Catolicismo Nº 107 - Novembro de 1959

 

A Novíssima Arma da Estratégia Soviética

Plinio Corrêa de Oliveira

 

Jantar Kruchev-Eisenhower - Catolicismo Nº 107 - Nov. 1959

Na saída de um jantar na embaixada soviética em Washington, K. conta uma piada. A Sra. Eisenhower ri deliciada. As outras pessoas (camarada Krucheva, Presidente Eisenhower, Sra. e Sr. John Eisenhower, nora e filho do Presidente) sorriem embevecidas. Essa fotografia exprime o ambiente de distensão e cordialidade que o ator soviético soube difundir em torno de si na visita aos EE UU. Pouco depois, em Pequim, impressionava e encantava pelo sério profundo e fria impassibilidade, tão de agrado dos chineses. — Ainda duas outras observações sobre a foto. A ostentação de plebeísmo do par Kruchev tem quase algo de provocador. Mas o vestido da Sra. K., adepta do amor livre, cria uma certa confusão nos espíritos, pois cobre muito melhor do que tantos outros correntemente usados no Ocidente.

A visita de Kruchev aos Estados Unidos pode ser considerada de dois pontos de vista: as conversações com os dirigentes norte-americanos e os contactos com o público.

Sobre as conversações, não há grande coisa a dizer. Ninguém pode duvidar de sua legitimidade. O fato de que um governo comunista domina a Rússia é inegável. Daí a existência de múltiplos problemas que, ou são tratados por via diplomática, ou conduzem à guerra. Claro está que em tese é preferível chegar a determinado resultado por via pacífica do que por via cruenta. De onde ninguém pode censurar o Presidente Eisenhower por ter aceito a visita do primeiro-ministro soviético.

Todo contacto diplomático supõe correção de trato. Assim, também não seria de censurar uma nota de lhaneza nos encontros entre o Sr. Eisenhower e Kruchev.

Quanto ao conteúdo das negociações, nada de sólido se pode dizer, pois elas foram mantidas sob severo sigilo. Estranhamos este sigilo. Acrescentamos mesmo que ele nos causa certa apreensão, pois a atitude do governo norte-americano nos aspectos sociais da visita foi muito além de uma correta lhaneza, e nos infunde algum temor de que tenhamos uma Munique ou uma Yalta em perspectiva. Mas trata-se de uma simples suspeita. E, em resumo, é prematuro afirmar qualquer coisa a este respeito.

Terminemos esta primeira parte do artigo dizendo, simplesmente, que desejamos terem chegado a bom termo os entendimentos entre o Presidente Eisenhower e Kruchev. O que, com nosso costumeiro amor à precisão, não queremos formular sem ao mesmo tempo dizer o que entendemos por "bom termo": todo resultado que afaste a guerra sem que o preço desta paz seja a conquista, pelo comunismo, de um só homem, uma só polegada de território, ou um grau a mais de influência em qualquer parte da terra.

Com efeito, se a paz só se puder conseguir adormentando-se a hidra comunista com o holocausto de povos, culturas e tesouros, e à custa desse paulatino deglutir o monstro se for tornando sempre mais forte, então estaremos aceitando o suicídio, com o que nenhum espírito reto e cristão pode concordar.

A paz é por certo um bem imenso. Mas não é o bem supremo. E se o preço da paz fosse a aceitação resignada do jugo comunista, deveríamos preferir mil vezes a luta, e quiçá o martírio.

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Tudo isto dito, desejamos analisar os aspectos sociais da visita de Kruchev. Calvo, atarracado, carnudo, borbulhante de vida, o físico de K. se presta a todos os papéis. Pendurado ao estribo de um bonde, pode ele representar o tipo ideal do homem comum das ruas. Num uniforme adequado, tem o "physique du rôle" de um porteiro de hotel solerte, atencioso e prestativo. Num clube de bairro, pode ser o centro de atração pela conversa viva, pela expansividade comunicativa, pelo trato chão e pelo talento de piadista. Mas de seus olhos podem sair chispas terríveis, seu dedo em riste pode fulminar ameaças sinistras, e metido em altas botas de couro, em um blusão de tecido grosseiro e feitio standard, de chicote em punho, pode ser o tirano truculento de um campo de concentração. Em suma, K. tem uma excelente vocação para ator.

Por isto, representou ele muito eficientemente dois papéis opostos, com poucos dias de intervalo. Nos Estados Unidos, foi o pai de família extrovertido, irrefletido, engraçado, bonachão e encantador ( para o gosto ianque ) que todos presenciamos. Na China, onde milênios de alta cultura ainda perduram sob a forma de um vivo gosto pela reflexão e, pois, pelo silêncio, pela discrição e pela distinção, foi ele o diplomata profundo, silencioso, reservado, que o público chinês esperava encontrar.

Isto prova que Kruchev é um bom ator. E que, como tal, sabe escolher seus papéis. A pergunta que naturalmente se impõe é esta: para que escolheu ele nos Estados Unidos tal papel?

Mas, antes de responder à pergunta, é de boa lei descrever e analisar o papel escolhido.

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Em duas palavras, pode-se dizer que toda a conduta de K. parece uma defluência natural da idéia um pouco vaga, complexa e infantil que o público ocidental tem do bárbaro e, pois, do seu congênere um tanto diluído, o semibárbaro:

1° ) antes de tudo, um ser espontâneo, que age por impulsos muito mais que por reflexão;

2° ) um ser capaz de terríveis cóleras, de crueldades sem nome, e, portanto, muito temível se se tem a inabilidade de contrariá-lo;

3° ) mas um ser primário e inconseqüente, que pode também facilmente ser guiado por agrados, por concessões inteligentes que produzem nele, como contragolpe, gestos superlativos de gratidão e generosidade, uma espécie de crianção que, tratado com doces, sorrisos, presentes, se entrega de bom grado à influência de um pedagogo hábil.

A postura de espírito que daí decorre, resultante de um misto de temor, simpatia e pouco caso, é a de um pacifismo radical:

1° ) brigar com o bárbaro é particularmente perigoso;

2° ) de outro lado, é fácil evitar a briga com manejos e inteligentes concessões;

3° ) em suma, quer o que o bárbaro tem de mau, quer o que ele tem de bom, aconselha o repúdio dos meios violentos e a aceitação dos meios pacíficos.

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O lado "ferocidade" era um fundo de quadro muito visível na idéia que os americanos, e em geral os ocidentais, faziam de K. É ele o senhor onipotente dessa Rússia brumosa e desconhecida, toda cercada de arame farpado no qual circula uma corrente elétrica mortífera. Um pesado silêncio paira nessas brumas, entrecortado por alguns prantos abafados, que mais se adivinham do que se ouvem. Percebe-se que uma polícia onipresente tira qualquer espontaneidade à vida social. Que nas igrejas semicerradas se mantém uma vida religiosa borbulhante mas vigiada, comprimida, brutalizada. Que as vozes da imprensa estão todas a serviço da mais artificial propaganda. Que, enfim, Kruchev é o feitor da maior das senzalas que a história conhece. Certas reminiscências terríficas, umas próximas e outras remotas, acentuam as cores do quadro. O público ainda não se esqueceu de todo de Nicolau II e sua família, tragicamente mortos por espancamento e fuzilaria em Ekaterinenburg, dos Grão-Duques atirados em fossos cheios de petróleo ao qual depois se ateou fogo, das chacinas de Arcebispos, Bispos e Clérigos, do massacre sistemático de nobres, de burgueses e de plebeus "brancos" em toda a Rússia. O martírio da Polônia, da Tcheco-Eslováquia e mais recentemente o esmagamento da gloriosa e indomável Hungria, o cativeiro injusto e degradante da. Alemanha Oriental, a atmosfera de turbulência que os partidos comunistas disseminam no mundo inteiro, tudo enfim concorria para dar uma idéia bem viva da ferocidade desse bárbaro.

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Se um bárbaro com um tacape pode dar medo... pelo menos à gente medrosa, o bárbaro armado de bombas atômicas, que medo pode causar até aos mais corajosos? E se esse bárbaro fabrica instrumentos de propulsão capazes de atingir, certeiros e pontuais, a própria lua, que engenhos superprecisos e superpontuais terá ele para jogar a bomba atômica nesta ou naquela cidade do globo, em Nova York, em Chicago, em São Francisco, por exemplo, ou em Boston?

No momento em que o foguete russo atingiu a lua, era esta a pergunta que, explícita ou implícita, consciente ou subconscientemente, se faziam todos os norte-americanos, para não dizer todos os homens. Foi este o momento que Nikita Kruchev escolheu para chegar aos Estados Unidos.

Confessemos que como "mise en scène" do fator "terror" não é nada mau.

Seria preciso um alto grau de idealismo, uma fé profunda, para não estremecer. Como veremos, foi precisamente dessa atmosfera de idealismo, de mística, de metafísica ( perdoe-nos o leitor o emprego destes termos em seu sentido corrente ) que K. quis insistentemente arrancar a polêmica entre Ocidente e Oriente.

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O culto da força não tem por objeto apenas a força bruta, mas também a riqueza e o poder, que são sem dúvida expressões indiretas e mais elevadas do prestígio da matéria. Entendemos aqui por "poder", não o direito de mandar, mas o fato do mando cinicamente exercido com inteira indiferença para com o direito.

Uma vez que, nas atuais condições, o poder se exerce sobretudo com base na propaganda, nas armas e na espionagem, e como esses três fatores só podem chegar à plenitude de sua eficácia com o emprego na mais larga medida de meios técnicos custosíssimos e ultrapotentes, em última análise o papel da técnica e da matéria de tal maneira avulta nos vários aspectos do poder, que o público fica facilmente propenso a ver neste um valor preponderantemente material.

Quanto à riqueza, ao ouro, é também matéria.

Assim, pode um bárbaro ou um semibárbaro, carente dos verdadeiros valores do espírito e da cultura, e todo imerso no mundo da matéria, ser, entretanto, um potentado nas esferas da técnica e da economia.

Foi como se apresentou K. Vulgar como o mais primitivo dos homens de rua. Mas dispondo a seu talante dos recursos do ouro e da técnica, manipulando milhões de rublos, dominando milhões de homens, e falando singelamente em liquefazer os gelos de toda a Sibéria com energia atômica.

Não é difícil perceber quanto com isto podem ficar fascinadas as massas mesmo quando nitidamente hostis.

Fascinadas... e amedrontadas, pois o medo e o fascínio são fatores que facilmente se associam para hipnotizar e subjugar as multidões...

Enquanto, pois, todos estes fatores conjugados, próximos e remotos, cercavam de um halo escuro e prestigioso esse terrível senhor do ouro, da técnica e das massas, alguns vagos lampejos de esperança pareciam quebrar, de modo tênue e indeciso embora, o que o quadro representava de excessivamente severo.

Os leitores da grande imprensa ocidental vinham absorvendo, de há anos, notícias que criavam no seu espírito certas duvidas anestesiantes.

Em primeiro lugar, insinuou-se que nem todos os comunistas eram necessariamente tiranos espoliadores da propriedade alheia. Tito, comunista declarado presidindo um Estado também comunista, foi tratado pela diplomacia do Ocidente como se fosse um perfeito gentleman, afável, honesto e simpático.

Porque o primeiro-ministro soviético não seria, ele também, um comunista assim? Haveria razões para tal hipótese. O noticiário publicado por ocasião do desaparecimento de Stalin insinuava que a era sangrenta do comunismo se encerrara com a morte trágica e misteriosa do famoso ditador. Depois dele, teria havido uma luta confusa entre partidários da violência e da brandura. A queda de Malenkov ( violência ) teria sido na Revolução russa o que foi a liquidação dos restos do jacobinismo ( violência ) durante a Revolução Francesa.

Agora, K. ( brandura ) estaria dando à Revolução soviética uma feição menos desgrenhada, hirsuta e suja. Ele representaria a fase bonapartista que certamente nos parece um tanto rude, mas que em comparação com o Terror foi uma era idílica de paz e suavidade.

Alguns vislumbres de tudo isso poderiam ser talvez mencionados. Uma tal ou qual reabertura do culto na Rússia, a tentativa de conciliação entre o Episcopado polonês e o governo Gomulka pareciam demonstrar a possibilidade de uma liberdade religiosa restrita, mas preciosa, em regime comunista.

É verdade que o caso húngaro, com todo o despotismo e o furor anti-religioso que demonstrou, parecia desmentir esses vislumbres. Pois seria impossível explicar tanta ferocidade em gente tão branda. Acresce que vislumbres são em última análise conjeturas fundadas em tênues aparências, que não podem servir de base para nenhuma política séria.

O que é mais, esses vislumbres são contraditórios e, em alguma medida, até absurdos.

Com efeito, um dado permanece inalterado no panorama russo. K. e seus companheiros continuam explícita e categoricamente comunistas, com toda a carga de ateísmo que o fato comporta. Uma moral sem Deus não tem consistência. Acresce que, como é sabido, o comunismo repudia toda moral como um preconceito burguês. Para ele, até os piores meios são lícitos para chegar à abolição de todos os cultos, à supressão de todos os Estados, à extinção da família e da propriedade e à implantação da ditadura do proletariado no mundo inteiro. E entre esses meios, um dos que têm sido mais usados é a mentira.

Se tal é o escopo necessário, congênito e natural do comunismo, é impossível não suspeitar — e com que abundância de razões — que todos esses vislumbres não passam de uma imensa comédia para entorpecer a reação do Ocidente, tornando-o imprevidente e adormecendo-o para melhor lhe desferir o grande golpe final.

Mas isto que um observador atento, refletindo em seu gabinete de trabalho, pode ver, é pouco acessível ao grande público. Que meios pode haver, para exigir tanta lógica da parte de uma opinião pública exausta, imersa na confusão e traumatizada por tantas causas de apreensão?

Nas épocas de decadência as massas crêem facilmente nos mistificadores que lhes apresentam como realidade mentiras que elas desejariam que fossem verdades.

Ademais, nos setores de opinião mais diretamente interessados em desmentir essas ilusões, há muito tempo uma propaganda insidiosa vem minando em boa parte as certezas e as energias que são o pressuposto de toda resistência. De um lado, as famosas tendências de colaboração entre comunistas e não comunistas tomaram um caráter doentio em muitos homens que o Emmno. Cardeal Ottaviani chamou "pequenos comunistas de sacristia" (). De outro lado, toda uma literatura "social" muito disseminada na melhor burguesia tem insistido tão unilateralmente sobre os incontestáveis e censuráveis excessos do regime capitalista, que acabou dando a muitos proprietários um como que complexo de culpa em face das exigências comunistas.

Perdoem-nos os leitores se empregamos aqui a bela e nobre palavra "social" de maneira tão genérica e abusiva. Bem como se usamos a expressão de execrável sabor freudiano "complexo de culpa". É o único modo de fazer sentir certas realidades.

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Como se vê, toda uma longa ofensiva psicológica precedera a viagem de K. Tomando esta corno elemento de análise, percebe-se que cada um dos gestos, cada uma das palavras do ditador teve por efeito levar ao máximo esta propaganda.

É o que passaremos a mostrar.

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K. quis se fazer ver como um homem rude e simples, ao mesmo tempo bonachão se bem tratado, e perigoso se abordado de maneira pouco psicológica. Mantendo-se declaradamente marxista e fazendo até propaganda ostensiva e provocante de seu regime, procurou ele esvaziar de todo conteúdo ideológico a linha divisória entre Oriente e Ocidente, apresentando a grande divergência como se ela girasse apenas em torno da abundância e do baixo custo da produção. E por fim quis fazer supor que na Rússia a vida dos particulares é juridicamente segura e tranqüila como nos regimes ocidentais.

Em suma, a visita de Kruchev foi um grande show destinado a completar a desmobilização psicológica do Ocidente que há tantos anos vem sendo cuidadosamente preparada.

Um homem prevenido vale por dois, diz o velho provérbio. Mas se esse homem, além de desprevenido, está confiante em seu adversário, se sobre ele baixa uma bruma de confusão em que se sente desnorteado, extenuado e amedrontado, então este infeliz não vale nem por meio homem. Em suas mãos até as melhores armas e os maiores tesouros não passarão de inócuos brinquedos.

Vendo tantos paises, tantos povos, tantas cidades que, em medida maior ou menor, se estão deixando enlear por essa manobra, parece-nos que um imenso lamento se desprende de todos eles. É o lamento do fraco que procura iludir-se, mas que chora no segredo do seu coração, porque não consegue crer em sua própria mentira. As palavras da Liturgia nos vêm então à mente: "Tribulationes civitatum audivimus, quas passae sunt, et defecimus: timor et hebetudo mentis cecidit super nos, et super liberos nostros" ( responsório do 3° noturno do 3° dom. de set. — brev. rom. ).

Porque pôr em evidência verdade tão brutalmente cruel? Qual o sentido construtivo de uma análise tão pavorosamente sombria?

À maneira de resposta o texto sagrado continua: "Domine, miserere! Peccavimus cum patribus nostris, injuste egimus, iniquitatem fecimus. Domine, miserere!" ( ibid. ).

"A Rússia espalhará os seus erros" se o mundo se mantiver indiferente à mensagem de Fátima. Disse-o Nossa Senhora. Se pelo menos agora soubermos reconhecer nossas faltas e emendar-nos, ainda será tempo.

É o sentido profundo deste artigo.

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Analisemos agora o show de Nikita Kruchev. Antes de tudo, o homem bonachão. Desembarcando risonho, apesar de certa gravidade do semblante de Eisenhower, K. riu e timbrou em fazer rir, durante toda a sua estadia, como um bom companheiro gorducho e inofensivo. É, como dissemos, a nova face da propaganda comunista. Foram tantas as demonstrações nesse sentido, que escolhemos apenas alguns exemplos entre os despachos publicados pela imprensa diária.

No banquete oferecido pelo prefeito de Nova York, o ditador alcançou um "êxito estrondoso", porque "conseguiu derrubar as barreiras da diferença de idiomas, mantendo a assistência sempre rindo e aplaudindo". Tudo "era dito com tanta personalidade, gestos habilidosos e sorrisos simpáticos, que o público ficou profundamente impressionado". Citamos o correspondente de um grande matutino paulistano.

Nem todas as brincadeiras foram de bom gosto. Assim, quando K. subia ao 35° andar do Hotel Waldorf-Astoria, o elevador se deteve, por um defeito da máquina, no 30° pavimento. K. subiu então cinco andares a pé. E, como o embaixador Cabot Lodge, que o acompanhava, se manifestasse cansado, Kruchev comentou: é um típico exemplo do mau funcionamento do sistema capitalista.

Visitando a estação experimental de agronomia de Beltsville, nos arredores de Washington, o líder vermelho se defrontou com um professor, homem bastante magro, e lhe deu uma cotovelada amigável, comentando: "Eu poderia competir com você".

Almoçando em São Francisco com os dirigentes sindicais da A.F.L.-C.I.O., deu uma demonstração de "cancan" tão anatômica e vulgar, que em lugar de divertir até chocou seus comensais.

Ainda em São Francisco, reduziu a disputa entre Ocidente e Oriente ao caso de uma garça e uma galinhola, cada uma das quais não podia- compreender porque a outra habitava respectivamente no pântano e no bosque.

Viajando de trem entre São Francisco e Los Angeles, aproveitou todas as paradas para descer na estação e apertar a mão dos populares que encontrava na plataforma. O mesmo fez com todas as pessoas que encontrou no Hotel Plaza em São Francisco.

Em Des Moines, resumiu o problema da coexistência ao seguinte: "Os porcos soviéticos e os porcos americanos podem e sabem coexistir pacificamente. Porque não imitá-los?"

No jantar que lhe ofereceu o Presidente Eisenhower, o casal Kruchev apareceu em traje de passeio, enquanto o chefe do executivo norte-americano e sua esposa vestiam-se a rigor. K. teve assim uma atitude grosseira, que, entretanto, repercutiu em certos ambientes como manifestação de uma simplicidade cheia de condescendência e bondade.

Enquanto comia na companhia de Cabot Lodge, Nikita, que se revelou um grande apreciador de cachorro-quente, disse ao diplomata: "Capitalista, come o teu cachorro-quente".

Estas e outras atitudes fizeram os norte-americanos rir longamente a respeito de K. E, como se sabe, quem ri se distende.

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O ianque médio não acredita que um homem autenticamente bondoso possa ser ao mesmo tempo um adversário militante da religião. Tolera de muito bom grado o indiferentismo, não compreende o anticlericalismo ou o ateísmo agressivo. Ainda nesse ponto K. mostrou a nova face propagandistica do marxismo, referindo-se a Deus, a Jesus Cristo e à Bíblia, em termos de uma neutralidade ambígua, diversa sob alguns aspectos da sanha anti-religiosa do comunismo staliniano. Correspondeu a isto uma certa pretensão moralistica desse fogoso expoente de uma doutrina que prega o amor livre. Em Los Angeles, verberou severamente o "cancan". Viajando com sua esposa, que evidentemente não tem pretensões de beleza nem elegância, K. se fazia ver no papel de pai de família conservadora e pacata, e a Sra. Krucheva contrastava com tantas esposas e mães que, no Ocidente, ostentam atitudes mais próprias a um país que admitisse o amor livre.

Uma fotografia da Sra. Krucheva considerando em um museu uma imagem da Mãe de Deus dava certa impressão ( sempre a técnica dos vislumbres: a visitante foi fotografada de costas ) de simpatia e até de piedoso recolhimento.

Num banquete, K. declarou: "Queremos construir uma sociedade semelhante à preconizada por Cristo. Se vocês estudarem as nossas aspirações, verão que já adotamos muitos preceitos de Cristo, tais como o de amar ao próximo".

Em visita a um fazendeiro, Kruchev disse-lhe: "Deus vos ajudou muito, dando-vos uma boa terra. Mas não julgueis que sois os únicos aos quais ele ajuda. Nós nos desenvolvemos mais rapidamente, e assim julgamos que ele está de nosso lado".

E, assim, os observadores contaram mais de quarenta ocasiões em que o ditador soviético citou o nome de Deus.

Em que espírito foram feitas tais citações? Sem nenhum sentido de afirmação religiosa. O que faz lembrar o 2° Mandamento: "Não tomar o santo nome de Deus em vão".

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De vários modos, K. exprimiu o aborrecimento que lhe causavam as questões ideológicas. Chegou mesmo a dizer que tinha mais facilidade de contacto com os plutocratas consagrados aos negócios, do que com pessoas de outras camadas sociais que vêem problemas doutrinários como obstáculos à normalização das relações entre o Oriente e o Ocidente. Foi frisante a diferença entre a ternura dos contactos de Kruchev com os capitalistas e o incidente violento que se produziu, durante um almoço, entre ele e os grandes líderes sindicais. É que estes últimos, em lugar de falarem de compra, venda ou câmbio, situaram a conversa num terreno que, sem ser propriamente filosófico, tem certo caráter doutrinário: se o dirigismo é mais propício do que a livre-empresa para a produtividade do trabalho operário. A conversa degenerou em atrito sério. Foi talvez o mais sério dos que houve com K. nos Estados Unidos.

A imagem dos dois porcos, que há pouco citamos, bem exprime o materialismo cru do visitante vermelho, o que aliás está na mais inteira consonância com a doutrina comunista. Obstinando-se em situar só neste terreno os problemas da hora, K. tenta eliminar, como superadas, todas as resistências ideológicas que possa encontrar. Ficando tudo reduzido ao que os alemães chamam uma "margen frage", uma questão de estômago, se se puser a alternativa entre uma guerra tremendamente ruinosa ou uma capitulação ante o comunismo, é claro que será preferível capitular. É para esta ignomínia que o astuto tirano vai assim preparando a mentalidade do Ocidente.

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Mas, ao mesmo tempo em que fingia desprezar os problemas ideológicos, foram sem conta as ocasiões em que K. propôs um intenso intercambio cultural com os norte-americanos. Para os espíritos ingênuos, desde que houvesse reciprocidade nessa osmose cultural, daí só poderiam resultar vantagens. O comunismo é errado, logo não há risco de que os ianques o aceitem. Os valores afirmados pelo Ocidente são verdadeiros, logo tudo leva a crer que os russos os aceitarão.

Mas isto não é senão a quinta-essência do liberalismo, que abstrai do pecado original, e imagina o homem sempre infenso ao erro e propenso à verdade. K. sabe muito bem quantas possibilidades de êxito têm as doutrinas subversivas. De outro lado, pode calcular quantos fermentos deletérios já estão encaminhando para o comunismo a cultura do Ocidente. Por fim, ele não tem nenhum propósito sério de permitir aos norte-americanos uma difusão cultural eficiente e em larga escala em terras soviéticas. Assim, o que as relações com a Rússia têm de pior, isto é, a contaminação ideológica, vai sendo preparada de modo sempre mais eficiente.

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Parecido com um urso a tantos títulos, maciço, de olhos vivos, sabendo ser meigo, e até dançar jovialmente, K. também mostrou ter, como o urso, súbitos e terríveis furores. Brigou quando lhe falaram da Hungria, quando lhe falaram da liberdade de pensamento na Rússia, e em outras ocasiões ainda. Ameaçou até de interromper a sua visita e voltar a Moscou. Como dissemos, fazia isto parte do jogo. Quanto mais nosso pobre Ocidente, aviltado pelo neopaganismo e intoxicado pela mania de gozar a vida, tiver medo de K.—fera, tanto mais será propenso a acreditar no mito de K.—bonacheirão.

E, assim, essa visita, por si só, derrubou mais barreiras e abriu mais campo para as manobras com que o comunismo prepara o golpe supremo, do que anos inteiros de diplomacia fria e à distancia.

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Não queremos faltar com a consideração devida ao Presidente Eisenhower. Compreendemos que ele tenha querido tratar com o primeiro-ministro soviético. É-nos entretanto inconcebível que ele tenha proporcionado a K. oportunidade tão excelente para esse imenso show. Não sabe o Presidente que não foi propriamente com um representante da nação russa que ele tratou, mas com o chefe de uma gang que tiraniza a Rússia e constitui o maior bando de celerados já conhecido na historia? Admitimos que a acolhida a Kruchev tivesse uma certa nota de formalismo diplomático. Mas recebê-lo com a cortesia com que se acolheria um chefe de Estado de mãos limpas, que não tivesse atentado contra todas as leis divinas e humanas, não é positivamente equiparar a verdade ao erro, e ao bem o mal?

Sua Eminência o Cardeal Francis Spellman, Arcebispo de Nova York, falando na Academia do Serviço de Guarda-Costas, em New London, Connecticut, teve essa frase: "É lamentável que o governo tenha decidido acolher com honrarias e recepções, sabotadores que podem trazer em sua bagagem propaganda mais mortífera do que explosivos". É precisamente este o ponto em que mais viva se torna nossa estranheza.

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Terminada a sua visita aos Estados tinidos, K., que a aproveitara para propor demagogicamente a abolição de todos os exércitos, foi participar dos festejos comemorativos do décimo aniversário do regime comunista na China. O fausto das comemorações, a exibição de força a que elas deram ocasião, a presença dos vencidos para aclamar no desfile de escravos o vencedor ( Panchem Lama, capitalistas "regenerados", um "pelotão" de freiras católicas, provavelmente cismáticas ), o fato de que neste mesmo momento a República Popular Chinesa acaba de triturar o Tibet, agride o Laos, e ameaça a Índia, ao passo que a influência soviética se vai tornando sempre mais clara no desventurado Iraque, tudo enfim concorreu para dar a esse grande encontro mundial do comunismo o caráter de uma ameaça terrível, feita ao orbe inteiro.

Das comemorações participava Kruchev, frio, impassível, discretissimo, segundo o gosto chinês.

É que o palco era outro, e por isso outra era a apresentação do ator...