Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

"Ide e construí um mundo novo"

 

 

"Catolicismo" Nº 97 - Janeiro de 1959

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Um dos grandes méritos do estilo gótico consistiu na construção de igrejas que foram maravilhas de ordem no sentido mais profundo da palavra: uma ordem resplandecente de fé, bom senso, sublime elevação de espírito e graça encantadora. Mas esta ordem – de que a nave de Coutances, no clichê, dá uma idéia tão perfeita – o estilo gótico a exprimiu não somente em monumentos eclesiásticos, mas também civis, indicando que não há cisão entre a vida espiritual e a temporal, a Igreja e o século. Também a vida profana deve ser inspirada, ordenada, e marcada até o que tem de mais fundo, por um ardente espírito de fé.

Está encerrado o ano de 1958. E impõe-se a velha e quase diríamos gastíssima praxe do retrospecto, seguido de um olhar ansiosamente interrogativo para 1959. Seria inútil tentar fugir a essa praxe, por mais rotineira que pareça. Ela nasce da própria profundeza da ordem natural das coisas. Foi Deus que criou o tempo, e quis que, para os homens, fosse ele dividido em anos. Esta duração anual, unidade sempre igual a si mesma, é admiravelmente proporcionada à extensão da existência humana e ao ritmo dos acontecimentos terrenos. Quis a Providência que a inexorável cadência dos anos proporcionasse aos homens, nos dias que servem de ponte entre o ano velho e o ano novo, a ocasião para um exame atento de tudo quanto neles e em torno deles se foi mudando, para uma análise serena e objetiva dessas mudanças, para uma crítica dos métodos e rumos velhos, para a fixação de métodos e rumos novos, para uma reafirmação dos métodos e dos rumos que não podem nem devem mudar.

De algum modo, pois, cada fim de ano se parece com um Juízo, em que tudo deve ser medido, contado e pesado, para a rejeição do que foi mau, a confirmação do que foi bom, e o ingresso em uma etapa nova.

A praxe dos retrospectos e das conjeturas de fim e começo de ano é, pois, iniludível.

Conformando-nos com esta disposição da Providência, escrita na própria ordem natural das coisas, entreguemo-nos ainda uma vez, sob o olhar de Maria, a esta tarefa de medir, pesar e prognosticar. Prognosticar, sim. Pois se habitualmente Deus a ninguém revela o futuro, a mente alguma deu o dom de fazer por si mesma prognósticos infalíveis, quis entretanto que o intelecto do homem tivesse o lume suficiente para estabelecer conjeturas prováveis, que podem servir de elemento precioso para a direção das atividades humanas.

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Naturalmente, um coração católico não pode deixar de ver no ano de 1958 três notas principais. Foi o ano de Lourdes, em que as alegrias, as lutas, até as decepções foram iluminadas pela luz sobrenatural e suave que nasce da gruta sagrada. E foi na suavidade dessa luz que se extinguiram mansamente os dias de Pio XII, foi com o conforto de sua claridade que as multidões choraram o Pontífice que tanto as amou e a quem tanto amavam, foi o esplendor dessa luz que brilhou nos albores do pontificado de João XXIII, inundando-os de promessas e de bênçãos: 1958 ficará para nossos corações como o ano de Lourdes, o ano da morte de Pio XII e do advento de João XXIII.

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Mas, se destas alturas baixarmos as vistas sobre os acontecimento que mais especialmente se relacionam com a sociedade temporal, o que presenciamos em 1958? Foi este um ano bom? Um ano ruim?

A esta pergunta pode-se dar, conforme os pontos de vista, tantas respostas, valendo umas e outras tanto e tão pouco, que se cai em pleno caos. Pois cada ano traz forçosamente modificações boas e modificações más. E o grande problema consiste na fixação de um critério para determinar e ponderar o bem e o mal.

Ora, a fixação deste critério, para um católico, não pode constituir objeto de dúvida. A civilização cristã é a ordenação de todas a coisas temporais conforme a doutrina da Igreja. Em outros termos, é a ordenação de todas elas segundo a natureza de cada uma, em conformidade com o seu fim último, de maneira que a proporcionada cooperação entre todas redunde na realização do plano da Providência, que é a glória de Deus tanto nesta existência como na outra, isto é, no tempo e na eternidade.

Na ordem temporal, pois, o problema consiste em saber em que medida os acontecimentos de 1958 contribuíram para favorecer e desenvolver a civilização cristã, ou pelo contrário, para a minar e derruir.

Sem negar a legitimidade de considerações de outra natureza, feitas de acordo com outros pontos de vista, é preciso reconhecer que elas têm uma importância secundária, em face da que acabamos de fazer. E que em última análise as mesmas só tem sentido se consideradas em função do grande problema que apresentamos linhas acima. Com efeito, a civilização cristã pode ser comparada à pérola preciosa de que fala o Evangelho ( Mat. 13, 46 ). Para adquiri-la, devemos vender tudo. Pois de nada nos servem todas as riquezas, se não tivermos o bem inestimável da civilização cristã. Do que dá bem provas nossa triste era atômica, em que o homem tem a superabundância dos recursos materiais, e estes lhe são espiritual e materialmente danosos porque seu uso não é regulado pelos princípios da Igreja.

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Este julgamento do ano de 1958 só pode ser feito tendo-se em vista a situação concreta em que nos encontramos. A civilização cristã existiu no Ocidente, com grande esplendor e plenitude. Di-lo o Santo Padre Leão XIII em palavras memoráveis:

"Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados. Naquela época, a influência da sabedoria cristã e a sua divina virtude introduzia-se nas leis, nas instituições, nos costumes dos povos, em todas as classes e em todas as relações da sociedade civil. Então a Religião instituída por Jesus Cristo, solidamente estabelecida no grau de dignidade que lhe é devido, estava por toda a parte florescente, graças ao favor dos Príncipes e à proteção legítima dos Magistrados. Então o Sacerdócio e o Império estavam ligados entre si por uma feliz concórdia e amigável reciprocidade de bons ofícios. Assim organizada, a sociedade civil deu frutos superiores a toda a expectativa, cuja memória subsiste e subsistirá , consignada, como está, em inúmeros documentos, os quais nenhum artifício dos adversários poderá corromper ou obscurecer" ( Encíclica "Immortale Dei", de 1º de novembro de 1885 ).

Esta civilização magnífica entrou em crise, através de um longo e doloroso processo histórico cujas principais etapas foram, no campo ideológico, o naturalismo, o cepticismo e o hipercriticismo dos humanistas, as negações do protestantismo, mais tarde o iluminismo e o deismo, para chegar hoje em dia ao ateísmo e ao panteísmo; e, no campo temporal, as concepções absolutistas e césaro-papistas dos legistas, o laicismo e o igualitarismo político e social da Revolução Francesa, o ateísmo e o igualitarismo social e econômico do comunismo.

Atualmente, do antigo edifício da civilização cristã, o que resta? Muito pouca coisa. Em carta dirigida a Sua Eminência o Cardeal D. Carlos Carmelo de Vasconcellos Mota, Arcebispo de São Paulo, o Exmo. Revmo. Mons. Ângelo Dell’Aqua, Substituto da Secretaria de Estado do Vaticano, falando com a alta responsabilidade de seu cargo, dizia que "em conseqüência do agnosticismo religioso dos Estados" ficou "amortecido ou quase perdido na sociedade moderna o sentir da Igreja". Quando a raiz está como que completamente cortada, tudo quanto possa persistir de frutos e de flores na árvore tem uma vida que mais se poderia chamar pós-vida. O pouco que da civilização cristã ainda resta na civilização pós-cristã ( chamemo-la assim ) de nossos dias – alguns hábitos, costumes e tradições, este ou aquele modo de sentir e de pensar, uma ou outra disposição legislativa – tem o mais das vezes certo aspecto de sobrevivência mais ou menos anacrônicas do passado.

Não negamos, é claro, que muitas almas – em número talvez até crescente em relação a cem anos atrás – continuam a viver numa ardente união com a Santa Igreja, dando mostras de uma fidelidade heróica que por vezes nada fica a dever aos mártires do Coliseu. Tudo isto não obstante, é verdade que no plano dos costumes sociais, da cultura, das instituições políticas, da vida econômica, o retrocesso é cada vez maior.

E assim, para 1958, o importante consiste em saber se o retrocesso continuou, se a marcha triunfal do neopaganismo foi sustada, se a reconquista do mundo para Nosso Senhor Jesus Cristo já teve início.

No plano em que falamos, a resposta só poderia ser uma: não.

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Em primeiro lugar , haveria temeridade em afirmar que, no Ocidente, o comunismo sofreu qualquer perda substancial de seu prestígio. O fato de na Itália e na França, por exemplo, as eleições terem corrido com algum prejuízo para o Partido Comunista não tem alcance maior do que o de um vaivém de tropas numa batalha de longa duração. Pelo contrário, há um sensível progresso da influência comunista no Brasil, por exemplo. Da influência comunista, dissemos, e não propriamente do comunismo. Com efeito, não percebo qualquer sintoma de maior permeabilidade da opinião pública à doutrina de Marx. Mas há entre os homens de influência do País uma crescente tendência a aproximar nossa política internacional da de Moscou. Não é difícil ver que proveitos poderá tirar disto, em momento dado, a raposa soviética.

Quanto ao Oriente, houve quem esperasse que uma atitude de inércia simpática, e por vezes até de colaboração positiva dos católicos com os movimentos nacionalistas e emancipacionistas, determinasse para a Igreja condições de existência mais favoráveis, ou pelo menos Lhe conservasse as condições suportáveis em que Se encontrava. Havia, é certo, algumas apreensões. Por exemplo, a pressão e, mais do que isto, a fascinação da Rússia sobre os movimentos nativistas não poderiam ter perigosas conseqüências? É forçoso reconhecer que os acontecimentos desenrolados em 1958 concorreram quase sempre para desvanecer as esperanças e confirmar as apreensões. Muitos dos movimentos nativistas se voltam contra a Igreja, perseguida agora, um pouco por toda a parte, por um sentimento xenófobo injusto e estreito, estimulado pela Rússia, a despeito das exuberantes manifestações de boa vontade que os católicos deram para com o anticolonialismo.

Mas o pior não está em nada disto. Durante todo o ano passado, não fez senão agravar-se o processo de degradação cultural de que os povos do Ocidente estão afetados. A imoralidade cresceu constantemente. Disto é índice a epidemia mundial de "rock and roll", fenômeno visível por muitos lados, mas que tem inegável importância se o consideramos como a expressão aguda de um espírito muito difundido e generalizado no Ocidente, e que não é senão o neopaganismo chegando ao paroxismo e superando-se a si próprio. Parece ter chegado ao auge o progresso de um materialismo implícito, que consiste no endeusamento de valores puramente materiais, ou pelo menos vistos apenas em seus aspectos materiais, como o dinheiro, a técnica, o número, a massa, o esporte, a saúde, o conforto. O igualitarismo, que é a afirmação do primado da quantidade sobre a qualidade, do vulgar sobre o que é intrinsecamente nobre e elevado, da matéria sobre o espírito, penetra sempre mais a fundo, introduzindo a confusão e a desordem mais radical nas relações humanas. Nivelar cada vez mais a esposa com o esposo, os filhos com os pais, os alunos com os professores, os mais moços com os mais velhos, os empregados com os patrões, os que são governados com os que governam, eis a que tende de todas as maneiras a imensa transformação de costumes pela qual estamos passando.

E assim, ainda que não houvesse a cortina de ferro, nem a cortina de bambu, com todo o mundo que atrás delas vive, o Ocidente não comunista, pelo seu próprio dinamismo interno chegaria ao comunismo.

Como pode ter forças para se defender contra um perigo quem, fascinado, se deixa preguiçosamente rolar até ele? Como pode ter as bênçãos e a proteção de Deus, contra um adversário temível, quem faz o jogo do próprio adversário? Como obter a proteção de Deus, quando se injuria ao próprio Deus, queimando incenso nos altares do anticristo do século XX?

O ano de 1958 foi mau...

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... E nada indica que o ano de 1959 será melhor. E, entretanto, 1959 poderá ser melhor, se os católicos tomarem consciência de sua responsabilidade. No mundo, são eles quase quinhentos milhões. Este argumento quantitativo pesa. Mas, muito mais do que isto, é preciso considerar que eles constituem o Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo, a porção predileta da humanidade, para a qual a Providência está disposta a operar maravilhas, se ela resolver cooperar com a graça. Tudo vai mal. Nada, porém, absolutamente nada está perdido se ainda nos decidirmos a lutar varonilmente, e com espírito de fé invocarmos o auxílio do Senhor.

Prognósticos para 1959? Eles serão sombrios, se continuarmos na inércia, na tibieza, na ignorância do valor da oração. Mas poderão ser favoráveis, se enfim nos resolvermos a rezar com mais confiança, a nos imolarmos com mais espírito de penitência, a agir com mais afinco, mais habilidade e maior denodo.

O primeiro ponto de todo programa, neste sentido, é um afervoramento da vida interior. Sem união com Deus, nada se consegue. E a união com Deus supõe um incremento de nossa devoção marial. Pois só se une com Deus quem está unido a Maria.

Isto posto, na ordem da ação, o que fazer?

Por ocasião do II Congresso Nacional da Ordem Terceira do Carmo, realizado em São Paulo, foi discutido um documento da mais alta oportunidade, não só para os carmelitas, mas para todos os católicos. É uma carta que Sua Paternidade, o Revmo. Frei Kiliano Lynch, Prior Geral da Ordem do Carmo da antiga observância, escreveu nesse ensejo aos Irmãos Terceiros do Brasil. É um programa de ação profundo e completo. Nele não se fala de imprensa, de ação cívica, de assuntos pedagógicos, de sindicatos, de serviço social, do problema da família, ou da questão da arte no século XX. Mas implicitamente se fala de tudo. Pois sem descer a problemas concretos, esse programa se situa numa altura em que todos os assuntos se iluminam e se resolvem. Pelas esplêndidas tradições da gloriosa Ordem da qual é a mais alta figura hierárquica, pelo valor excepcional de suas qualidades pessoais, pela oportunidade do que diz, o ilustre Geral Carmelitano merece ser ouvido por todos os leitores de "Catolicismo".

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Antes de tudo, um programa de ação supõe uma clara visão da realidade. Nada de imediatismos, nada de resolver as dificuldades do apostolado apenas em função dos minúsculos problemas que nascem e morrem numa sacristia ou numa sede de associação. É preciso ter vistas largas e gerais sobre nossa época e suas tendências, sobre a natureza e verdadeira extensão dos assuntos a serem resolvidos.

Mas essas vistas sobre nossa época devem ser corajosas. Não nos devemos intoxicar por um otimismo pusilânime, que leva à política do avestruz. Os problemas que temos diante de nós são de uma gravidade trágica. Cumpre vê-los com os olhos bem abertos. E cumpre dizê-los claramente. Não traz resultados a pobre tática de não mencionar as dificuldades do tempo, de medo de irritar o adversário. Assim, o Geral dos Carmelitas Calçados pinta nestes termos a situação do mundo hodierno:

"Desde que viveis fora do claustro, não me é necessário dizer-vos quão descristianizado se tornou o mundo de hoje, quão paganizada está a vida, não apenas na sociedade, mas também na família e no próprio indivíduo. O laicismo gerado pela cultura moderna divorciou de Deus a vida humana em todos os seus aspectos. A existência hoje perdeu o sentido de profunda e íntima relação para com Deus, e é somente considerada como um fim em si mesma. E a conseqüência é que ela perdeu o seu real significado e está flutuando desnorteadamente. A vida não é mais contemplada à luz de alguma coisa mais alta do que ela própria, e desapareceu a verdadeira felicidade. Nunca, no decurso de sua longa história, o homem tanto progrediu no caminho das riquezas materiais e tanto regrediu no caminho da paz e da felicidade.

Os sociólogos modernos referem-nos que o homem moderno se vai tornando rapidamente vítima da angústia, desencorajado, já não é capaz de viver uma vida à altura da dignidade humana. Tudo aquilo que o circundava, dando-lhe força e luz, se desvaneceu, e ele ficou abandonado a si mesmo. Esta era que tanto prometeu, está findando em triste desilusão. Não obstante as luzes das ciências, o homem vive em trevas e a sombra da morte o ameaça.

Como quer que as trevas do momento em que vivemos se apresentem, jamais devemos esquecer-nos de que os Poderes das trevas tiveram a sua "hora", mas Cristo os venceu. Nossa fé, que é a perene celebração da Ressurreição, é ainda nossa vitória".

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Mas seria um erro imaginar que a gravidade da hora nos deve levar à inércia. Pelo contrário, o extremo do perigo estimula o batalhador valoroso. Escreve o ínclito Fr. Kiliano Lynch:

"Esta era", dizia Pio XI, "é uma das mais difíceis que a história viveu, mas também a mais bela; pois é este um instante em que a mediocridade não é permitida a ninguém, em que vidas cristãs florescem com toda a pujança e causas são ganhas para a Igreja". E quão a propósito é a Mensagem Natalícia de seu augusto Sucessor, Pio XII: "Empenhai-vos, pois, caros filhos. Cerrai fileiras. Não desanimeis nem cruzeis os braços. Ide e construí um novo mundo social para Cristo" ( 1944 ).

"Ide e construí um mundo novo. Eis, caros Terceiros, a nossa mensagem para vós. Ide dar à vida forma e estrutura cristãs. Marcai-a com o sigilo de Cristo e de sua Santa Mãe, vivendo uma vida realmente cristã em todos os sentidos. Ide e tornai-vos "uma lâmpada ardente e brilhante" no meio das trevas, e sede, como São João Batista, precursores de melhor e mais santo porvir".

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O remédio específico e primordial consiste, já o dissemos, no afervoramento da vida espiritual. Mas este afervoramento tem uma conseqüência lógica, que é a aceitação, pelo homem, de uma concepção verdadeira da vida terrena e da sociedade temporal. Todas as coisas são meios para que cheguemos até o Criador. Não devemos perder de vista que Deus é a Causa exemplar de todas as criaturas. Saber ver e amar a Deus em todos os seres, quer em seu estado natural, quer depois de retamente transformados pelo homem, é propriamente a essência da cultura católica, e um inapreciável e indispensável meio de santificação.

"O primeiro passo – prossegue a carta – que deveria dar na realização desse propósito ( de conferir à vida forma e estrutura cristã ) será restabelecer o íntimo significado da vida, cultivando um arraigado senso de vocação cristã. O erro fundamental de hoje é o fato de que o homem esqueceu o porquê de sua presença no mundo, o porquê de sua criação por Deus. Nós pertencemos a Deus no absoluto sentido da palavra, e estamos neste mundo para servi-Lo até mesmo nos mais insignificantes misteres da vida quotidiana.

A razão por que a vida se tornou tão infeliz é que o homem moderno está agindo contra as íntimas e veementes forças que o impelem para Deus, enquanto tenta encontrar a paz, desprezando o plano divino, que está na sua própria natureza. Mas quem prevalecerá contra Deus?

Devemos tornar a ver a vida à luz de sua finalidade última, a fim de encontrarmos o divino no material, o eterno no temporal, a santidade em tudo, exceto no pecado. O grande empenho da hora presente é a penetração de todas as atividades da vida pela luz e poder de nossa fé. O abismo que a nossa era criou entre a fé e a vida deve ser cancelado, e a graça divina deve operar como um fermento, a fim de elevar a nossa existência a um nível melhor".

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É bem certo que, a este título, todas as criaturas devem ser utilizadas para a composição de uma atmosfera de pensamento e um quadro de ação ordenados à glória de Deus. Trata-se de ordenar as criaturas, e não de as ignorar ou menosprezar.

Quanto ao pecado, deve-se ter toda a intransigência. E por isto o amor ao pecador é um amor dinâmico, que não o toma tal qual é, mas tende a transformá-lo combatendo nele o pecado. É o "amor redentivo":

"Na luta para destruir os malignos frutos do laicismo, não devemos cair no extremo oposto ( como muitos o fazem ), despindo a vida e as coisas deste mundo de sua bondade e dignidade naturais. Uma só coisa devemos odiar, que é o pecado, pois o pecado somente não foi criado e santificado por Deus.

O Cardeal Suhard deste modo se expressa: " O cristão não foi chamado para destruir ou vilipendiar o mundo, mas para aceitá-lo, para santificá-lo, para oferecê-lo em homenagem a Deus..." "A realidade temporal – escreve Mouroux – é uma realidade vulnerada que deve ser amada com um amor redentivo... O cristão ama a realidade temporal porque esta o ajuda a encaminhar-se para Deus". Nós redimimos as coisas, enquanto nelas vemos o divino, enquanto as usamos em conformidade com a divina vontade".

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Um doente que tenha critério não pode contentar-se com a rememoração sentimental dos dias em que estava são. Se verdadeiramente ele ama a saúde, deve restaurá-la. Saudades da civilização cristã que não dessem no desejo de restaurar a vigência dos princípios em que esta se baseava, seriam vãs.

Presente na sociedade temporal, o Irmão Terceiro deve cumprir ali sua missão providencial, que é de reacender a luz dos princípios imortais da Igreja:

"Os Terceiros, portanto, não foram chamados para fugir do mundo ou para desprezá-lo, mas para amá-lo com o amor redentivo de Cristo e de sua Mãe. Como nós, também cada coisa tem o seu fim em Deus. Todas as coisas cantam a glória do Altíssimo: nós devemos ser como que o coração e a voz das coisas, na grande harmonia que o homem moderno esqueceu.

Que interessante seria se os Terceiros de fato implantassem na sua vida esta orientação positiva, criativa, santificante, tornando-se dela expoentes.

À imitação do Divino Mestre, deveis trazer a vida à sociedade e trazê-la em abundância. Não perder o tempo, voltados para os dias que se foram, mas aceitar o mundo como se apresenta, e procurar trazê-lo para Deus, através de sua Santa Mãe. O cerne, o coração, a substância da sociedade continuam ainda sendo aquilo que Deus plasmou, e é esta íntima realidade que deve ser endereçada para Deus.

A recuperação, por assim dizer, do caráter sagrado de cada carreira na vida, seja qual for a sua condição, contribuirá também para a santificação dos Terceiros. Não raramente encontramos pessoas que se lamentam da falta de tempo para se dedicarem às coisas do espírito. O único tempo que tais pessoas consideram aproveitado é o tempo que se dedica aos exercícios de piedade, como sejam orações, leituras espirituais, meditações, ou visitas à igreja. As horas de ocupação doméstica, com os múltiplos e pequeninos afazeres do lar, todo o tempo empregado nas exigências da família e da profissão consideram perdido.

Esta concepção, porém, é falsa. Com efeito, todos estes aspectos da vida foram dispostos por Deus e, quando encarados segundo a vocação cristã e a ela consagrados, são fontes de louvor de Deus e de proveito para nós.

Em Nossa Senhora, Mãe e Esplendor do Carmelo, encontramos perfeito exemplo de vida plena e íntegra, vivida em meio ao mundo. O perfil que os Evangelhos d’Ela nos traçam é o de simples e humilde esposa de carpinteiro, atenta à vontade de Deus para realizá-la de todo o seu coração. Sua vida foi um hino de louvor e glória ao Senhor, e o seu exemplo santificou até a mais insignificante coisa da vida quotidiana. Seguramente foi considerando o exemplo de Maria, que Bento XV escreveu que até mesmo a santidade heróica consiste "no cumprimento exato e constante dos deveres de estado". E Santa Teresa diz: "Sabemos que a verdadeira vida de Maria, tanto em Nazaré, quanto nos anos seguintes, foi uma vida inteiramente ordinária", mas foi igualmente um "magnificat" ao Senhor de tal modo que foge à nossa compreensão, obtendo abundantes graças e bênçãos para a humanidade.

Vós, que sois os seus eleitos, deveis seguir seu exemplo, vendo a vontade e a obra de Deus na vida a que fostes chamados, e fazendo de vossa vida uma resposta a este chamamento. Deveis fazer a vontade de Deus sobre esta terra como a fez Maria, e esforçar-vos por ser, em qualquer momento, exatamente aquilo que Deus quer que sejais".

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As palavras profundas do Revmo. Frei Kiliano Lynch, O. Carm., merecem ser meditadas nesta tormentosa passagem de ano. Pois elas nos deixam ver o que será o mundo se não agirmos com denodo no seio da sociedade temporal. E, sobretudo, elas nos mostram a que altura o mundo pode ser elevado pelo amor "redentivo" ou transformador de todos os católicos para com o pecador, e seu ódio intransigente ao pecado.