Plinio Corrêa de Oliveira

 

Um grande exemplo de abnegação e combatividade

 

 

 

 

 

 

 

 

Catolicismo Nº 116, Agosto de 1960

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Dr. Antonio Ablas Filho (* 13-11-1911 + 25-6-1960)

Os leitores de "Catolicismo" conheciam todos, de nome e pela reputação de seus altos predicados, o Prof. Antonio Ablas Filho, agente desta folha para o Sul do País. Muitos tiveram, além disto, ocasião de conhecê-lo pessoalmente. Uns e outros sentirão um verdadeiro choque se até o momento da leitura destas linhas não tiverem sabido que Deus foi servido chamar a melhor vida aquele grande lutador do bom combate. Em junho último, uma asma crônica de que sofria há alguns anos se complicou inesperadamente. E no dia 25 do mesmo mês, ao cabo de uma crise aguda que durou cerca de 48 horas, ele faleceu na Santa Casa da cidade paulista de Santos, confortado por todos os Sacramentos.

Quando os mártires tombavam na arena, os fiéis procuravam embeber tecidos em seu sangue, e recolher com religiosa veneração os seus corpos. A morte ceifava as fileiras dos soldados da causa de Deus. Contudo, no Céu crescia o número dos que rezavam pela Igreja. E na terra o exemplo deles convidava à luta, ao mesmo tempo que suas relíquias frutificavam em graças.

Não estamos no tempo das perseguições cruentas, mas a luta é uma contingência inerente à vida de todo filho autêntico da Igreja militante: "Os que querem viver piedosamente em Jesus Cristo sofrem perseguição" (2 Tim. 3, 12). Quando tomba na luta um "miles Christi", qualquer que ele seja, grande ou pequeno, clérigo ou leigo, desconhecido ou ilustre, cumpre recolher as relíquias preciosas que ele deixa: suas palavras, seus exemplos, a recordação de sua personalidade.

Para estas "relíquias" legadas por um batalhador de "Catolicismo" as páginas de nosso jornal bem podem servir de relicário.

O Grande exemplo do desapego

Toda Santos sabia – e a notícia disto se difundira na Capital paulista e em outras cidades – que o Prof. Ablas era um clínico exímio, um cirurgião de valor incontestado. Conhecedor lúcido e sempre atualizado do que a medicina apresenta de mais importante e novo, com um tirocínio profissional de quase 25 anos, poder-se-ia fazer um florilégio das curas notáveis que conseguiu. Por isto, era ele uma das principais figuras do meio médico de Santos, membro "fellow" do Colégio Internacional de Cirurgiões, diretor clínico e cirurgião-chefe de vários sindicatos de trabalhadores e instituições de previdência, bem como autor de teses de valor no domínio da medicina.

Desde 1954 lecionou Medicina Legal na Faculdade Católica de Direito de Santos, de cujo Conselho Técnico-Administrativo era membro. Era também professor das duas Escolas de Enfermagem locais. Os seus alunos lhe admiravam as aulas substanciosas, claras e, contudo, despretensiosas. Em uma palavra, Antonio Ablas Filho alcançara inteiro sucesso em sua profissão.

A Providência lhe destinara ainda outros galardões.

Nascera de família abastada e distinta, e contraíra casamento com uma jovem que já gozava então – e sempre mais o veio merecendo – de justo destaque nos meios católicos, por seus predicados morais e intelectuais; pertencia ela também a uma família de relevo, tendo sido seu pai o ilustre orador e literato católico José de Freitas Guimarães, membro fundador da Academia Paulista de Letras.

Este consórcio deu origem a um lar feliz e edificante.

Ablas era, pois, e sob mais de um aspecto, um desses homens bem sucedidos, que o mundo inveja. Poderia ter uma vida fácil, larga, feliz. Alcançara honestamente o que tantas pessoas perdem a alma para obter. Deus o suscitara, porém, para dar um grande exemplo. O de afirmar pela palavra e pela ação a superioridade dos bens espirituais, e de consagrar a estes o melhor de suas atividades. Num século dedicado ao ouro, aos prazeres e ao exibicionismo demagógico, toda a sua existência foi uma pregação de quão pouco tudo isto vale aos olhos da fé.

Padrão de varonilidade, pureza e retidão

Quando as civilizações estão em ascensão, os homens procuram ser graves, fortes e profundos. Não temem o envelhecimento, porque não vêem nele um caminhar para os abismos da decrepitude, mas sim para os píncaros da sabedoria e, mais do que isto, para as glórias do Céu. Quando as civilizações decaem, os homens procuram, pelo contrário, aparentar uma jovialidade de rapazolas, uma despreocupação de crianções, e a afabilidade invertebrada característica das almas sem princípios e imaturas. A velhice, eles a temem mais do que tudo, porque a terão inglória, marcada pela decrepitude e pelo isolamento, e entristecida pelas sombras da morte além da qual, imaginam eles, nada existe.

Antonio Ablas Filho, por sua personalidade, era em nossos dias de decadência moral uma figura típica das eras ascensionais. Continha em si, vivas, as tradições de varonilidade da civilização cristã, que florescem hoje ali e acolá como promessas e, mais do que isto, como primícias do Reinado de Maria anunciado por São Luis Grignion de Montfort.

Discretíssimo, nada havia nele de exibicionista, demagógico e dado à charlatanice. Alto, quase esguio, seu porte, sem ser pedante, tinha algo de distinto e aprumado, que à primeira vista tolhia intimidades excessivas ou familiaridades vulgares. Seu trato natural mas cerimonioso punha instintivamente todas as pessoas no devido lugar. Os traços regulares de seu rosto, a tranqüilidade de seu olhar, exprimiam a ordem de uma alma na qual não eram consentidas as efervescências e os vendavais das paixões desordenadas. Em uma palavra, a pureza era um dos traços mais marcantes de sua feição moral.

Nas profundezas de seu olhar havia, entretanto, ainda outras riquezas. Era um olhar mais dirigido para dentro do que para fora. E que, quando se voltava para fora, se fixava em geral num ponto indefinido do horizonte: o ponto vago fitado habitualmente pelos homens que mais vêem as coisas da alma que as da matéria, que se mantêm de preferência na esfera elevada dos princípios, das doutrinas, dos ideais. Mas era ao mesmo tempo um olhar que fitava o interlocutor, com objetividade lúcida e sagaz, até o fundo dos olhos, para ver se neles encontrava o bem ou o mal.

Modelo de nobre intransigência

O bem ou o mal... É impossível falar de Ablas sem abordar este ponto. Era ele um homem de uma admirável pureza, já o dissemos. Por isto mesmo, era também um intransigente. O que para o ser vivo é o instinto de conservação, a intransigência o é para a virtude. O homem autenticamente virtuoso luta contra o erro e o mal como os organismos sadios reagem contra a doença e a morte. Ablas não se limitava a ser bom, mas queria que os outros o fossem. E por isto o erro ufano de si, o vício jactancioso e cínico sempre tiveram nele um adversário declarado e militante.

Contrastes harmoniosos

Quanto engano há em imaginar que são antitéticos a vida interior e o apostolado, a combatividade e a doçura, a consciência do próprio valor e a condescendência para com os pequeninos.

O nosso saudoso companheiro foi antes de tudo um homem de vida interior. Livros como Tratado da Verdadeira Devoção, a Carta Circular aos Amigos da Cruz, a Alma de todo Apostolado, a Carta Pastoral sobre Problemas do Apostolado Moderno, do Exmo. Sr. Bispo de Campos, valiam para ele mais, incomparavelmente mais do que todas as riquezas materiais. Mas, pari passu, ninguém mais ativo. Sem prejuízo do exercício intenso de sua profissão, ocupou com êxito invulgar os cargos de Prior, Mestre de Noviços e Conselheiro da Ordem Terceira do Carmo, Presidente da Junta Diocesana da Ação Católica, Presidente da Liga Eleitoral Católica em Santos, Presidente da Federação Diocesana das Congregações Marianas, Presidente e Conselheiro da Congregação Mariana da Anunciação, Presidente do Centro Cultural vicentino Frederico Ozanam, Diretor do jornal santista "Alvorada", Presidente da Associação dos Antigos Alunos Maristas de Santos, Presidente da Obra Diocesana da Adoração Perpétua, etc. E ao mesmo tempo dedicava a "Catolicismo", não diríamos parte de seu tempo, mas o melhor de sua vida.

Profundamente integrado nas mais variadas obras de apostolado, Antonio Ablas Filho tinha, entretanto, no foco mais ardente de seu zelo, como ideal supremo de sua alma embebida do sentir da Igreja, "Catolicismo". 

Daí o zelo com que se desempenhava de suas funções de agente de nossa folha para o Sul do País. Daí também o interesse com que participava de nossos estudos, de nossas atividades, de nossa luta. A harmonia entre vida interior e apostolado, que são aparentemente antitéticos, não é o único são contraste que nele se notava.

Combativo, Ablas entretanto sabia também ser ameno e até doce em seu trato. E isto não só em relação àqueles que alcançavam sua amizade e sua admiração, mas ainda para com os pecadores envergonhados ou contritos. Como médico, por exemplo, dispensou invariavelmente a melhor acolhida aos que, iluminados por algum sofrimento providencial, a ele recorriam vexados e arrependidos, para recuperarem não só a saúde alterada, mas a virtude perdida.

De outro lado, cônscio de sua dignidade e de seu valor – a humildade é a verdade, disse Santa Teresa – Ablas era extremamente bondoso para com os pequenos. A desolação que sua morte causou entre estes bem o prova.

A Eucaristia, Nossa Senhora, o Papa

As três devoções típicas do bom católico floresciam em sua alma com uma invulgar beleza: a Sagrada Eucaristia, Nossa Senhora, o Papa.

Católico de comunhão diária, uma de suas mais recentes alegrias foi a instauração da Adoração Perpétua na Igreja do Carmo de sua cidade. Vejo-o ainda, em nosso último encontro antes de ele adoecer, a me explicar entusiasmado, à porta daquela igreja, o escudo realmente expressivo que ali simboliza a piedade eucarística. A devoção a Nossa Senhora era, por assim dizer, a respiração de sua alma. Conhecedor lúcido e fervoroso da doutrina espiritual de São Luís Maria Grignion de Montfort, a prática fiel da escravidão de amor em relação à Santíssima Virgem era seu mais alto ideal. Filho amorosíssimo do Soberano Pontífice, seus olhos estavam voltados ininterruptamente para a Cátedra de Roma, com o desejo de, em tudo e para tudo, "sentire cum Ecclesia". Quando o Santo Padre Pio XII lhe conferiu as insígnias de comendador da Ordem Eqüestre de São Silvestre, a comoção por ser galardoado pelo Vigário de Cristo lhe invadiu de gratidão e de amor a alma inteira.

Amor à Hierarquia

A esta altura, cabe recordar os exemplos de amor e obediência de Antonio Ablas Filho à Autoridade Diocesana.

Ao Exmo. Revmo. Sr. Bispo D. Idilio José Soares, prendia-o uma amizade que começou com os primeiros dias do governo de S. Excia. em Santos, e se manteve fervorosa, dedicada, disciplinada, até o último momento. Médico do venerando Prelado, pessoa de sua íntima confiança, Ablas fazia da fidelidade a seu Bispo um ponto de honra de sua atividade de católico.

O Clero, tanto Secular quanto Regular, não tinha amigo mais respeitoso nem mais desinteressado. Como médico – e isto foi relembrado pelo Revmo. Pe. Paulo Hournaux de Moura à beira de sua sepultura – deu sempre aos Sacerdotes o apoio de sua influência, para a boa orientação das almas. Timbrava em atender gratuitamente os Eclesiásticos e as Religiosas que o procuravam. E nunca recusou sua cooperação apostólica àqueles que a pediram para a maior glória de Deus.

Amor à Ação Católica

Todas estas disposições de alma tinham de conduzir a um acendrado amor à Ação Católica, que ele serviu de modo estrênuo, quer como Presidente da Junta Diocesana da A.C., quer como Presidente da Federação das CC. MM. Santistas.

Em matéria de apostolado, seria, entretanto, impossível não mencionar também todo o bem que Ablas fez no contato com os pobres, quer na Santa Casa de Misericórdia, quer nas obras assistenciais das Conferências Vicentinas, quer ainda como médico desvelado de mais de um sindicato de trabalhadores.

As últimas horas

"Talis vita, finis ita". Nunca me esquecerei do último encontro que tive com aquele querido amigo. Surpreso pelo súbito agravamento de seu mal, desci a Santos na véspera de sua morte, acompanhando o Exmo. Revmo. Sr. D. Antonio de Castro Mayer, Bispo de Campos, que acorrera a toda pressa a chamado da Exma. Família Ablas. Viajava conosco o Dr. José Fernando de Camargo, também colaborador de "Catolicismo".

Quando entramos no seu quarto, Ablas acordou de um tal ou qual torpor em que se encontrava. Ouviu com recolhimento e profunda emoção as palavras de conforto e fé que lhe foram ditas pelo ilustre Prelado, a quem votava uma profunda admiração. Por sinais, manifestou seu assentimento carinhoso, e indicou sua convicção de que em breve o iria Deus chamar para o Céu.

Chegou depois minha vez. Ele não podia falar, em razão da máscara de oxigênio que usava. A minhas palavras, redargüiu também apontando-me o Céu, e estreitando-me longamente a mão, com uma força que surpreendia dadas as condições de saúde em que se encontrava. Por fim, chamou para junto de si o Dr. José Fernando de Camargo, a quem dispensou análogas manifestações de fraterno afeto.

Em certo momento, retirou a máscara de oxigênio, e exclamou: "Quero que todos saibam que desejo morrer com Jesus em meu coração. Por isto, perdoo a todos aqueles que me fizeram mal, e peço perdão àqueles que de mim tenham queixa". E disse também que no Céu faria mais ainda pelo "Catolicismo" do que em vida, pois rezaria por todos nós.

As palavras dele podem ser reproduzidas. O que entretanto jamais ninguém conseguirá descrever é a majestade da morte a transluzir na fisionomia, nos gestos, na atitude daquele homem ainda vivo. A majestade da morte? A expressão não é boa. A majestade da fé: foi ela que nimbou de uma serenidade, de uma grandeza, de uma glória verdadeira, as últimas horas deste justo.

O Falecimento

Estávamos na festa litúrgica do Sagrado Coração de Jesus.

Os padecimentos da Ablas se prolongaram por todo aquele dia, e entraram pelo sábado adentro. De madrugada, seu estado se tornou alarmante. O Exmo. Revmo. Sr. D. Antonio de Castro Mayer, que se hospedara em quarto próximo, na própria Santa Casa, foi chamado às pressas. Depois de ter dado ainda uma vez absolvição ao doente, começou a rezar o rosário, acompanhado pela Exma. Sra. D. Júlia de Freitas Guimarães Ablas, seus filhos e parentes. Enquanto se rezavam os mistérios dolorosos, Ablas entregou sua alma a Deus. O rosário continuou até o fim.

Num sábado, revestido do santo escapulário, esse piedoso terceiro Carmelita transpunha cheio de fé os umbrais da eternidade.

Morrera um justo, na acepção própria do termo.

Um sol magnífico levantava-se sobre a cidade. No quarto ouviam-se soluços.

Em breve, os soluços foram cessando. Uma unção indefinível, misto de saudades doridas [doloridas, consternadas, n.d.c.] e de alegria triunfal, foi dominando o ambiente.

* * *

Começou então um funeral, por assim dizer, resplandecente dos fulgores da pureza, da fé. Todos sentiam que morrer assim, não é morrer, mas nascer para nova vida. Quão preciosa é para Deus a morte do justo, diz a Escritura (cfr. Sl. 115, 15). E quão preciosa é ela também aos olhos dos homens de fé, poderíamos acrescentar nós.

Em uma palavra, Santos perdera um grande filho, a Igreja um grande lutador, a causa mariana um verdadeiro paladino.

Mas na história daquela cidade seu nome começava a figurar entre os mais beneméritos, os anais da Diocese passavam a consignar um admirável exemplo para os pósteros, e no Céu, aos pés de Maria Santíssima, uma alma que Lhe tinha imenso amor juntava a sua voz à de tantos outros, para cantar por toda a eternidade os louvores da Virgem Mãe de Deus.


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