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Presépio
Joaquim Machado de Castro - Basílica da
Estrela (Real Basílica e Convento do
Santíssimo Coração de Jesus) - Lisboa |
"Glória a Deus
no mais alto dos Céus, e paz na terra aos homens de boa
vontade" (Lc. 2, 14)! É impossível a qualquer católico meditar
sobre o Santo Natal, sem que lhe venham à mente, e diríamos
quase aos ouvidos, as palavras harmoniosas e iluminadas com que
os Anjos, cantando, anunciaram aos homens a grande nova do
advento do Salvador. Assim, é a propósito dessas palavras que
faremos, junto ao Presépio, aos pés do Menino-Deus, e bem
unidos a Maria Santíssima, nossa meditação de Natal.
"Glória". Como
os antigos compreendiam o significado deste vocábulo, quantos
valores morais refulgentes e arrebatadores viam nele. Foi para
conquistá-la que tantos reis dilataram seus domínios, tantos
exércitos enfrentaram a morte, tantos sábios se entregaram aos
mais árduos estudos, tantos desbravadores se embrenharam pelas
solidões mais temíveis, tantos poetas fizeram suas produções
mais altas, tantos músicos arrancaram do fundo de si mesmos as
suas notas mais vibrantes, e tantos homens de negócios, por
fim, se atiraram aos mais ingentes trabalhos. Sim, porque até
na riqueza se procurava, não só um fator de fartura, conforto e
segurança, mas também de poder, de prestígio -- em uma palavra,
de glória.
Mas que
elementos se continham nessa noção de glória? Alguns eram
inerentes à pessoa: alta mentalidade, virtude insigne, prática
de ações relevantes. Outros estavam ligados ao que hoje se
chama opinião pública. A glória, vista deste ângulo, seria o
reconhecimento notório, largo, altissonante, dos eminentes
predicados de alguém.
De que vale a
glória? Em que sentido o desejo de glória engrandece a alma?
Pode-se
responder facilmente à pergunta, comparando um homem ávido de
glória com outro que coloca todos os seus anelos em bens de
natureza diferente: dormir muitas e longas noites em cama
macia, nutrir-se com regalo e abundância, sentir-se a salvo de
riscos e incertezas, viver sem luta nem esforço, imerso em
diversões e prazeres, etc.
Não há dúvida
de que os bens materiais foram criados para nosso uso, e que,
na justa medida, e com os devidos conformes, pode o homem
apetecer estes bens. Mas se os erigir em valores supremos da
existência, o que se dirá dele? Que é um espírito baixo,
egoístico, estreito. Em uma palavra, que pertence à categoria
daqueles que a Escritura Sagrada marca com um estigma
significativo: têm por deus o seu próprio ventre (cf. Filip. 3,
19). Espíritos que só compreendem o que importa ao corpo, que
ignoram todos os verdadeiros bens da alma, e que, se pudessem,
fariam -- como escreveu Claudel -- as estrelas caírem do céu e
se transformarem em batatas.
Lembramos tudo
isto, porque nos aspectos imponderáveis da visita de Kruchev
aos Estados Unidos, e nas entrelinhas de inúmeros comentários
favoráveis a essa visita, que têm sido publicados em todo o
orbe, o que se insinua é precisamente essa cosmovisão. A
sociedade humana teria por único fim sólido, palpável,
autêntico, promover uma vida farta e aprazível. Todas as
questões religiosas, filosóficas, artísticas, etc. não teriam
senão uma importância secundária, ou mesmo não teriam
importância nenhuma. Se, pois, o mundo está dividido em um
"hemisfério" comunista e outro que não o é, o importante na
divisão não seria a divergência ideológica, mas a contradição
dos interesses econômicos. No plano das vantagens materiais, o
que mais importa é evitar uma guerra. E isto ainda que o mundo
se resigne implicitamente a uma bolchevização gradual. Assim, o
que o Ocidente deve acima de tudo preservar é o tranqüilo
convívio entre os povos. A paz deve ser alcançada a todo preço,
porque a restauração dos danos de uma guerra não tem preço.
Que isto nos
traga uma vida de ignomínia, pouco importa. Seremos escravos do
Estado onipotente, perdidos em uma imensa massa de anônimos,
desfigurados por uma "cultura" que visa eliminar as
personalidades e padronizar os homens, que nega a moral, a
existência da alma e até de um Deus justo e misericordioso:
pouco importa. Pelo menos teremos evitado para nós e nossos
filhos as devastações e as privações da guerra. A infâmia é um
preço bem pago para obviar tantos males. E por isto mais vale
cessar toda polêmica com o comunismo.
Ora, que se
faça o possível para evitar a guerra, empregando todos os
recursos da diplomacia, inclusive encontros de cúpula, nenhum
coração cristão negará a isto seu ardente assentimento. Mas que
para chegar a tal resultado se deseje uma desmobilização geral
dos espíritos em relação ao perigo comunista, e assim se dê
ocasião a Moscou para promover a penetração ideológica fácil e
eficiente de seus erros no orbe inteiro, é o que de nenhum modo
se pode admitir.
Nisto reside,
entretanto, para milhões de almas, a tentação suprema a que
ficaram expostas por viverem em um mundo para o qual a palavra
"glória" já não tem quase significado. Ela ainda existe nos
dicionários, emprega-se um pouco na linguagem corrente -- há,
por exemplo, no Rio um Outeiro da Glória, um bairro da Glória,
um Hotel Glória, há gente que fuma charutos "Glória de Cuba" --
quase se diria que fora desse gênero de aplicações o vocábulo
está morto. E, com o desuso dessa palavra, vão também
desaparecendo outras que lhe são correlatas: honra, prestígio,
decoro...
Seria
interessante ler um jornal de há cem anos atrás, para ver o
papel que tinham nas relações humanas -- entre pessoas,
famílias, grupos sociais ou nações -- esses valores. Hoje,
abra-se um jornal, e ver-se-á que o mais das vezes os homens se
aliam ou se guerreiam por motivos bem outros: exportações,
importações, divisas cambiais, tarifas e coisas congêneres.
Ora, diante
desse mundo que hipertrofiou até o delírio a importância do que
conduz à vida material farta, larga e segura, Nosso Senhor nos
dá, por ocasião do Santo Natal, uma dupla lição da maior
oportunidade.
Consideremos
do ponto de vista da boa instalação na vida a Sagrada Família.
Uma dinastia que perdeu o trono e a riqueza tem em São José um
rebento que vive na pobreza. A Santíssima Virgem aceita esta
situação com uma paz perfeita. Ambos se empenham em manter uma
existência ordenada e composta nessa pobreza, porém suas mentes
estão cheias, não de planos de ascensão econômica, de conforto
e prazeres, mas de cogitações referentes a Deus Nosso Senhor.
Para seu Filho, a Sagrada Família apresenta uma gruta para
primeira morada e uma manjedoura por berço. Mas o Filho é o
próprio Verbo Encarnado, para cujo nascimento a noite se
ilumina, o Céu se abre e os Anjos cantam, e a Quem dos confins
da terra vêm Reis cheios de sabedoria oferecer ouro, incenso e
mirra...
Quanta
pobreza, e quanta glória! Glória verdadeira porque não é
"cotação" junto aos homens meramente utilitários e farisaicos
de Jerusalém, que apreciam os outros segundo a medida de suas
riquezas, mas uma glória que é como o reflexo da única
verdadeira glória: a de Deus no mais alto dos Céus.
Costuma-se
dizer que a pobreza da Sagrada Família em Belém nos ensina o
desprendimento dos bens da terra, e isto é mil vezes verdade.
Convém acrescentar, contudo, que há além disto no Santo Natal
um alto e lúcido ensinamento sobre o valor dos bens do Céu e
dos bens morais que são na terra como a figura dos bens
celestes.
E, a este
respeito, há talvez uma confusão a desfazer.
Deus criou o
universo para sua glória extrínseca. Assim, todas as criaturas
irracionais tendem inteiramente para a glorificação de Deus. E
o homem, dotado de inteligência e livre arbítrio, tem obrigação
de empregar as potências de sua alma, e todo o seu ser, para o
mesmo fim. O seu fim último não consiste em viver gostosa,
farta e despreocupadamente, mas em dar glória a Deus.
Ora, isto, o
homem o alcança dispondo todos os seus atos interiores e
externos de maneira a reconhecer e proclamar sempre as
perfeições infinitas e o soberano poder do Criador.
Criado à
imagem de Deus, ele Lhe dá glória procurando imitá-lo quanto
possível à sua natureza de mera criatura.
E assim o
próprio exercício do amor de Deus, à medida que nos vai
assemelhando a Ele, também nos torna participantes de sua
glória.
É o que
explica o imenso respeito que os Santos sempre despertaram,
mesmo nos que os odiavam e perseguiam. Uma simples cozinheira
como a Beata Ana Maria Taigi, ao andar pelas ruas de Roma,
impressionava os transeuntes por sua respeitabilidade. Em todas
as aparições de Nossa Senhora, Ela se manifesta sumamente
materna, amável e condescendente, mas ao mesmo tempo
inexprimivelmente digna, respeitável, refulgente de régia
majestade. Quanto a Nosso Senhor, fonte de toda santidade, que
dizer? Tão condescendente, que chegou a lavar os pés aos
Apóstolos! Mas tão infinitamente majestoso, que uma palavra sua
prostrou de rosto em terra todos os soldados que vinham
prendê-lo (cf. Jo. 18, 6).
Ora, Jesus
Cristo é nosso modelo. Os Santos, que eximiamente O imitaram, o
são também. E assim todo verdadeiro católico deve tender a uma
alta respeitabilidade, a uma gravidade, a uma firmeza, a uma
elevação que o deve distinguir da vulgaridade, da sordície, da
extravagância de tudo quanto cai sob o domínio de Satanás.
E aí não se
trata só de um esplendor decorrente do exercício da virtude.
Todo poder vem de Deus (cf. Rom. 13, 1), o do Rei como o do
nobre, do pai, do patrão ou do professor. E de algum modo o
detentor de um cargo deve ser, enquanto tal, para os seus
súditos, como que uma imagem de Deus. Há uma dignidade
intrínseca de todo poder, que é um reflexo da majestade divina.
Assim, numa sociedade cristã, o detentor de qualquer situação
de relevo deve respeitar-se a si próprio em razão dessa
situação. E deve transfundir esse respeito nos que com ele
tratam. Dessa maneira, a sociedade temporal cristã é toda ela
refulgente da glória de Deus. Ela a canta a seu modo, como
também a canta com acentos inefáveis a sociedade espiritual,
que é a Santa Igreja Católica, Apostólica e Romana. E aqui na
terra a vida do homem é um prenúncio daquele cântico de glória
que entoará no Céu pelos séculos sem fim.
* * *
Mas, dirá
alguém, esse amor de cada qual a sua própria glória não será
orgulho?
Bem entendidas
as coisas, não e mil vezes não.
Se alguém ama
a sua glória, e não a de Deus, nisto há orgulho. Se alguém ama
a sua própria glória, não porque ela é um reflexo da glória de
Deus, mas apenas porque é um meio de obter homenagens, exercer
domínio sobre os outros, e dirigir a seu talante o curso dos
fatos, nisto há orgulho. Mas se um homem deseja merecer o
respeito do próximo só para que nisto seja Deus glorificado,
mostra grandeza de alma e verdadeira humildade.
Bem sabemos
que muitas vezes um orgulho subtil pode iludir uma pessoa,
dando-lhe a impressão de que é por amor de Deus que procura uma
glória que de fato só deseja por amor de si. Para obviar a esse
risco infelizmente muito e muito real, é preciso rezar,
frequentar os Sacramentos, meditar, mortificar-se, praticar
exames de consciência rigorosos, sujeitar-se à direção
espiritual. O remédio está no emprego desses meios
eficacíssimos, e nunca em negar um princípio em si mesmo muito
verdadeiro.
* * *
E a bondade?
Não consiste ela em que a gente se "democratize", se nivele com
os que estão de baixo, para atrair seu amor?
Um dos erros
mais funestos de nosso tempo está em imaginar que o respeito e
o amor se excluem, e que um Rei, um pai, um professor será
tanto mais amado quanto menos for respeitado. Ora, a verdade
está no contrário. A alta respeitabilidade, sempre que esteja
embebida num verdadeiro amor de Deus, só pode atrair a estima e
a confiança dos homens retos. E quando isto não se dá, não é
porque a respeitabilidade é muito alta, mas porque não tem seu
fundamento no amor de Deus.
A solução não
está em rebaixar, mas em sobrenaturalizar.
A dignidade
verdadeiramente sobrenaturalizada se abaixa sem se rebaixar.
A dignidade
egoística e vaidosa não quer e não sabe condescender
conservando-se íntegra. Quando ela se sente forte, rebaixa os
outros. Quando se sente fraca, por medo rebaixa-se a si mesma.
Imagine-se,
pois, uma sociedade temporal toda impregnada dessa alta,
majestosa e forte nobreza, reflexo da sublimidade de Deus. Uma
sociedade em que tanta elevação estivesse indissoluvelmente
ligada a uma imensa bondade, de tal maneira que, quanto mais
crescessem a força e a majestade, tanto mais cresceriam a
comiseração e a bondade. Que suavidade, que doçura -- em uma
palavra, que ordem! Que ordem, sim... e quanta paz. Pois o que
é a paz senão a tranqüilidade na ordem (cf. Santo Agostinho,
XIX De Civ. Dei, cap. 13)?
A estagnação
no erro e no mal, a concórdia com os soldados de Satanás, a
aparente conciliação entre a luz e as trevas, por isto mesmo
que conferem cidadania ao mal, só trazem desordem e geram uma
tranqüilidade que é a caricatura da verdadeira paz.
A paz
verdadeira só existe entre os homens de boa vontade, que
procuram de todo o coração a glória de Deus.
E por isto a
mensagem de Natal liga uma coisa à outra:
"Glória a
Deus no mais alto dos Céus, e na terra
paz aos homens de boa
vontade" (Lc. 2, 14).