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Um dos grandes méritos do estilo gótico consistiu na
construção de igrejas que foram maravilhas de ordem no sentido mais
profundo da palavra: uma ordem resplandecente de fé, bom senso,
sublime elevação de espírito e graça encantadora. Mas esta ordem –
de que a nave de Coutances, no clichê, dá uma idéia tão perfeita – o
estilo gótico a exprimiu não somente em monumentos eclesiásticos,
mas também civis, indicando que não há cisão entre a vida espiritual
e a temporal, a Igreja e o século. Também a vida profana deve ser
inspirada, ordenada, e marcada até o que tem de mais fundo, por um
ardente espírito de fé. |
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Está encerrado o ano de 1958. E impõe-se a velha e
quase diríamos gastíssima praxe do retrospecto, seguido de um olhar
ansiosamente interrogativo para 1959. Seria inútil tentar fugir a essa
praxe, por mais rotineira que pareça. Ela nasce da própria profundeza da
ordem natural das coisas. Foi Deus que criou o tempo, e quis que, para os
homens, fosse ele dividido em anos. Esta duração anual, unidade sempre
igual a si mesma, é admiravelmente proporcionada à extensão da existência
humana e ao ritmo dos acontecimentos terrenos. Quis a Providência que a
inexorável cadência dos anos proporcionasse aos homens, nos dias que
servem de ponte entre o ano velho e o ano novo, a ocasião para um exame
atento de tudo quanto neles e em torno deles se foi mudando, para uma
análise serena e objetiva dessas mudanças, para uma crítica dos métodos e
rumos velhos, para a fixação de métodos e rumos novos, para uma
reafirmação dos métodos e dos rumos que não podem nem devem mudar.
De algum modo, pois, cada fim de ano se parece com um
Juízo, em que tudo deve ser medido, contado e pesado, para a rejeição do
que foi mau, a confirmação do que foi bom, e o ingresso em uma etapa nova.
A praxe dos retrospectos e das conjeturas de fim e
começo de ano é, pois, iniludível.
Conformando-nos com esta disposição da Providência,
escrita na própria ordem natural das coisas, entreguemo-nos ainda uma vez,
sob o olhar de Maria, a esta tarefa de medir, pesar e prognosticar.
Prognosticar, sim. Pois se habitualmente Deus a ninguém revela o futuro, a
mente alguma deu o dom de fazer por si mesma prognósticos infalíveis, quis
entretanto que o intelecto do homem tivesse o lume suficiente para
estabelecer conjeturas prováveis, que podem servir de elemento precioso
para a direção das atividades humanas.
* * *
Naturalmente, um coração católico não pode deixar de
ver no ano de 1958 três notas principais. Foi o ano de Lourdes, em que as
alegrias, as lutas, até as decepções foram iluminadas pela luz
sobrenatural e suave que nasce da gruta sagrada. E foi na suavidade dessa
luz que se extinguiram mansamente os dias de Pio XII, foi com o conforto
de sua claridade que as multidões choraram o Pontífice que tanto as amou e
a quem tanto amavam, foi o esplendor dessa luz que brilhou nos albores do
pontificado de João XXIII, inundando-os de promessas e de bênçãos: 1958
ficará para nossos corações como o ano de Lourdes, o ano da morte de Pio
XII e do advento de João XXIII.
* * *
Mas, se destas alturas baixarmos as vistas sobre os
acontecimento que mais especialmente se relacionam com a sociedade
temporal, o que presenciamos em 1958? Foi este um ano bom? Um ano ruim?
A esta pergunta pode-se dar, conforme os pontos de
vista, tantas respostas, valendo umas e outras tanto e tão pouco, que se
cai em pleno caos. Pois cada ano traz forçosamente modificações boas e
modificações más. E o grande problema consiste na fixação de um critério
para determinar e ponderar o bem e o mal.
Ora, a fixação deste critério, para um católico, não
pode constituir objeto de dúvida. A civilização cristã é a ordenação de
todas a coisas temporais conforme a doutrina da Igreja. Em outros termos,
é a ordenação de todas elas segundo a natureza de cada uma, em
conformidade com o seu fim último, de maneira que a proporcionada
cooperação entre todas redunde na realização do plano da Providência, que
é a glória de Deus tanto nesta existência como na outra, isto é, no tempo
e na eternidade.
Na ordem temporal, pois, o problema consiste em saber
em que medida os acontecimentos de 1958 contribuíram para favorecer e
desenvolver a civilização cristã, ou pelo contrário, para a minar e
derruir.
Sem negar a legitimidade de considerações de outra
natureza, feitas de acordo com outros pontos de vista, é preciso
reconhecer que elas têm uma importância secundária, em face da que
acabamos de fazer. E que em última análise as mesmas só tem sentido se
consideradas em função do grande problema que apresentamos linhas acima.
Com efeito, a civilização cristã pode ser comparada à pérola preciosa de
que fala o Evangelho ( Mat. 13, 46 ). Para adquiri-la, devemos vender
tudo. Pois de nada nos servem todas as riquezas, se não tivermos o bem
inestimável da civilização cristã. Do que dá bem provas nossa triste era
atômica, em que o homem tem a superabundância dos recursos materiais, e
estes lhe são espiritual e materialmente danosos porque seu uso não é
regulado pelos princípios da Igreja.
* * *
Este julgamento do ano de 1958 só pode ser feito
tendo-se em vista a situação concreta em que nos encontramos. A
civilização cristã existiu no Ocidente, com grande esplendor e plenitude.
Di-lo o Santo Padre Leão XIII em palavras memoráveis:
"Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava
os Estados. Naquela época, a influência da sabedoria cristã e a sua divina
virtude introduzia-se nas leis, nas instituições, nos costumes dos povos,
em todas as classes e em todas as relações da sociedade civil. Então a
Religião instituída por Jesus Cristo, solidamente estabelecida no grau de
dignidade que lhe é devido, estava por toda a parte florescente, graças ao
favor dos Príncipes e à proteção legítima dos Magistrados. Então o
Sacerdócio e o Império estavam ligados entre si por uma feliz concórdia e
amigável reciprocidade de bons ofícios. Assim organizada, a sociedade
civil deu frutos superiores a toda a expectativa, cuja memória subsiste e
subsistirá , consignada, como está, em inúmeros documentos, os quais
nenhum artifício dos adversários poderá corromper ou obscurecer" (
Encíclica "Immortale Dei", de 1º de novembro de 1885 ).
Esta civilização magnífica entrou em crise, através de
um longo e doloroso processo histórico cujas principais etapas foram, no
campo ideológico, o naturalismo, o cepticismo e o hipercriticismo dos
humanistas, as negações do protestantismo, mais tarde o iluminismo e o
deismo, para chegar hoje em dia ao ateísmo e ao panteísmo; e, no campo
temporal, as concepções absolutistas e césaro-papistas dos legistas, o
laicismo e o igualitarismo político e social da Revolução Francesa, o
ateísmo e o igualitarismo social e econômico do comunismo.
Atualmente, do antigo edifício da civilização cristã, o
que resta? Muito pouca coisa. Em carta dirigida a Sua Eminência o Cardeal
D. Carlos Carmelo de Vasconcellos Mota, Arcebispo de São Paulo, o Exmo.
Revmo. Mons. Ângelo Dell’Aqua, Substituto da Secretaria de Estado do
Vaticano, falando com a alta responsabilidade de seu cargo, dizia que
"em conseqüência do agnosticismo religioso dos Estados" ficou "amortecido
ou quase perdido na sociedade moderna o sentir da Igreja". Quando a
raiz está como que completamente cortada, tudo quanto possa persistir de
frutos e de flores na árvore tem uma vida que mais se poderia chamar
pós-vida. O pouco que da civilização cristã ainda resta na civilização
pós-cristã ( chamemo-la assim ) de nossos dias – alguns hábitos, costumes
e tradições, este ou aquele modo de sentir e de pensar, uma ou outra
disposição legislativa – tem o mais das vezes certo aspecto de
sobrevivência mais ou menos anacrônicas do passado.
Não negamos, é claro, que muitas almas – em número
talvez até crescente em relação a cem anos atrás – continuam a viver numa
ardente união com a Santa Igreja, dando mostras de uma fidelidade heróica
que por vezes nada fica a dever aos mártires do Coliseu. Tudo isto não
obstante, é verdade que no plano dos costumes sociais, da cultura, das
instituições políticas, da vida econômica, o retrocesso é cada vez maior.
E assim, para 1958, o importante consiste em saber se o
retrocesso continuou, se a marcha triunfal do neopaganismo foi sustada, se
a reconquista do mundo para Nosso Senhor Jesus Cristo já teve início.
No plano em que falamos, a resposta só poderia ser uma:
não.
* * *
Em primeiro lugar , haveria temeridade em afirmar que,
no Ocidente, o comunismo sofreu qualquer perda substancial de seu
prestígio. O fato de na Itália e na França, por exemplo, as eleições terem
corrido com algum prejuízo para o Partido Comunista não tem alcance maior
do que o de um vaivém de tropas numa batalha de longa duração. Pelo
contrário, há um sensível progresso da influência comunista no Brasil, por
exemplo. Da influência comunista, dissemos, e não propriamente do
comunismo. Com efeito, não percebo qualquer sintoma de maior
permeabilidade da opinião pública à doutrina de Marx. Mas há entre os
homens de influência do País uma crescente tendência a aproximar nossa
política internacional da de Moscou. Não é difícil ver que proveitos
poderá tirar disto, em momento dado, a raposa soviética.
Quanto ao Oriente, houve quem esperasse que uma atitude
de inércia simpática, e por vezes até de colaboração positiva dos
católicos com os movimentos nacionalistas e emancipacionistas,
determinasse para a Igreja condições de existência mais favoráveis, ou
pelo menos Lhe conservasse as condições suportáveis em que Se encontrava.
Havia, é certo, algumas apreensões. Por exemplo, a pressão e, mais do que
isto, a fascinação da Rússia sobre os movimentos nativistas não poderiam
ter perigosas conseqüências? É forçoso reconhecer que os acontecimentos
desenrolados em 1958 concorreram quase sempre para desvanecer as
esperanças e confirmar as apreensões. Muitos dos movimentos nativistas se
voltam contra a Igreja, perseguida agora, um pouco por toda a parte, por
um sentimento xenófobo injusto e estreito, estimulado pela Rússia, a
despeito das exuberantes manifestações de boa vontade que os católicos
deram para com o anticolonialismo.
Mas o pior não está em nada disto. Durante todo o ano
passado, não fez senão agravar-se o processo de degradação cultural de que
os povos do Ocidente estão afetados. A imoralidade cresceu constantemente.
Disto é índice a epidemia mundial de "rock and roll", fenômeno visível por
muitos lados, mas que tem inegável importância se o consideramos como a
expressão aguda de um espírito muito difundido e generalizado no Ocidente,
e que não é senão o neopaganismo chegando ao paroxismo e superando-se a si
próprio. Parece ter chegado ao auge o progresso de um materialismo
implícito, que consiste no endeusamento de valores puramente materiais, ou
pelo menos vistos apenas em seus aspectos materiais, como o dinheiro, a
técnica, o número, a massa, o esporte, a saúde, o conforto. O
igualitarismo, que é a afirmação do primado da quantidade sobre a
qualidade, do vulgar sobre o que é intrinsecamente nobre e elevado, da
matéria sobre o espírito, penetra sempre mais a fundo, introduzindo a
confusão e a desordem mais radical nas relações humanas. Nivelar cada vez
mais a esposa com o esposo, os filhos com os pais, os alunos com os
professores, os mais moços com os mais velhos, os empregados com os
patrões, os que são governados com os que governam, eis a que tende de
todas as maneiras a imensa transformação de costumes pela qual estamos
passando.
E assim, ainda que não houvesse a cortina de ferro, nem
a cortina de bambu, com todo o mundo que atrás delas vive, o Ocidente não
comunista, pelo seu próprio dinamismo interno chegaria ao comunismo.
Como pode ter forças para se defender contra um perigo
quem, fascinado, se deixa preguiçosamente rolar até ele? Como pode ter as
bênçãos e a proteção de Deus, contra um adversário temível, quem faz o
jogo do próprio adversário? Como obter a proteção de Deus, quando se
injuria ao próprio Deus, queimando incenso nos altares do anticristo do
século XX?
O ano de 1958 foi mau...
* * *
... E nada indica que o ano de 1959 será melhor. E,
entretanto, 1959 poderá ser melhor, se os católicos tomarem consciência de
sua responsabilidade. No mundo, são eles quase quinhentos milhões. Este
argumento quantitativo pesa. Mas, muito mais do que isto, é preciso
considerar que eles constituem o Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus
Cristo, a porção predileta da humanidade, para a qual a Providência está
disposta a operar maravilhas, se ela resolver cooperar com a graça. Tudo
vai mal. Nada, porém, absolutamente nada está perdido se ainda nos
decidirmos a lutar varonilmente, e com espírito de fé invocarmos o auxílio
do Senhor.
Prognósticos para 1959? Eles serão sombrios, se
continuarmos na inércia, na tibieza, na ignorância do valor da oração. Mas
poderão ser favoráveis, se enfim nos resolvermos a rezar com mais
confiança, a nos imolarmos com mais espírito de penitência, a agir com
mais afinco, mais habilidade e maior denodo.
O primeiro ponto de todo programa, neste sentido, é um
afervoramento da vida interior. Sem união com Deus, nada se consegue.
E a
união com Deus supõe um incremento de nossa devoção marial. Pois só se une
com Deus quem está unido a Maria.
Isto posto, na ordem da ação, o que fazer?
Por ocasião do II Congresso Nacional da Ordem Terceira
do Carmo, realizado em São Paulo, foi discutido um documento da mais alta
oportunidade, não só para os carmelitas, mas para todos os católicos. É
uma carta que Sua Paternidade, o Revmo. Frei Kiliano Lynch, Prior Geral da
Ordem do Carmo da antiga observância, escreveu nesse ensejo aos Irmãos
Terceiros do Brasil. É um programa de ação profundo e completo. Nele não
se fala de imprensa, de ação cívica, de assuntos pedagógicos, de
sindicatos, de serviço social, do problema da família, ou da questão da
arte no século XX. Mas implicitamente se fala de tudo. Pois sem descer a
problemas concretos, esse programa se situa numa altura em que todos os
assuntos se iluminam e se resolvem. Pelas esplêndidas tradições da
gloriosa Ordem da qual é a mais alta figura hierárquica, pelo valor
excepcional de suas qualidades pessoais, pela oportunidade do que diz, o
ilustre Geral Carmelitano merece ser ouvido por todos os leitores de
"Catolicismo".
* * *
Antes de tudo, um programa de ação supõe uma clara
visão da realidade. Nada de imediatismos, nada de resolver as dificuldades
do apostolado apenas em função dos minúsculos problemas que nascem e
morrem numa sacristia ou numa sede de associação. É preciso ter vistas
largas e gerais sobre nossa época e suas tendências, sobre a natureza e
verdadeira extensão dos assuntos a serem resolvidos.
Mas essas vistas sobre nossa época devem ser corajosas.
Não nos devemos intoxicar por um otimismo pusilânime, que leva à política
do avestruz. Os problemas que temos diante de nós são de uma gravidade
trágica. Cumpre vê-los com os olhos bem abertos. E cumpre dizê-los
claramente. Não traz resultados a pobre tática de não mencionar as
dificuldades do tempo, de medo de irritar o adversário. Assim, o Geral dos
Carmelitas Calçados pinta nestes termos a situação do mundo hodierno:
"Desde que viveis fora do claustro, não me é necessário
dizer-vos quão descristianizado se tornou o mundo de hoje, quão paganizada
está a vida, não apenas na sociedade, mas também na família e no próprio
indivíduo. O laicismo gerado pela cultura moderna divorciou de Deus a vida
humana em todos os seus aspectos. A existência hoje perdeu o sentido de
profunda e íntima relação para com Deus, e é somente considerada como um
fim em si mesma. E a conseqüência é que ela perdeu o seu real significado
e está flutuando desnorteadamente. A vida não é mais contemplada à luz de
alguma coisa mais alta do que ela própria, e desapareceu a verdadeira
felicidade. Nunca, no decurso de sua longa história, o homem tanto
progrediu no caminho das riquezas materiais e tanto regrediu no caminho da
paz e da felicidade.
Os sociólogos modernos referem-nos que o homem moderno
se vai tornando rapidamente vítima da angústia, desencorajado, já não é
capaz de viver uma vida à altura da dignidade humana. Tudo aquilo que o
circundava, dando-lhe força e luz, se desvaneceu, e ele ficou abandonado a
si mesmo. Esta era que tanto prometeu, está findando em triste desilusão.
Não obstante as luzes das ciências, o homem vive em trevas e a sombra da
morte o ameaça.
Como quer que as trevas do momento em que vivemos se
apresentem, jamais devemos esquecer-nos de que os Poderes das trevas
tiveram a sua "hora", mas Cristo os venceu. Nossa fé, que é a perene
celebração da Ressurreição, é ainda nossa vitória".
* * *
Mas seria um erro imaginar que a gravidade da hora nos
deve levar à inércia. Pelo contrário, o extremo do perigo estimula o
batalhador valoroso. Escreve o ínclito Fr. Kiliano Lynch:
"Esta era" , dizia Pio XI, "é uma das mais
difíceis que a história viveu, mas também a mais bela; pois é este um
instante em que a mediocridade não é permitida a ninguém, em que vidas
cristãs florescem com toda a pujança e causas são ganhas para a Igreja". E
quão a propósito é a Mensagem Natalícia de seu augusto Sucessor, Pio XII:
"Empenhai-vos, pois, caros filhos. Cerrai fileiras. Não desanimeis nem
cruzeis os braços. Ide e construí um novo mundo social para Cristo" ( 1944
).
"Ide e construí um mundo novo. Eis, caros Terceiros, a
nossa mensagem para vós. Ide dar à vida forma e estrutura cristãs.
Marcai-a com o sigilo de Cristo e de sua Santa Mãe, vivendo uma vida
realmente cristã em todos os sentidos. Ide e tornai-vos "uma lâmpada
ardente e brilhante" no meio das trevas, e sede, como São João Batista,
precursores de melhor e mais santo porvir".
* * *
O remédio específico e primordial consiste, já o
dissemos, no afervoramento da vida espiritual. Mas este afervoramento tem
uma conseqüência lógica, que é a aceitação, pelo homem, de uma concepção
verdadeira da vida terrena e da sociedade temporal. Todas as coisas são
meios para que cheguemos até o Criador. Não devemos perder de vista que
Deus é a Causa exemplar de todas as criaturas. Saber ver e amar a Deus em
todos os seres, quer em seu estado natural, quer depois de retamente
transformados pelo homem, é propriamente a essência da cultura católica, e
um inapreciável e indispensável meio de santificação.
"O primeiro passo – prossegue a carta – que
deveria dar na realização desse propósito ( de conferir à vida forma e
estrutura cristã ) será restabelecer o íntimo significado da vida,
cultivando um arraigado senso de vocação cristã. O erro fundamental de
hoje é o fato de que o homem esqueceu o porquê de sua presença no mundo, o
porquê de sua criação por Deus. Nós pertencemos a Deus no absoluto sentido
da palavra, e estamos neste mundo para servi-Lo até mesmo nos mais
insignificantes misteres da vida quotidiana.
A razão por que a vida se tornou tão infeliz é que o
homem moderno está agindo contra as íntimas e veementes forças que o
impelem para Deus, enquanto tenta encontrar a paz, desprezando o plano
divino, que está na sua própria natureza. Mas quem prevalecerá contra
Deus?
Devemos tornar a ver a vida à luz de sua finalidade
última, a fim de encontrarmos o divino no material, o eterno no temporal,
a santidade em tudo, exceto no pecado. O grande empenho da hora presente é
a penetração de todas as atividades da vida pela luz e poder de nossa fé.
O abismo que a nossa era criou entre a fé e a vida deve ser cancelado, e a
graça divina deve operar como um fermento, a fim de elevar a nossa
existência a um nível melhor".
* * *
É bem certo que, a este título, todas as criaturas
devem ser utilizadas para a composição de uma atmosfera de pensamento e um
quadro de ação ordenados à glória de Deus. Trata-se de ordenar as
criaturas, e não de as ignorar ou menosprezar.
Quanto ao pecado, deve-se ter toda a intransigência. E
por isto o amor ao pecador é um amor dinâmico, que não o toma tal qual é,
mas tende a transformá-lo combatendo nele o pecado. É o "amor redentivo":
"Na luta para destruir os malignos frutos do laicismo,
não devemos cair no extremo oposto ( como muitos o fazem ), despindo a
vida e as coisas deste mundo de sua bondade e dignidade naturais. Uma só
coisa devemos odiar, que é o pecado, pois o pecado somente não foi criado
e santificado por Deus.
O Cardeal Suhard deste modo se expressa: " O cristão
não foi chamado para destruir ou vilipendiar o mundo, mas para aceitá-lo,
para santificá-lo, para oferecê-lo em homenagem a Deus..." "A realidade
temporal – escreve Mouroux – é uma realidade vulnerada que deve ser amada
com um amor redentivo... O cristão ama a realidade temporal porque esta o
ajuda a encaminhar-se para Deus". Nós redimimos as coisas, enquanto nelas
vemos o divino, enquanto as usamos em conformidade com a divina vontade".
* * *
Um doente que tenha critério não pode contentar-se com
a rememoração sentimental dos dias em que estava são. Se verdadeiramente
ele ama a saúde, deve restaurá-la. Saudades da civilização cristã que não
dessem no desejo de restaurar a vigência dos princípios em que esta se
baseava, seriam vãs.
Presente na sociedade temporal, o Irmão Terceiro deve
cumprir ali sua missão providencial, que é de reacender a luz dos
princípios imortais da Igreja:
"Os Terceiros, portanto, não foram chamados para fugir
do mundo ou para desprezá-lo, mas para amá-lo com o amor redentivo de
Cristo e de sua Mãe. Como nós, também cada coisa tem o seu fim em Deus.
Todas as coisas cantam a glória do Altíssimo: nós devemos ser como que o
coração e a voz das coisas, na grande harmonia que o homem moderno
esqueceu.
Que interessante seria se os Terceiros de fato
implantassem na sua vida esta orientação positiva, criativa, santificante,
tornando-se dela expoentes.
À imitação do Divino Mestre, deveis trazer a vida à
sociedade e trazê-la em abundância. Não perder o tempo, voltados para os
dias que se foram, mas aceitar o mundo como se apresenta, e procurar
trazê-lo para Deus, através de sua Santa Mãe. O cerne, o coração, a
substância da sociedade continuam ainda sendo aquilo que Deus plasmou, e é
esta íntima realidade que deve ser endereçada para Deus.
A recuperação, por assim dizer, do caráter sagrado de
cada carreira na vida, seja qual for a sua condição, contribuirá também
para a santificação dos Terceiros. Não raramente encontramos pessoas que
se lamentam da falta de tempo para se dedicarem às coisas do espírito. O
único tempo que tais pessoas consideram aproveitado é o tempo que se
dedica aos exercícios de piedade, como sejam orações, leituras
espirituais, meditações, ou visitas à igreja. As horas de ocupação
doméstica, com os múltiplos e pequeninos afazeres do lar, todo o tempo
empregado nas exigências da família e da profissão consideram perdido.
Esta concepção, porém, é falsa. Com efeito, todos estes
aspectos da vida foram dispostos por Deus e, quando encarados segundo a
vocação cristã e a ela consagrados, são fontes de louvor de Deus e de
proveito para nós.
Em Nossa Senhora, Mãe e Esplendor do Carmelo,
encontramos perfeito exemplo de vida plena e íntegra, vivida em meio ao
mundo. O perfil que os Evangelhos d’Ela nos traçam é o de simples e
humilde esposa de carpinteiro, atenta à vontade de Deus para realizá-la de
todo o seu coração. Sua vida foi um hino de louvor e glória ao Senhor, e o
seu exemplo santificou até a mais insignificante coisa da vida quotidiana.
Seguramente foi considerando o exemplo de Maria, que Bento XV escreveu que
até mesmo a santidade heróica consiste "no cumprimento exato e constante
dos deveres de estado". E Santa Teresa diz: "Sabemos que a verdadeira vida
de Maria, tanto em Nazaré, quanto nos anos seguintes, foi uma vida
inteiramente ordinária", mas foi igualmente um "magnificat" ao Senhor de
tal modo que foge à nossa compreensão, obtendo abundantes graças e bênçãos
para a humanidade.
Vós, que sois os seus eleitos, deveis seguir seu
exemplo, vendo a vontade e a obra de Deus na vida a que fostes chamados, e
fazendo de vossa vida uma resposta a este chamamento. Deveis fazer a
vontade de Deus sobre esta terra como a fez Maria, e esforçar-vos por ser,
em qualquer momento, exatamente aquilo que Deus quer que sejais".
* * *
As palavras profundas do Revmo. Frei Kiliano Lynch, O.
Carm., merecem ser meditadas nesta tormentosa passagem de ano. Pois elas
nos deixam ver o que será o mundo se não agirmos com denodo no seio da
sociedade temporal. E, sobretudo, elas nos mostram a que altura o mundo
pode ser elevado pelo amor "redentivo" ou transformador de todos os
católicos para com o pecador, e seu ódio intransigente ao pecado.
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