aquecendo" paulatinamente a opinião pública com vistas a obterem, por fim, um clima de efervescência no qual ela chegasse a empolgar as massas rurais e, em geral, os trabalhadores de todo o País.

A fase morosa do reformismo agrário – Frieza das massas rurais

Para honra do trabalhador rural brasileiro, pobre muitas vezes, mas sempre pacífico, ordeiro, afetivo, e sinceramente religioso, cumpre reconhecer que nele está o grande obstáculo concreto para o êxito do agro-reformismo.

Com efeito, excetuados aqui e acolá, em Pernambuco principalmente, uns poucos pontos em que a demagogia agrária conseguiu produzir alguma efervescência, o clima que reina entre os colonos em todo o Brasil não se mostra contagiado pela fermentação agro-reformista. A atmosfera que se depara em nossas fazendas é sensivelmente diversa, por exemplo, da que, em 1887 ou nos primeiros meses de 1888, preparou e impôs o 13 de maio.

Se compararmos o belo exemplo de moderação e equilíbrio que nos dá o trabalhador agrícola atual, com a excitação que se nota nos círculos burgueses agro-reformistas, facilmente veremos que a agitação está sendo semeada do alto, em lugar de nascer do povo.

Percebe-se que esta situação inquieta os agro-reformistas. E que sentem que, sem a alterar radicalmente, pouco ou nada obterão. O Deputado federal Ruy Ramos, por exemplo, atribui a inércia da população rural à desorganização: "Nosso caminho, em matéria de reforma agrária, é a organização das massas rurais sem terras", afirma ele ( "Diário do Congresso nacional", 10 de maio p.p., p. 2939 ).

De início, sustenta o parlamentar, a ação junto às massas deve ser pacífica. A partir de certo ponto, deve passar a ter um caráter de intimidação e ameaça. E do mesmo modo pensa o Deputado federal Mário Martins: "O nobre Deputado Ruy Ramos – diz o Sr. Mário Martins – com aplausos gerais demonstrou a necessidade, para que ganhe andamento a reforma agrária no Brasil, de trabalharmos junto às massas rurais, sem agitação, a fim de que, mais tarde, possam elas até atemorizar o governo e o Parlamento em busca dessa reivindicação" ( ibidem ).

Como se vê, são elementos extrínsecos à população rural que procuram fermentá-la. O que torna bem patente que é fora dela que o agro-reformismo deitou principalmente raízes, e que o empolgá-la é a tarefa difícil diante da qual se encontra.

Será realmente a falta de organização o grande obstáculo do agro-reformismo?

Pensamos que não. O exacerbado líder agro-reformista, Deputado estadual pernambucano Francisco Julião, em entrevista coletiva à imprensa, realizada na sede a ABI, e reproduzida no "Correio Paulistano" de 22 de julho p.p., ressaltou que um grande obstáculo diante do qual se tem achado é a "desconfiança do camponês", que se acha "revestido de uma carapaça difícil de ser vencida e que o torna antes de tudo um desconfiado". E acrescentou que, sendo "o camponês brasileiro antes de tudo um homem religioso", é principalmente "exibindo a Bíblia e lendo-lhe o Sermão da Montanha" que se chega a um resultado apreciável, desfazendo sua "carapaça" e despertando nele "o sentimento de união na luta pela posse da terra que, segundo Cristo, é de todos".

Aí está o fato. É o espírito religioso que mantém a ordem no campo. E é só pelo falseamento desse espírito que a desordem ali penetrará.

O tipo clássico do demagogo poderia ser representado por um incendiário que com uma só tocha pusesse em chamas uma imensa fogueira.

O demagogo que age num ambiente mal preparado poderia a seu turno comparar-se a um incendiário que procurasse fazer arder uma fogueira de lenha verde. Tal é a imagem que corresponderia à situação dos propugnadores demagógicos da reforma agrária. Por mais que agissem – salvo talvez em uma área circunscrita de Pernambuco, graças a circunstâncias peculiares e a uma propaganda infrene, cujos frutos até aqui muito têm de efêmero – os agitadores que propugnavam a reforma agrária declamavam diante de um Brasil que pensa, trabalha e vive rumo a objetivos bem diversos.

O reformismo agrário, fenômeno burguês

O único gênero de ambientes em que, em vários Estados, o reformismo vinha conquistando terreno são certos setores da "inteliguentsia" brasileira. Intoxicados de literatura socialista ou cripto-socialista, quando não comunista, esses ambientes, constituídos de alguns políticos, jornalistas, escritores ou professores, além de certo número de admiradores e diletantes, se deixaram impressionar. O espírito da Revolução Francesa começou de algum modo nos meios intelectuais do Enciclopedismo. A da Rússia teve sua primeira origem na "inteliguentsia" esquerdista. E outros exemplos do gênero se poderiam apontar. Ora, essas "inteliguentsias" têm sempre meios de impressionar certos elementos do centro e até da direita. Nas classes burguesas o reformismo agrário, mais feliz um pouco do que junto às massas, conquistou pois, aqui e acolá, algum elemento esparso. Este era o balanço de alguns anos de propaganda.

O "socialismo cristão" nas fileiras da burguesia

Mas – considerando sempre a burguesia grande, média ou pequena – haveria outras circunstâncias a ponderar.

O sociólogo norte-americano P. Sorokin, falando em recente congresso no México ( cf. "O Estado de São Paulo", de 7 de setembro p.p. ), afirmou que em vinte anos não haveria mais diferença entre os Estado Unidos e a Rússia. O prazo é de responsabilidade dele. Mas o princípio de que o mundo ocidental, trabalhado pelos fermentos revolucionários que datam do declínio da Idade Média, está sendo vítima de transformações processivas que o levarão por fim ao comunismo, se antes disto não intervier a Providência, é tese essencial desta folha.

Este infeliz processo – entre nós, pelo menos – não é tão dinâmico nem tão consciente nas populações rurais quanto nas classes médias e altas, cujos elementos, em número não pequeno, se deixam arrastar por ele, a um tempo fascinados e atemorizados, como o pássaro hipnotizado se deixa atrair pela serpente.

Uma velada e eficiente propaganda socialista vem tentando envolver o ambiente burguês no Brasil, já preparado para isto por cento e setenta anos de aceitação dos princípios da Revolução Francesa. Certas palavras defensáveis ou até boas em seu sentido literal, como justiça social, democracia, evolução, feudalismo, latifúndio, social, etc., circulam muitas vezes, entre nós, túmidas de conteúdos indefiníveis e demagógicos. Uma tendência crescente para o divórcio, para o ensino leigo, para um sempre mais acentuado nivelamento das classes, se vai fazendo notar em certos meios burgueses, que entretanto continuam, por outros aspectos, bem burgueses. E como as pessoas sujeitas a tais estados de espírito contraditórios se mostram sempre sequiosas de fórmulas bivalentes, elas qualificam de bom grado sua situação híbrida dizendo que professam o "socialismo cristão": termos que Pio XI, na Encíclica "Quadragesimo Anno", declarou serem incompatíveis entre si. Filhas da contradição, elas só se sentem à vontade na confusão.

Contradição "socialista-cristã" e confusão de idéias na agitação agro-reformista

Ora, para espíritos tais, a expressão "reforma agrária" é muito atraente.

E isto exatamente porque ela tem o vago, o indefinido, que lhes permite interpretá-la arbitrariamente segundo seus desígnios.

Com efeito, uma reforma agrária quer dizer, literalmente:

    a) "reforma", isto é, restituição a uma boa forma, do que está deformado;

    b) "agrária", isto é, do "ager", do campo.

Uma reforma do campo... quem não a achará sob algum aspecto, e por algum meio, realmente necessária? Sejamos, pois, todos pela reforma agrária!

E de fato, quem não desejaria, por exemplo, melhores salários e condições de vida mais humanas para tantos trabalhadores rurais? Quem não gostaria de ver loteadas, em certas regiões, terras excessivamente grandes? Quem não quereria mais proteção para a lavoura, mais máquinas, mais hospitais, mais escolas no campo?

Que grande coisa, portanto, a reforma agrária, denominador comum de homens generosos, das tendências mais variadas!

Uma grande coisa, sim, sob um aspecto. Mas, sob outro, uma grande ilusão. Assim como cada qual toma das palavras que constituem a fórmula "socialismo cristão" quanto quer de socialismo e quanto de cristão, cada qual, a propósito de reforma agrária, imagina o que entende. E desse modo se formou em certos ambientes burgueses nacionais, felizmente não muito numerosos, um vozerio a favor da reforma agrária, profundamente contrastante com a inércia dos trabalhadores rurais. Ao vozerio acabaram por misturar suas vozes, levadas pelos melhores propósitos, pessoas das mais dignas, nem um pouco eivadas de "socialismo cristão", pedindo sob o rótulo de reforma agrária as reformas mais sensatas. Ao lado destas, poderia citar-se toda uma gama de vozes sempre mais rumorosas e agitadas, a qual chega até o clamor nitidamente revolucionário. Em suma, o movimento a favor da reforma agrária não constitui um todo ideológico homogêneo, mas se parece antes a um coro em que cada qual canta como entende.

Resultados doutrinariamente fracos, mas taticamente apreciáveis

Como se nota, do ponto de vista da doutrinação reformista o resultado deve ser considerado confuso, circunscrito a alguns meios, e pobre.

Mas o que é pouco do ponto de vista de um recenseamento doutrinário, ou de um plebiscito, pode ser muito do ponto de vista político. Arquimedes, com uma alavanca e um ponto de apoio, se propunha levantar o mundo. Com a demagogia por alavanca, e a confusão por ponto de apoio, pode-se tirar de seus gonzos um país. Principalmente porque, se a confusão começa a se instalar no elemento dirigente e pensante, o que não temer? Um cego guiado por outro cego cai no abismo, diz o Evangelho ( cf. Mat. 15,14 ). Se os que são os guias naturais da sociedade temporal ficam cegos, e se servem de sua influência para cegar os outros, o que esperar?

Em 1789, só uma minoria ínfima de franceses – intelectuais exaltados, fidalgos ávidos de representar um papel político, burgueses ambiciosos – queria a república jacobina. Essa minoria não teria realizado seus desígnios se não tivesse conseguido que grandes contingentes de nobres e burgueses desprevenidos dessem sua adesão inicial aos princípios vagos e à fraseologia confusa com que a efervescência revolucionária teve começo.

A continuar entre nós esta atmosfera de confusão e demagogia, não poderia dar-se o mesmo?

Esse processo em que está engajada certa parte de nossa opinião burguesa, criou uma atmosfera propícia para coligar em uma frente única contra a presente estrutura rural elementos de influência que não percebem até que ponto são confusos e vagos os objetivos da campanha que apóiam.

Iniciada esta ofensiva, quem a deterá?

A fase vivaz da campanha agro-reformista

Delineava-se assim a situação, a um tempo sem gravidade em seus efeitos imediatos e gravíssima se considerada em suas perspectivas mais remotas, quando um fato veio introduzir nela elementos novos de grande importância. Foi a apresentação à assembléia legislativa do Estado de São Paulo de um projeto governamental chamado de Revisão Agrária.

Esse projeto, que, menos radical do que alguns outros, tende a introduzir na estrutura rural de São Paulo alterações genuinamente agro-reformistas, chamou vivamente a atenção do País inteiro, quer pela importância do Estado em que era proposto, quer pelo prestígio pessoal do Governador Carvalho Pinto, como professor, como estadista e como técnico em assuntos administrativos e econômicos. Assim, alcançou inesperada atualidade o agro-reformismo e se reacendeu o zelo dos pequenos grupos de "inteliguentsia" reformistas e de seus consectários, um tanto arrefecido pelas delongas anteriores.

Tudo, em matéria de reforma agrária, começou a andar com mais vida e rapidez.

Entretanto, o projeto de Revisão Agrária teve, em outro sentido, um efeito muito mais importante. Até aqui se falou neste artigo em "inteliguentsia", em esquerdismo burguês e em massas. Não se falou do fazendeiro.

Ora, se no centro da controvérsia a respeito do reformismo agrário estão os direitos do trabalhador rural e os direitos, muito mais altos, do bem comum, também estão os do proprietário rural.

Classe marcadamente tradicional e muito nova

Formam os fazendeiros e criadores do Brasil uma classe de uma fisionomia muito particular, a um tempo marcadamente tradicional e muito nova. Nela se encontram em grande número os descendentes dos velhos pioneiros do povoamento, que foram dando origem, em séculos diversos, às regiões e municípios do País.

Sempre que uma família desempenha um papel histórico, perpetua-se em gerações numerosas, dignas e ativas, e dispõe de base econômica estável e suficiente, assume aspectos de aristocrática. Pois o próprio da aristocracia é basear-se em prestígio, mais do que em poder ou em dinheiro: este e aquele são a moldura do quadro, e não o próprio quadro. E o prestígio aristocrático – não falamos das deformações da aristocracia, mas da aristocracia em si mesma – vem da auréola moral que os grandes serviços prestados ao bem comum conferem, da fixação desta auréola em uma estirpe que a perpetua por seus feitos ou pelo menos por sua dignidade, e daquela respeitabilidade indefinível que o tempo empresta às coisas que se conservam vivas e nobres ao longo das décadas e das centúrias.

Neste sentido, temos uma aristocracia rural, constituída, importa notar, não só dos fazendeiros de grande projeção social nas captais dos Estados, mas também dos que, mais ligados em geral à terra, desempenham o papel – do qual seria estúpido sorrir com desdém – de notabilidades de âmbito regional ou municipal, ou mais simplesmente de notabilidades da roça.

A este elemento básico se foram somando paulatinamente os descendentes de brasileiros ou imigrantes enriquecidos, antigos trabalhadores rurais que, pelo seu esforço, pela sua economia, pela maleabilidade de nossa estrutura agro-social, vão continuamente fornecendo novos contingentes à classe dos agricultores.

"Parvenus"? "Nouveaux-riches"? Pelo menos em via de regra, não aplicaríamos a estes adventícios estas designações carregadas de subentendidos pejorativos. Gente que sobe de classe, que procura fixar-se na terra e fundar estirpe, que se mostra desejosa de elevar-se culturalmente ao nível de nossos velhos e excelentes padrões tradicionais, não merece ser comparada ao "parvenu" de opereta. Sangue novo para ampliar e perpetuar uma grande e nobre categoria social, eis como esses elementos devem ser vistos.

Que dirá a história, desta classe como ela existe em 1960?

Parece-nos que – salvas as exceções – lhe reconhecerá alguns defeitos e muitas qualidades. Entre aqueles, se deve notar em muitos casos o desinteresse pela formação religiosa dos colonos, um alheamento da vida da fazenda em razão de permanências longas e por vezes desnecessárias na cidade, e o pagamento de salários realmente insuficientes. Mas a história imparcial se recusará a generalizar estes defeitos para toda a classe, e afirmará as qualidades relevantes de operosidade, seriedade e dignidade que esta possui.

É o que talvez explique o fato de ter essa classe, ainda hoje, um prestígio imenso.

Surge uma brilhante reação anti-reformista

Esse prestígio, entretanto, estava, em face da agitação agro-reformista, como um imenso potencial dormiente. Não se acreditava em geral, entre os agricultores, na autenticidade de um perigo para seus direitos tão naturais, tão líquidos, tão antigos. Era para o agro-reformismo um precioso fator de êxito, que sua principal vítima estivesse em estado de letargo.

Neste sentido, o projeto do Governador paulista prestou, a nosso ver, um desserviço à causa que pretendia favorecer. Ele deu figura e forma de perigo concreto e iminente à perspectiva de alterações de sabor igualitário em nossa estrutura rural. E com a mobilização geral do reformismo que a iniciativa determinou em todo o Brasil, com a imensa propaganda que assegurou a esta foros de um acontecimento que realmente retumbou do Norte ao Sul, e do litoral ao fundo do sertão, o projeto Carvalho Pinto suscitou uma reação que se traduziu em vários artigos de imprensa, em geral excelentes, de agricultores, ou órgãos da classe, profundamente surpresos e indignados.

Seria excessivo, aliás, afirmar que a reação anti-reformista só se delineou nas fileiras dos agricultores. Vários dos artigos brilhantes e clarividentes que foram publicados na imprensa de mais de uma cidade brasileira tinham autores que não são fazendeiros, e só se levantaram contra essa reforma agrária em nome dos superiores interesses nacionais e dos princípios básicos de nossa ordem jurídica.

Resumindo os traços da atual conjuntura

Resumindo os principais traços da presente conjuntura, poder-se-ia concatená-los assim:

  1. fermentação reformista em pequenos núcleos de "inteliguentsia" socialista ou comunista em todos os centros grandes do País;

  2. uma tal ou qual receptividade para o agro-reformismo, em certos elementos burgueses preparados remotamente, para tal, pelos princípios de 1789 e, mais proximamente, pela infiltração de tendências "socialistas cristãs";

  3. simpatia para com a campanha agro-reformista, por parte de elementos dignos e bons, mas que nela vêem apenas um meio para obter a justa melhora da situação dos trabalhadores, sem atentar contra a instituição da propriedade rural;

  4. em torno do assunto, um clima de agitação demagógica e de confusão de idéias e palavras, típico da fase inicial dos grandes processos revolucionários;

  5. como sempre acontece em situações tais, o campo se mantém inerte por mais tempo que as cidades; mas, de outro lado, as cidades agem como imensas chaminés deitando fagulhas para todos os lados, e, reconhecendo-se que nesta matéria só em nome da Fé se move o povo brasileiro, o falseamento da Religião para efeitos de programa reformista já é um plano assente, e em início de execução;

  6. a aceleração do processo reformista em virtude do projeto do Prof. Carvalho Pinto, acendeu no campo certa reação anti-reformista, e deu ao problema – que até aqui vinha despertando um interesse algum tanto platônico e acadêmico – uma atualidade palpitante.

  7. Perspectivas em uma situação normal

Quais as perspectivas de evolução dos fatos? Normalmente, a nosso ver, depois de rios de tinta, toneladas de papel, e grandes torneios de oratória nas Casas Legislativas e na televisão, ambas as partes, exaustas, chegariam a um meio termo que equivaleria a deixar de pé a árvore frondosa da propriedade rural grande e média, dando-lhe, embora, alguns rudes golpes de machado nas raízes. Viria depois um período de modorra ao qual se seguiria novo surto agro-reformista, com novas polêmicas, e a aceitação de novo "meio termo" mais à esquerda que o primeiro. E novos golpes de machado na raiz da árvore. Assim, haveria afinal um momento em que o "meio termo", à força de deslizar para a esquerda, teria chegado ao socialismo georgista integral e o machado teria derrubado a árvore. A propriedade rural teria deixado de existir.

É assim que há quatrocentos anos o igualitarismo de tendências anárquicas e substrato neopagão vem progredindo no Ocidente cristão.

Para quem não fosse apático e indiferente ante os progressos da Revolução ( entendido o termo no sentido especial definido no ensaio "Revolução e Contra-Revolução" ) havia, pois, algo de urgente a fazer. Pois processos desta natureza são como os incêndios e as epidemias, só podem ser obstados facilmente em seu início. E se se delonga uma intervenção com receio de alguns inconvenientes hoje, pode-se estar certo de que estes inconvenientes serão muito maiores se se intervier amanhã.

E se a situação não for normal...

Acontece, porém, que em uma época tão conturbada, com os russos e os chineses apostados em conquistar a América Latina, na imensa desordem de idéias, de costumes, de ritmo de vida de nossos dias, haveria a maior ingenuidade em considerar apenas as hipóteses normais. Quanta gente, em Cuba, apoiou Fidel Castro precisamente por não tomar em consideração esta verdade, e hoje chora no cárcere ou no exílio sua simplicidade?

Um golpe de surpresa, "teledirigido" de Pequim, de Moscou, ou mesmo de Havana, pode colocar-nos, embora talvez transitoriamente, em uma situação de fato com aspectos inteiramente imprevisíveis. E há certos transitórios que são como a ação do fogo. Pode-se paralisá-la. Não porém restituir à sua forma originária o que as chamas reduziram a cinzas.

Os países grandes, novos, com populações excessivamente concentradas em cidades imensas, ou disseminadas por extensões rurais como que incomensuráveis, são o teatro ideal para os golpes de surpresa. E os brasileiros sentem – melhor certamente do que nossos leitores do exterior – quanto um golpe de surpresa pode no Brasil transformar inopinadamente as coisas.

Corre como verdadeira a célebre afirmação de Aristides Lobo, de que o Brasil "assistiu bestificado à proclamação da República". A palavra "bestificado" é dura e vulgar. Pareceria até inspirada no vocabulário botequineiro de Kruchev, ou no linguajar injurioso de Fidel. Mas, feita esta ressalva, perguntamos: deu-se essa "bestificação" só a 15 de novembro de 1889? Deu-se ela só no Brasil? Quem ousaria afirmar? Estaremos mais imunes nos dias de hoje do que em outros dias, desse curioso e deplorável fenômeno de alma, que é a "bestificação" das multidões e das elites?

Qual o brasileiro que quereria carregar, perante Deus e perante a história, a terrível responsabilidade de dizer "sim" e ficar com os braços cruzados?

Como desviar dessas perspectivas o País?

Algumas coisas importa sobretudo fazer:

  1. isolar as minorias dominadas consciente e explicitamente pelo socialismo ou pelo comunismo, das pessoas, grupos ou correntes que, em matéria de reformismo agrário, lhes servem de instrumentos em geral inconscientes;

  2. para isto, denunciar o palavreado capcioso, os slogans ardilosos, os princípios vagos, as aspirações confusas que tais minorias procuram excitar e depois dirigir para seus fins;

  3. mais especialmente, obstar a toda a forma de exploração da Religião para fins de luta de classes e revolução agrária;

  4. evitar assim que o reformismo agrário acabe por acender um verdadeiro incêndio nas massas rurais;

  5. aproveitar a oportunidade para pôr de manifesto o verdadeiro aspecto religioso e moral de diversos problemas do campo, convidando grandes e pequenos, patrões e trabalhadores, governantes e governados, a uma séria meditação sobre suas respectivas responsabilidades na solução dos problemas existentes;

  6. num clima cristão de justiça, caridade e paz entre as classes distintas mas harmônicas, trabalhar para a melhoria das condições do operário rural, do proprietário, e da agricultura em geral.

Estas coisas não bastam para resolver tudo. Mas sem elas nada se resolverá.

Foram estes a ação e os objetivos que os autores de "Reforma Agrária-Questão de Consciência", movidos pelo amor ao Brasil e à Religião, quiseram apontar aos seus leitores.

"Reforma Agrária" e reforma agrária

Para este efeito, o livro desfaz a confusão em que o assunto vem sendo debatido, estabelecendo uma distinção entre reforma agrária ( com iniciais minúsculas e sem aspas ) e "Reforma Agrária" ( com iniciais maiúsculas e com aspas ), distinção que daqui por diante se fará neste artigo.

A primeira é sadia e cristã. A segunda, socialista e anticristã.

Em um sentido legítimo, e até louvável, da expressão, deve-se entender por reforma agrária um conjunto de medidas destinadas a melhorar nossa vida rural, quer situando de modo mais justo a agricultura no conjunto de nossas atividades econômicas, quer aumentando a produção agropecuária, quer exercendo um sério apostolado sobre os fazendeiros, quer enfim melhorando com toda a urgência possível a situação religiosa, moral, intelectual e material do trabalhador do campo.

Superstição socialista a ser evitada

Tal reforma agrária envolve medidas de iniciativa dos Poderes Públicos, da igreja, dos órgãos de classe, e por fim dos próprios fazendeiros e colonos individualmente considerados. Os autores do livro não participam da superstição socialista de que a intervenção dos Poderes Públicos basta para resolver tudo. As grandes reformas econômicas e sociais se fazem pela conjugação de esforços da Igreja, do Estado, dos grupos intermediários, entre os quais cabe ressaltar a família, e dos próprios indivíduos. Essa conjugação, que deve abranger todas as etapas da reforma, desde a detectação e exata conceituação dos problemas até o estudo das soluções e a execução das medidas adequadas, não se deve fazer à maneira mecânica, mas orgânica.

Mecânico seria, por exemplo, um modo de proceder mais ou menos assim:

  1. reúnem-se os técnicos, montam uma comissão com escritórios e funcionários, fazem um inquérito, e elaboram um plano;

  2. o plano é convertido em projeto de lei, que é aprovado pelo Legislativo;

  3. o Executivo promulga a lei, cria um conjunto de repartições encarregadas de aplicá-la, e as repartições põem mãos à obra;

  4. a polícia elimina a oposição dos recalcitrantes.

Tudo isto seria agir à maneira socialista, com uma confiança inteira e cândida na técnica e na burocracia.

Talvez possa montar-se assim uma fábrica ou construir uma ponte. Mas não é assim que se dirige essa imensa entidade coletiva, viva e complexa, que é um país.

Sem subestimar a cooperação indispensável e digna de todo o respeito, do técnico ou do burocrata, é preciso dizer que por mais capaz e eficiente que sejam um e outro, há sempre uma margem de realidade que lhes escapa. A experiência quotidiana, concreta, prosaica, dos que estão no metier, agricultores, prefeitos e vereadores de roça ( em geral pouco técnicos, pouco burocratas, mas homens práticos ), Vigários de roça – data venia e com sincera admiração, acrescentaríamos Bispos de roça – administradores de fazenda e trabalhadores braçais, dota-os de uma sensibilidade particular para discernir os aspectos vivos e palpitantes dos problemas, e encontrar fórmulas concretas cheias de tato e sabedoria a fim de transpor em termos de realidade prática as melhores soluções teóricas.

Isto é tanto mais verdadeiro, quanto os assuntos agropecuários são particularmente sujeitos à influência dos fatores locais. E num país tão vasto e tão diferenciado como o nosso, as soluções, ou são muito regionais, ou redundam em uma calamidade. Ora, como conhecer em sua realidade local os problemas, sem a consulta aos homens do lugar?

E não se trata só de conselho, mas de cooperação. Pois quem conhece um pouco de sociologia boa, ou tem um pouco de experiência do Brasil autêntico, sabe que não há ilusão mais errada do que pensar que só por meio de reuniões pomposas nas grandes cidades, de campanhas de imprensa vistosas, de leis e de repartições se pode resolver em profundidade algo de acertado e durável em matéria rural.

Os problemas da roça não devem ser resolvidos principalmente pelas cidades, mas pela roça.

Diferença de métodos entre a reforma agrária e a "Reforma Agrária"

Aqui se delineia uma diferença entre o método preconizado em "Reforma Agrária – Questão de Consciência", e do reformismo agropecuário de sentido socialista.

Aquele quer proceder por etapas, por meio de medidas diferenciadas segundo as regiões de cada Estado e judiciosamente aplicadas depois de um estudo em que cooperem todas as forças vivas da Nação.

Este quer impor ao Brasil inteiro, ou pelo menos a todo um Estado, açodadamente, segundo estudos feitos longe da roça, teóricos e uniformes, uma solução também ela teórica e uniforme, aplicada pela burocracia, apoiada, quando necessário, pela polícia.

Morosidade excessiva da reforma agrária?

Mas, dir-se-á, uma política agrária assim concebida, a que resultados conduziria? Até convocar todas as pessoas que importaria ouvir, até reuni-las, até coordenar seus alvitres, até executá-los, iria uma dezena de anos ou mais. Não é isto adiar para as calendas gregas qualquer solução?

De nenhum modo.

Uma reforma agrária bem orientada poderia compreender, entre outras, as medidas seguintes:

  1. fixação, por lei, das condições muito excepcionais em que a desapropriação de imóveis rurais, mediante justa indenização, pode ser feita;

  2. crédito fácil para os proprietários de grandes áreas que as desejem colonizar; crédito fácil também para financiamento da compra de glebas;

  3. crédito fácil para o equipamento das propriedades;

  4. assistência técnica aos agricultores; fomento da agricultura, sem dirigismo;

  5. concessão de terras devolutas aos pequenos agricultores, sempre que por esse meio possam elas ser convenientemente exploradas;

  6. fomento de formas de contrato de trabalho que possibilitem um aproveitamento intenso da terra e ao mesmo tempo beneficiem o assalariado, permitindo-lhe uma situação econômica mais favorável e a constituição paulatina de um patrimônio; por exemplo: a parceria, as empreitadas;

  7. crédito especial para a melhoria das moradias dos colonos e medidas congêneres ( cf. D. Geraldo de Proença Sigaud, S.V.D., "Reforma Agrária " – in "Digesto Econômico", São Paulo, junho de 1953 ).

Ora, se é verdade que nem todas estas medidas convêm igualmente a todo o País, não é difícil ir pondo em prática umas ou outras aqui e acolá. À proporção que isto se fizer, irão sendo realizadas experiências preciosas, e irão sendo abertas vias para a adoção de outras medidas. Assim, pode-se começar quanto antes, sem delongas inúteis. Mas sem correr nem voar por vias onde, para o interesse público, qualquer aventura pode ser uma imprudência e até um crime.

Popularidade da reforma agrária sadia e cristã

Pode e deve haver, pois, uma reforma agrária sadia e conforme ao bom espírito, e esta ninguém nas verdadeiras elites do Brasil a vê com maus olhos.

É o que explica que o público, sem distinção de correntes ou partidos, tenha recebido com simpatia os apelos de mais de um Bispo brasileiro, feitos inteiramente à margem da agitação política agro-reformista, em prol de uma reforma agrária sadia.

Porém, a par da reforma agrária proposta segundo estes moldes ou outros análogos, mas sempre dentro das máximas da doutrina católica, há também a outra, concebida conforma a doutrina socialista. Esta, como dissemos, o livro a designa por "Reforma Agrária" ( maiúsculas, aspas ). Melhor se compreende o que ela tem de essencial comparando seus objetivos com os da primeira.

Oposição de espírito entre a reforma agrária e a "Reforma Agrária"

O confronto entre a reforma agrária como há pouco a descrevemos, e a "Reforma Agrária" de inspiração socialista ou comunista, deixa ver, não só a diferença de métodos há pouco apontada, mas uma verdadeira oposição de princípios e de objetivos.

Com efeito, a reforma agrária se estrutura com a idéia de que a sociedade pode e deve ser formada por classes desiguais, e de que essas classes devem basear-se no princípio da hereditariedade das posições sociais e econômicas, desde que estejam abertas a um processo de renovação paulatina consistente em assimilar os valores novos que eventualmente se apresentem, e eliminar os que se desgastem.

Como se vê, tal concepção admite como princípio a legitimidade da família e da propriedade privada.

Dentro desta concepção, é justo e desejável que haja imóveis rurais grandes, médios e pequenos.

A reforma agrária não tem por objetivo igualá-los, mas apenas assegurar entre eles uma justa e harmônica proporcionalidade, garantir o acesso de larga medida de trabalhadores à propriedade do solo, e alcançar, para os que não são proprietários, salário justo, bastante para proporcionar, para cada um e para os seus, condições de existência suficientes e dignas.

Para chegar a este objetivo, não há que combater a propriedade e a família, mas pelo contrário mantê-las, evitando, pela ação da lei e dos costumes, alguns excessos: como quando o espírito de família em alguns grupos sociais visa a transformar as classes sociais em castas, ou quando o senso de propriedade de alguns se hipertrofia a ponto de recusar qualquer limitação ou sacrifício em favor dos direitos dos trabalhadores e do bem comum.

A concepção socialista, pelo contrário, imbuída dos princípios igualitários que a Revolução Francesa proclamou na esfera política, e que os continuadores dela aplicaram no século XIX à economia, é fundamentalmente favorável a uma sociedade sem classes, à abolição da propriedade privada e da família.

Daí desejar a igualdade completa entre os imóveis rurais. E, como considera injusta a propriedade privada, em rigor de lógica aprovaria a simples partilha das terras por meio de uma ação confiscatória do Estado, que em seguida as redistribuiria – a título de empréstimo e não de venda ou doação, já se vê – aos trabalhadores rurais. Transformado o solo brasileiro numa via láctea de pequenas "propriedades", estas incapazes de se manterem por si, cairiam, é claro, sob o jugo do dirigismo estatal.

Uma "Reforma Agrária" dessa natureza constitui uma evidente ameaça também para a indústria e o comércio. Pois se hoje o Estado nivela as condições de vida no campo sob a alegação de que todos devem ser iguais, amanhã, e sob a mesma alegação, confiscará os patrimônios urbanos de qualquer natureza, máxime os industriais e comerciais.

Formas de confisco parciais e veladas

Mas a maior parte das pessoas repugna as idéias muito radicais. E por isto o socialismo cru e aberto tem poucos adeptos. A insignificância eleitoral do Partido Socialista entre nós bem o prova.

Muita gente, sem o confessar aos outros, nem quiçá a si mesma, tende ao nivelamento das propriedades rurais, não com medidas diretas, mas com providências graduais ( deixar subsistir a propriedade média, ou a sub-média, por exemplo ) e não com argumentos socialistas, mas com alegações de aparência cristã: o Evangelho recomenda a igualdade, as desigualdades ofendem a caridade, etc. Por fim, esse reformismo mitigado visa a alcançar seus objetivos, não através de um confisco declarado, mas por medidas confiscatórias mais ou menos veladas ( indenização ao expropriado, feita por meio de títulos de valor real inferior ao valor nominal, ou calculada segundo o chamado "custo histórico", tributação progressiva que obriga à divisão das propriedades que excedem a certo tamanho, etc. ).

"Reforma Agrária – Questão de Consciência": aspectos religiosos, morais e sociais

O confronto entre os princípios, os métodos e os objetivos da reforma agrária e os da "Reforma Agrária" levanta muitas questões para as pessoas desejosas de conhecerem sobre o assunto o pensamento da Igreja, isto é, para a grande maioria dos brasileiros. Impossível seria mostrar aqui como o livro "Reforma Agrária – Questão de Consciência" as resolve. Limitar-nos-emos a algumas rápidas indicações, próprias a servirem de convite para a leitura da obra.

Sua Parte I auxilia o leitor católico a uma exata tomada de posição em face destes problemas. Mas o que nos parece sua verdadeira originalidade consiste em se ocupar, não tanto do comunismo ou do socialismo, mas dessas formulações "cristãs" ou "moderadas" de projetos, opiniões ou pontos de vista favoráveis à "Reforma Agrária", que constituem um autêntico subproduto da influência socialista entre nós. Na dissertação da Parte I se dá a origem histórica dessa influência desde a penetração dos princípios de 1789 no Brasil colonial, se narra a influência que esses princípios têm na atual agitação agro-reformista, e se descrevem os métodos demagógicos peculiares a essa campanha.

Em seguida, vem um conjunto de proposições. Com um método de exposição cujo êxito já foi demonstrado no "Catecismo" que integra a "Carta Pastoral sobre Problemas do Apostolado Moderno" do Exmo. Sr. Bispo de Campos, o livro "Reforma Agrária – Questão de Consciência" formula as principais alegações que, segundo o espírito cripto-socialista do agro-reformismo, se costumam enunciar, e ao lado de cada qual registra uma proposição sobre a mesma matéria, segundo a doutrina católica. Ao pé de ambas as proposições figura um comentário, e depois, quase sempre, se seguem textos pontifícios. Ao todo, são apresentados mais de duzentos textos de Papas.

A Parte I formula por fim o problema que é de máximo interesse para os católicos: a "Reforma Agrária" é compatível com a doutrina da Igreja?

Lembrando sempre a distinção entre reforma agrária e "Reforma Agrária", os autores mostram que a primeira é lícita e desejável, e a segunda é anticristã. Pelo que, conforme esclarecem, constituiria pecado favorecer esta última, convertê-la em lei ou aplicá-la. E em princípio as pessoas que recebessem terras ilegitimamente tiradas pelo Estado a terceiros seriam obrigadas a restituí-las, sob pena de não poderem receber os Sacramentos.

Pois a "Reforma Agrária" é um roubo. E o detentor de bens roubados deve devolvê-los.

Haveria que considerar uma eventualidade, esclarece a obra, em que se poderia conceber um legítimo confisco de terras. Seria o caso em que a estrutura rural de um país fosse tão defeituosa, que não comportasse uma remuneração justa, suficiente e condigna para o trabalhador do campo e sua família, ou ameaçasse gravemente o bem comum. Uma vez que houvesse a fundada certeza de que uma redistribuição de terras remediaria a situação, e de que nenhum outro remédio haveria para ela, então seria lícito ao Estado proceder a essa redistribuição, indenizando os proprietários apenas na medida do que pudesse. Dá-se este caso no Brasil?

Aspectos econômicos do livro

Como se vê, surge aqui, em conexão com os problemas de doutrina já analisados, uma questão de fato. Esta última se tem ventilado de um ou de outro modo ao longo da polêmica travada a propósito da "Reforma Agrária". Os propugnadores desta medida costumam afirmar:

  1. que a produção agropecuária nacional não acompanha nosso desenvolvimento industrial;

  2. que, em conseqüência, a lavoura e a criação atuam como fatores de retardamento no conjunto de nossas atividades econômicas;

  3. que este fato se deve à presente estrutura rural brasileira: só a pequena propriedade obtém o pleno rendimento da terra; e, pois, somente pela fragmentação das propriedades grandes e médias se chegará a colocar a produção agropecuária à altura da produção industrial.

A "Reforma Agrária" corresponderia, pois, a um imperativo do progresso nacional.

A esta argumentação retruca da seguinte maneira, e com base em fartíssimo material informativo, a Parte II do livro "Reforma Agrária – Questão de Consciência":

  1. As afirmações agro-reformistas se baseiam num preconceito inteiramente errôneo, a saber, que só a pequena propriedade tira da terra todo o proveito. É do conhecimento geral que a maior ou menos extensão dos imóveis rurais deve variar em função da densidade da população, da natureza da cultura ou da criação, e da riqueza da terra. Condenar por intrinsecamente oposta aos interesses da produção a propriedade grande, ou a média, é tão perfeitamente absurdo quanto condenar a propriedade pequena.

  2. Uma constante da história agropecuária brasileira consiste em que os imóveis rurais se vão fragmentando orgânica e espontaneamente, sob a pressão dos fatores acima apontados, de sorte que algumas grandes fazendas sobrevivem, mas outras se transformam em médias e pequenas. E esse processo é, em si mesmo, muito mais vantajoso para o conjunto das atividades econômicas e sociais do que uma "Reforma Agrária" imposta pelo Estado.

  3. Há regiões onde esse processo está retardado? Seria preciso demonstrá-lo por meio de dados concretos. Esse retardamento acarreta prejuízos tão graves que justificariam uma intervenção estatal? É outro ponto que reclamaria estudos especiais. Não haveria algum modo de aliviar a situação sem recorrer às medidas drásticas reclamadas pelo agro-reformismo? Mais um ponto a ser estudado. Ora, em face destas perguntas criteriosas, concretas, prudentes, o agro-reformismo, não tendo respostas, se limita à afirmação gratuita de que a partilha de todas as terras resolveria tudo.

  4. Acresce que, se se trata de atingir os grandes latifundiários de terras inaproveitadas, o primeiro alvo do agro-reformismo deveria ser o próprio Poder Público. Como se sabe, a União, os Estados e os Municípios são de longe os maiores latifundiários do País, pois possuíam em 1950 seis milhões de quilômetros quadrados de terras não apropriadas, das quais, como é notório, a grande maioria continua sem aproveitamento. Como seria lícito ao Poder Público confiscar clara ou veladamente terras alheias, quando dispõe de zonas imensas, inaproveitadas e entretanto aproveitáveis, como, por exemplo, as que se estendem ao longo da nova rodovia Belém-Brasília?

  5. Ademais, se a produção agropecuária não acompanha o progresso industrial, ela continua entretanto a progredir em proporção do aumento demográfico. Sua função de nutrir o povo vem sendo realizada.

  6. Não é de se atribuir à estrutura rural o fato de que, sendo ponderável o crescimento da produção agropecuária, o da produção industrial seja muito maior. É que toda a política econômica do Brasil nas últimas décadas vem sendo orientada para a industrialização. Se igual apoio fosse dado às atividades agropecuárias, não há dúvida de que elas também apresentariam índices brilhantes.

  7. Ora, pelo contrário, a agricultura e a criação vêm sendo, nos últimos decênios, objeto da ação funesta de numerosos fatores de desestímulo: política incongruente e desalentadora dos órgãos controladores de preços, falta de estradas, de transportes, de silos, ação inescrupulosa de açambarcadores, etc. Raciocinar sobre nossa produção agropecuária como se estes fatores não existissem, quando são notórios e muito graves, constitui uma das mais estranhas lacunas da argumentação reformista.

  8. Se, pelo menos, os Poderes Públicos gastassem em favor da lavoura as somas imensas que vêm sendo consumidas por numerosas empresas deficitárias dirigidas pelo Estado ( E.F. Central do Brasil, Lloyd Brasileiro, etc. )! Entretanto, esses déficits fabulosos vão, ao longo dos anos, gravando os orçamentos, sem proveito para o País, e pelo contrário, exigindo impostos que por sua vez pesam sobre o agricultor.

  9. Por fim, cumpre consignar que o próprio surto industrial do Brasil se deve, de maneira muito considerável, à contribuição da agricultura que, pela exportação de seus produtos, e pelo assim chamado confisco cambial, fornece os meios indispensáveis para as importações necessárias à indústria. Assim, é de se reconhecer que a lavoura brasileira, com sacrifício para si mesma, exerce largamente uma função social, e que a separação completa e, melhor diríamos, a antítese entre os índices do progresso industrial e do progresso agrícola, na qual o agro-reformismo baseia parte de sua argumentação, não corresponde à realidade profunda das interações existentes entre a agricultura, a pecuária e a indústria na vida econômica de nosso País.

  10. Mas, dirá talvez alguém, são seguras as estatísticas em que o livro "Reforma Agrária – Questão de Consciência" apóia tantas asserções? A resposta não é difícil. São as estatísticas oficiais. E no Brasil não dispomos de outras. Na proporção em que se lhes dá crédito – e o merecem em geral – elas conduzem à condenação da "Reforma Agrária". Para efeito de argumentação, admitamos, porém, que fossem postas em dúvida. Na medida em que se as quisesse impugnar, pergunta-se: que dados haveria então para provar a necessidade da "Reforma Agrária"? Em que nação civilizada se admitiu alguma vez como legítimo destruir direitos adquiridos, líquidos e certos como os dos proprietários grandes e médios, com base em fatos não comprovados? Ou expor um povo à aventura de uma imensa reforma sem dados que provassem ser esta necessária?

Não existem, pois, no Brasil argumentos de fato que provem ser justa a "Reforma Agrária". Sem apoio qualquer na consciência cristã, ela não pode deixar de ser repudiada pelos católicos.

Conseqüências religiosas da "Reforma Agrária"

Imaginem-se, à vista disto, as conseqüências religiosas da imensa e tremenda questão de consciência que a implantação da "Reforma Agrária" acarretaria entre nós.

Toda lei injusta é um convite ao pecado. A aplicação de uma lei tão fundamentalmente anticatólica a um País católico seria um convite ao pecado, dirigido à imensa massa de nossos trabalhadores rurais. Em outros termos, essa lei traria consigo o risco de um divórcio perigoso entre o Estado e nossa tradição cristã, ou entre a Igreja e as camadas profundas do povo brasileiro.

Do ponto de vista patriótico, não conviria antes silenciar sobre este aspecto do agro-reformismo? Vale a pena agravar o conflito social que se aproxima, conferindo-lhe um caráter também religioso, o que só o poderá exacerbar?

Não se trata de conferir ao conflito este caráter, mas de reconhecer que ele o tem. Apelar para a fibra religiosa de nosso povo para evitar que a demagogia o atire à tenebrosa aventura da "Reforma Agrária", é prestar ao País o maior serviço.

Num plano mais profundo, cumpre ponderar que a "Reforma Agrária" constituiria, se aprovada, um imenso pecado coletivo. Ora, os pecados desta natureza, isto é, os cometidos por países e não por indivíduos, têm como conseqüência, segundo a acertadíssima ponderação de Santo Agostinho, que são castigados nesta vida. Pois as nações, ao contrário dos indivíduos, não têm senão uma existência terrena, e nesta terra devem ser recompensadas ou punidas.

Desviar do Brasil a "Reforma Agrária" é, pois, desviar de seus destinos terrenos os tremendos efeitos da cólera de Deus.

Mas, dir-se-á, não convém que a antítese do pensamento católico com a "Reforma Agrária" seja posta em evidência com tanta clareza, numa situação que pode tornar-se perigosa.

Importa isto em afirmar o princípio de que, quando o risco é grave, a consciência católica deve calar-se. Quem ousaria sustentar, sem enrubescer, princípio tão dissonante da doutrina e do exemplo de Jesus Cristo, Nosso Senhor?

O que resta a fazer, pois, nesta conjuntura delicada, é trabalhar pela manutenção do direito de propriedade no campo, por amor aos princípios cristão e aos mais altos interesses espirituais, sociais e econômicos do Brasil, agindo embora, com prudência mas sem delongas, para que se melhore a situação do trabalhador rural, do agropecuarista e de toda a lavoura em geral.

O livro "Reforma Agrária – Questão de Consciência" propõe-se a contribuir para a realização desses elevados fins.